Análise: Endling - Extinction is Forever (Multi) é um jogo de sobrevivência sobre consciência ecológica

Acessível, coerente e imersivo em seu game design, Endling aproxima-nos de alguns dos temas mais importantes deste século.

em 03/08/2022

Desenvolvido pelo estúdio espanhol Herobeat Studios e publicado pela HandyGames, Endling - Extinction is Forever (Multi) é um jogo indie de adventure e simulação com elementos de stealth em torno da luta diária de sobrevivência de uma raposa e seus filhotes em meio a um contexto de desmatamento, poluição, pobreza e exploração ambiental. Com ideia original de Javier Ramello, o jogo procura criar uma experiência imersiva e interativa que seja, a um só tempo, um constante exercício de empatia social e antiespecista e um desafio crescente de sobrevivência diante da hostil atividade ecológica humana.

Um design narrativo cíclico e trágico, mas que nos deixa lágrimas de esperança

Em um universo alternativo, mas ambientado de acordo com premissas do capitalismo contemporâneo, o jogo conta a história de uma raposa — presumivelmente a última da Terra — que tem sua floresta queimada pela ação humana. Após o incêndio, a raposa dá à luz quatro raposinhas, as quais podem ter suas cores personalizadas no nascimento, mas não possuem nome (nem mesmo a mãe). A partir de então, o jogador, controlando a mãe raposa, precisará guiar seus filhotes e sair à procura de comida e abrigo dia após dia enquanto acompanha o crescimento dos filhotes.

De um ponto de vista formal, o design narrativo pode ser definido como cíclico e trágico. Por um lado, a narrativa é cíclica, porque a história é contada ao longo de algumas dezenas de dias que são vivenciados pelo jogador de forma homogênea e intermitente, alternando períodos noturnos de caçada e exploração com períodos diurnos em que preferencialmente as raposas devem ser colocadas para dormir em algum abrigo.


Por outro lado, trata-se de uma narrativa de estilo trágico, porque o design leva a uma sensação de confronto com o destino, bem como a um desafio que vai se intensificando ao passo que o cenário se torna mais hostil à raposa e seus filhotes, bem como progressivamente mais difícil passa a ser para se encontrar comida e um local seguro para repousar. Contudo, do ponto de vista da execução e do conteúdo da trama, não se trata necessariamente de um enredo pessimista.

A história ocasionalmente lembra o jogador que, mesmo no meio de um cenário de atrocidades de que somente a humanidade é capaz de causar, sempre há pessoas empáticas com outros animais, dando-lhes o que comer, acariciando-os e protegendo-os. Aliás, o enredo mostra particular sensibilidade a crianças e pessoas que acabam em um cenário de pobreza e marginalização não muito diferente daquele em que habitam os animais remanescentes.



É importante observar também que a narrativa se desenrola sem nenhuma linha de diálogo ou narração. Diferentemente de jogos como Okami (Multi) e Stray (PC/PS4/PS5), a raposa de Endling é um animal não-falante e analfabeto que não conta com um parceiro falante/leitor para traduzir mensagens ou falar em seu lugar. O jogador, assim como a raposa, precisa lidar com um mundo no qual não é possível saber o que os humanos conversam entre si ou escrevem em suas placas.

Tudo o que se sabe sobre os planos dos humanos só se pode inferir pela visão, audição e olfato, o qual se traduz parcialmente em imagens, para que o jogador possa ter maior noção da sensibilidade olfativa do animal. Essa escolha de design é muito pertinente, porque aumenta a imersão diante do contexto da criatura, intensificando o temor e a incerteza diante dos humanos.

O jogo traz uma experiência de persuasão que só seria possível em videogames. Os desenvolvedores souberam usar o que Ian Bogost, em seu livro Persuasive Games: The Expressive Power of Videogames (2007),  chama de “retórica procedural”. Desse modo, Endling não apenas diz algo que poderia ser contado em imagens e palavras fixas, mas também comunica algo dependente de se assumir o papel interativo de um animal no colapso de seu habitat natural, ajudando a expandir a consciência ética para além do especismo humanista.

