Análise: Voice of Cards: The Beasts of Burden (Multi) é uma boa pedida para uma tarde fria

Como a fórmula segue a mesma dos antecessores, o principal critério de análise qualitativa acaba sendo as outras iterações da própria IP em questão.

em 28/09/2022

A Square Enix anda bastante produtiva nos últimos anos, né? Além de estar vindo aí um Final Fantasy que aparentemente não passou por problemas durante o desenvolvimento (ao contrário de, sei lá, quase todos os anteriores na franquia), a empresa segue com um calendário de lançamentos carregado, incorporando principalmente outros jogos no seu já característico motor gráfico HD-2D, como DioField Chronicles, Triangle Strategy e Live a Live, se considerar alguns dos últimos produtos que colocou no mercado.


No meio desse balaio temos também a série Voice of Cards. Utilizando de um estilo narrativo que simula um RPG de mesa, a propriedade intelectual em questão está no terceiro título em um período de um ano desde seu lançamento e não tem grandes pretensões que não seja contar uma história que seja suficientemente envolvente.

Como a proposta desses games é bem simplista, o desenvolvimento contínuo acaba sendo facilitado. Vale lembrar que, embora possam parecer produções feitas a toque de caixa — o que não é exatamente uma mentira, mas isso seria desvalorizar o trabalho da galera envolvida — vale lembrar que, nos anos 80, não era incomum que sequências fossem lançadas com seis meses, menos de um ano entre as iterações. 




Afinal, foi assim que Mega Man, por exemplo, chegou tão facilmente ao seu sétimo título antes de desacelerar a partir do oitavo, bem como os cinco primeiros Final Fantasy ou Dragon Quest. Ou seja, esse tipo de produção acelerada por não depender de muitos recursos (só ver o nível da tecnologia nos idos dos anos 80 e 90, quando tais exemplos foram produzidos) não significa, necessariamente, um grau de qualidade inferior — tudo depende do equilíbrio entre esse escopo de produção e do que é entregue no final.

Dito tudo isso, Voice of Cards: The Beasts of Burden (Multi) é o terceiro jogo da série e apresenta a história de uma garota que passou a vida toda em um vilarejo subterrâneo como uma forma de se proteger contra os ataques de monstros da superfície, sem nunca conhecer o mundo exterior e sonhando com a luz das estrelas. Em determinado dia, seu vilarejo é atacado e a moça acaba sendo gravemente ferida enquanto fracassa em proteger todos os habitantes do local, mas é salva por um garoto chamado L’Gol, que a leva para a superfície, quando vê o céu pela primeira vez. 




Sendo uma representante do povo dos subterrâneos, a garota (que, por padrão, se chama Al’e, mas pode ser renomeada de acordo com a vontade do jogador) é capaz de aprisionar os monstros em cartas. Tendo isso em vista, ela é, juntamente com o garoto, cooptada pelo Senado de uma vila da região para capturar o poderoso monstro que vive nas minas próximas ao local. Uma vez aprisionada a entidade, a garota descobre que ela seria usada como uma arma de guerra contra um povo inimigo, sendo que o lar onde ela passou a vida inteira só foi atacado porque tal corpo governamental atiçou os monstros contra o lugar. 

L’Gol, então, também sendo feito de capacho durante toda sua existência, se rebela e acaba libertando a entidade recém-capturada contra os governantes e embarca em uma fuga ao lado de Al’e pelo deserto sem fim, onde conhecem, por ocasião, o estudioso Pulche e a domadora de monstros Tralis. Os quatro, por sua vez, seguem em uma jornada sem muita direção ou objetivo por um deserto onde o sol nunca se põe, para a infelicidade da pobre moça que sonhava em ver as estrelas.




Narrativamente, embora não seja tão interessante quanto The Forsaken Maiden ou até mesmo The Isle Dragon Roars, The Beasts of Burden ainda tem seu valor e carrega uma atmosfera característica do diretor criativo Yoko Taro, responsável pela série Nier/Drakengard, universo do qual esta edição em particular de The Voice of Cards também faz parte por conta de ligeiras menções, como é o caso do palco da aventura, o chamado Reino do Dia, onde o sol jamais se põe. 

Emulando a assinatura melancólica dos trabalhos de Taro, o título traz algumas discussões filosóficas, como é o caso da humanização dos monstros contra os quais lutamos e domamos — além do fato do roteiro deixar subentendido que a própria Tralis tem sangue monstruoso correndo pelas veias — e de referências sutis a outras alegorias, como é o caso do mito da caverna e do medo que os cidadãos do subterrâneo tinham do mundo superior. 




O fato de capturar os monstros em cartas ecoa também um sentimento de metalinguagem intrínseco, já que é uma narrativa contada primariamente através de cartas, mas que igualmente as utiliza como recurso dentro da trama, ao contrário das anteriores, que só trabalhava essa questão como uma maneira de construir a identidade e atmosfera. 

Inclusive, é notável a reutilização de vários dos assets dos games anteriores nesse quesito, especialmente no que diz respeito a monstros e NPCs. Isso pode até passar um atestado de preguiça pontual, que, sob uma perspectiva mais otimista, transmite a impressão de “ator fazendo um papel diferente nesta nova trama”, criando uma unidade temática entre as obras. É engraçado ver o vendedor de armas com uma história de background em Forsaken Maiden enquanto em The Beasts of Burden ele se mostra como um personagem diferente. 




