Crônica

Setembro Amarelo com Dark Souls (Multi): a dinâmica de dificuldade e perseverança como metáfora da vida

Motivação vinda de onde menos se espera.

em 14/09/2022


O Setembro Amarelo é uma campanha de prevenção ao suicídio. O conteúdo sensível sobre saúde mental pode ser incômodo a algumas pessoas.

Antes de tudo, ressalto que esta é uma leitura de minhas experiências, não uma afirmação de algum significado intencional por trás de Dark Souls (Multi). É um título controverso pelo seu design de dificuldade e narrativa críptica. Eu entendo que isso afaste vários jogadores, mas aprendi a amar a série da FromSoftware e quero compartilhar um pouco do que ela representa para minha saúde mental. 


No primeiro jogo da série Dark Souls, a terra de Lordran se recusa a deixar acabar a era do fogo, mesmo que seu tempo já tenha sido cumprido. A primeira chama é reacendida vez após vez, mas as coisas não são como antes e o mundo está decadente em seu prolongamento forçado, tornando-se apenas uma cinza do que já foi.

As pessoas que ali habitam passam por algo semelhante: são amaldiçoadas como mortos-vivos e retornam à vida após a morte, continuamente, sempre perdendo um pouco mais de si mesmas e do que lhes resta de humanidade. O desgaste das mortes e da passagem do tempo corrói a mente e a vontade e, quando perdem o propósito e a última centelha de vida, os mortos-vivos tornam-se Vazios: insanos, apáticos, melancólicos ou violentos que não mais sabem quem foram no passado e deixam de existir como pessoas.

O protagonista criado pelo jogador é um morto-vivo, mas tem um trunfo: seu propósito está no fim do jogo (reacender o fogo ou deixá-lo apagar para deixar brotar a era da escuridão) e ele resistirá ao Vazio enquanto o jogador persistir em avançar rumo ao objetivo final. Não importa quantas vezes precise falhar e tentar novamente, ele restaurará sua humanidade e retornará mais uma vez sem ter sido tomado pelo Vazio.



No entanto, estamos falando de Dark Souls, um jogo famoso por colocar o entendimento obscuro e a dificuldade punitiva como partes centrais de sua identidade. Até quando o jogador enfrentará os desafios que são atirados contra ele? Aqui podemos ver simetria entre jogo e jogador: o Vazio do personagem virá apenas da perda de propósito do jogador que, cansado de tantas derrotas, enfim desiste de jogar.

“Não ouse se tornar vazio”

É por isso que uma das frases mais marcantes de Dark Souls (não, não “Praise the Sun”) é dita por um aliado gentil, Laurentius do Grande Pântano: “Fique bem, amigo. Não ouse tornar-se vazio”.

Essa fala parece mirar diretamente o angustiado jogador e o faz de forma tão certeira, que seu sentido transborda do âmbito do jogo e alcança a vida real ao ser usada como motivação na comunidade de jogadores e ornamentar inúmeras tatuagens, fanarts e posts do Reddit como um acalento de empatia e companheirismo para que os desesperados não desistam perante a dificuldade dos jogos da série Souls.



Não à toa, também há muitos relatos pela web de pessoas que se sentiram tocadas pelo design de satisfação movido pela perseverança que os jogos da FromSoftware tentam proporcionar e pela forma como celebram apoio mútuo entre jogadores. Não deve ser surpresa, então, que o personagem mais querido seja Solaire de Astora, aquele que apresenta ao jogador a ideia de “alegre cooperação” que permite que outros jogadores se juntem para enfrentar os desafios em colaboração.
 
Após o começo cruel do jogo, é um enorme alívio conhecer Solaire e ouvi-lo sugerir sem hesitação: “Por que não nos ajudamos nessa solitária jornada?”. Ele diz que está em busca de seu próprio sol e quer ser útil a quem está em apuros na busca por um propósito.



Bem mais adiante, em um dos tranquilizadores reencontros, Solaire diz: “Que bom que está vivo... você foi bem, de fato. Você tem o braço forte, fé forte e, mais importante, coração forte. Estou impressionado”.
 
Ele reconhece o êxito do morto-vivo em chegar até ali, independentemente de quantas vezes perdeu o rumo naquele mundo labiríntico e quantas mortes encontrou. A suavidade de Solaire é contagiante. Ele representa o jogo parabenizando o jogador por ter chegado até ali e incentivando-o a seguir seu propósito.
Fanart por Naka_da_Slacka

“Humanidade restaurada”

Não quero dizer que Dark Souls é uma terapia para a depressão e a ansiedade ou que foi feito com essa intenção – ao contrário, seu antecessor Demon’s Souls (PS3) me abalou como nenhum jogo antes e me afastou de títulos Souls por quatro anos antes que tentasse novamente com Bloodborne (PS4), quando passei a amar o gênero.