Outro ponto que vale a pena chamar atenção é que, pela primeira vez, a narradora do jogo é uma mulher, que faz um excelente trabalho ao mesclar o tom soturno de Forsaken Maiden com o informal de The Isle Dragon Roars. É sempre uma percepção positiva quando você nota na própria entonação que a responsável pela locução acabou se divertindo um bocado com o trabalho, isso acaba trazendo um pouco mais de alma para o produto.

Apesar disso, The Beasts of Burden traz alguns aspectos que, assim como os antecessores tiveram, fazem com que o jogo tente se distanciar de seus iguais no intuito de se mostrar como uma experiência diversificada própria. No caso, a primeira alteração é que ele troca a exploração pelos oceanos por um verdadeiro deserto, ao menos nos cinco primeiros capítulos (de seis). Embora seja uma iniciativa válida, esse cenário acaba enjoando com o tempo pela repetição e morosidade temática. Ainda, enquanto o anterior tinha o oceano como mapa-múndi, ele só servia como um “hub” para ligar os cenários diferentes. 




Aqui, em contrapartida, é deserto a torto e a direito em um script linear. Isso cansa. Outra problemática é que a falta de um mote narrativo do começo ao fim cansa um pouco mais. Não é uma história com uma sinopse que dite o enredo. Trata-se de uma sucessão de acontecimentos protagonizados pelos personagens que não têm um objetivo claro determinado logo no começo. Uma vez que Al’e e L’gol escapam, eles se encontram perdidos, sem rumo, nesse mundo afora. É claro que logo aparecem algumas motivações para que a equipe se forme e a aventura continue seguindo, mas a falta de norte faz com que The Beasts of Burden perca a força, como unidade, na composição geral. 

Entretanto, a principal novidade é justamente a mecânica de capturar e utilizar os monstros em combate, tal como Dragon Quest V implementou décadas atrás. O novo Voice of Cards, então, permite a personalização das skills dos heróis, sendo necessário aproveitar os atributos arquetípicos de cada um na hora de atribuir um monstro para ser invocado por cada personagem nas batalhas em turnos.




Tal sistema de domar merece pontos pelo esforço, mas é mal executado no que diz respeito à obtenção de novas criaturas, pois elas podem ser aleatoriamente recrutadas após um conflito, além de existirem em versões básicas (de uma estrela) ou mais poderosas (até cinco estrelas). Isso é um design importante na ideia de trazer variedade para a mecânica, sendo fácil conseguir as cartas de uma só estrela, embora seja tedioso ficar dependente do RNG para conseguir as versões mais eficazes das ditas cujas.

Em vez de ficar grindando para, na sorte, conseguir cartas melhores, talvez o ideal seria evoluir as cartas que o jogador já tem ou dar um jeito de facilitar a seleção dos monstros de acordo com o progresso. Ficar dependente dos monstros de uma estrela não é legal. O pior é que, não bastasse depender do RNG, ainda é possível sacar uma cartinha igual, de ranking repetido, algo frustrante, visto que a repetida acaba não tendo valor algum. 




Tendo essa questão como maior revés, o título segue como mais uma entrada competente da propriedade intelectual à qual pertence. No fim, é só sentar e aproveitar a história, já que seu desafio é irrisório — não que Forsaken Maiden seja complicado, mas chegamos a um patamar diferente aqui. Isso porque mesmo a utilização de itens se mostrou simplificada, uma vez que mal foi necessário o gerenciamento de recursos ao longo da campanha. Para complementar, a escala de nível também se mostrou desequilibrada aqui, inclusive.

A despeito disso, Voice of Cards: The Beasts of Burden segue um produto interessante e até vale a jogatina — especialmente pela ousadia de oficializar a narrativa dentro da mitologia de Nier/Drakengard —, mas, em critério de comparação, o antecessor direto acaba sendo superior como experiência de jogo. Entretanto, isso não faz com que um novo Voice of Cards, num futuro próximo, repetindo suas estruturas de sempre e dentro dessa periodicidade confortável, não seja bem-vindo. 




Isso é porque a sua história, sem rumo, acaba sendo dois dedos menos entusiasmante. Afinal, como o game depende demais de uma progressão envolvente de roteiro, ele aqui sai um pouco prejudicado. Em contrapartida, se por algum acaso a próxima entrada da série acertar a mão em um enredo superior, certamente será tido como um jogo superior também. 

Prós

  • Menções à mitologia de Nier/Drakengard torna o produto um pouco mais ousado;
  • Nova narradora se destaca em relação aos anteriores; 
  • Tentativa válida — mesmo que com seus empecilhos — de trazer o sistema de domar monstros como forma de diferenciar esse título dos demais na mesma série.

Contras

  • Cenário de deserto fica bem chato com o tempo;
  • Sistema de RNG para recrutar novos monstros é frustrante.
Voice of Cards: The Beasts of Burden  — PC/Switch/PS4 — Nota: 6.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix


É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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