O que quero dizer é que os repertórios de experiências de vários jogadores os levam a ver uma relação em sua jornada de persistência naquele mundo opressivo e esmagador como um reflexo de suas próprias vidas. Eu sou um deles. Enfrento depressão, ansiedade e sentimentos de morte há muitos anos e, durante as crises, temo desistir e me tornar Vazio.

Com o tempo, jogar Dark Souls passou a ser, para mim, uma dinâmica quase confortável. Primeiro, vem a sensação de me deparar com uma barreira intransponível ou um oponente impossível – e, com isso, a ansiedade que traz o medo de que vou desistir e de que, na verdade, eu não devia nem mesmo ter comprado o jogo, tudo é adrenalina, palpitação e "por-que-me-submeto-a-isso"??!!

No entanto, chega o momento em que começo a vislumbrar uma ponta de familiaridade. Parece que passo a entender como o processo funciona e desponta a impressão de que, afinal, passar por aquilo não é impossível. Afinal, eu cheguei até aqui, não cheguei? Quem sabe mais uma tentativa? Ops, mais uma. Na próxima vai! Na próxima... Mais uma! Quase!

Ver situações que nos parecem impossíveis se transformarem em barreiras temporárias permite sentir que a próxima barreira também cairá, mais cedo ou mais tarde. Isso é reconfortante e alivia a angústia de impotência e vulnerabilidade, cedendo espaço para a mente perceber melhor a situação e, com isso, ter a chance de buscar caminhos para seguir em frente em vez de se deixar seduzir pelo ilusório alívio da desistência.



New Game +7

Andrew Solomon, em O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão (Companhia das Letras, 2018), explica que um dos tipos de suicidas é aquele que “comete suicídio por uma lógica falha, em que a morte parece ser a única fuga de problemas intoleráveis” (p. 234).

Algumas aflições costumam distorcer a percepção da realidade e induzir a essas crenças que parecem perfeitamente lógicas, mas que não se sustentam. Dark Souls não pretende falar dos nossos problemas da vida, mas fala sobre a crença de que as adversidades são absolutas e eternas, mostrando que não precisam parecer assim para sempre. Elas não se tornarão fáceis, mas poderão ser toleráveis, e talvez até inofensivas, se tivermos as condições de enxergá-las por ângulos que mantenham as devidas proporções.



Segundo Solomon, “a tendência ao suicídio é muitas vezes temporária” (p. 236). E este é um dos pontos mais importantes: tudo passa. Muitas vezes o ato final vem do impulso. Pode ser no momento de maior dor ou após ele, com a mente assaltada pela crença aterradora e convincente de que sempre será assim. 
Por isso, devemos ter em mente que os momentos passarão. Se resistirmos só mais um dia, ele também passará. Um dia por vez, a cada dia, na luta para não perder de vista o propósito, seja qual for.

Não vou entrar em minha história de vida aqui, mas digo isto: ainda bem que sobrevivi à minha adolescência. Valeu a pena sobreviver a cada crise que me assolou desde então. Todas passaram e a atual também passará. Eu viveria tudo isso novamente só para estar onde estou agora. Definitivamente, quero sobreviver às crises que virão. Jogar videogames com meus netos daqui a 30 anos é um bom propósito. Fiquemos bem, amigos. Não ousemos nos tornar vazios.

Escrevi outro texto sobre o assunto no Nintendo Blast, chamado As angústias de Shane, de Stardew Valley (Multi) e, na próxima semana, publicarei lá um sobre Celeste (Multi).



P.S.: ei, você não está só

Se você, amado leitor, percebe a sombra do suicídio se erguendo sobre seus olhos, fale com alguém. Falar é humanamente necessário. Procure ajuda profissional. Se já teve uma psicóloga e não gostou, tente outra; as pessoas são diferentes e nem sempre acertamos na primeira tentativa.

Se pensa que não pode pagar as sessões, busque indicação de clínica social: é quando os psicólogos separam uma parte de seus horários para atender pacientes que só podem pagar preços bem abaixo do normal ou até mesmo valores simbólicos. Ou ligue 188 para o Centro de Valorização da Vida (CVV) e fale com um voluntário, ele está lá exatamente porque as pessoas precisam falar.

Por outro lado, se você, amado leitor, conhece alguém que enfrenta essa situação, dê-lhe ouvidos. É difícil ouvir de alguém querido que pensa sobre morrer, principalmente quando vem de crianças e adolescentes. Gostaríamos de interrompê-las e dizer “nem fale uma coisa dessas”, mas o silêncio não apagará o sentimento danoso, só vai dar o espaço para que aumente sorrateiramente.

As pessoas precisam falar e ser ouvidas, mesmo quando não há resposta certeira que salve vidas. Você só pode amá-las.

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli


Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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