Infelizmente, há também alguns defeitos na execução dessa proposta. Na maioria das vezes, o design dos personagens entrega facilmente a bondade ou a maldade de cada um deles e a convergência das expectativas diante desses estereótipos não contribui para tornar verossímil o comportamento do animal, que se sente facilmente seguro diante de algumas pessoas e toma atitudes um tanto quanto “humanizadas”.

Outro problema em “humanizar animais não-humanos” envolve um texugo que tem uma relação de amizade com a raposa. Experiências como essas poderiam ser "normalizados" em jogos mais fantásticos, mas, para essa proposta mais naturalista de Endling, acabam sendo incoerências desconcertantes. A despeito disso, o adventure é ainda um jogo muito mais crível e bem-sucedido nesse aspecto do que a maioria dos que protagonizam animais não-humanos.

Um aspecto particularmente interessante é a forma como o fio condutor da história é dado por uma investigação do desaparecimento de um dos filhotes da raposa. A “investigação” se dá por ocasionais descobertas de objetos e odores que a fazem imaginar um cenário sobre o que pode ter ocorrido no local em que o objeto é encontrado. Esses cenários imaginários podem ser revisitados nos sonhos da personagem, enquanto dorme em um abrigo. Embora o desdobramento dessa investigação seja um pouco clichê, promove a exploração de cenário e a conexão da raposa com questões sociais à sua volta.

Um gameplay básico, coeso, acessível e um pouco repetitivo 

Enquanto jogo de aventura e simulação de sobrevivência animal, a gameplay de Endling pode ser resumida em dois tipos de sistemas: aqueles que simulam a sobrevivência em um cenário de perseguição e escassez de comida; e aqueles que são usados para uma aventura de investigação sobre o paradeiro de uma das raposinhas capturadas por um humano. Para ambos os casos, o jogo usa mecânicas básicas e um level design simples que resultam em uma experiência um pouco curta e repetitiva, mas acessível, eficiente e coerente com a proposta.

Embora com gráficos completamente em 3D, a movimentação é restrita a duas direções com uma câmera fixa que pode ser levemente deslocada para um lado ou outro. Porém, isso não significa que a movimentação seja somente side scrolling; há caminhos em que a movimentação é de cima para baixo, em diagonal e de formas irregulares. O mapa possui uma extensão moderada, adequada para a curta duração da noite, e permite uma série de atalhos e caminhos alternativos que podem ser destrancados ou trancados no decorrer dos dias.


Essa escolha de design está relacionada a dois fatores: à experiência da intervenção de outros animais e principalmente dos humanos no cenário; e ao uso de habilidades (algumas delas, opcionais) que as raposinhas podem adquirir, como a de pular e a de se esgueirar. A expansão das áreas acessíveis também acompanha o avanço da história.

Durante a exploração, o jogador precisa furtivamente evitar ser pego por humanos hostis ou por suas armadilhas. A depender do humano, pode ferir a mãe raposa ou mesmo matá-la. Além disso, é preciso sempre estar perto das raposinhas, não as deixar com fome, dar-lhes um abrigo seguro quando forem dormir e protegê-las de outros animais; as corujas, por exemplo, podem atacar os filhotes de raposa. É uma pena, porém, que os elementos de stealth tenham sido subdesenvolvidos para a proposta.


Assim como na vida real, o principal objetivo diário da raposa é encontrar comida. Há diversas formas de alimentos, alguns mais nutritivos que outros. É possível colher frutos, caçar ovos de pássaros, coelhos, galinhas, ratos ou peixes, e mesmo revirar o lixo atrás de restos. Em todo caso, é preciso pegar o alimento com a boca e largá-lo perto dos filhotes para que o comam, pois eles não sabem pegar comida sozinhos — é somente mais tarde que as raposinhas podem aprender a ajudar um pouco a mãe a pegar comida.

Em paralelo, deve-se seguir os rastros visuais e de cheiro, indo atrás de uma das raposinhas capturada no começo do jogo. Infelizmente, não há dificuldade intelectual nenhuma na investigação, o percurso é muito linear e simples, e somente mais ao fim que alguns poucos obstáculos aparecem para dificultar seguir os rastros que servem de fio condutor da trama.

Arte e música simples, emocionantes e coerentes com a proposta

Com direção de arte de Pablo Hernández, Endling traz belas paisagens naturais, nas quais é possível sentir a passagem das estações, e ao mesmo tempo cenários e objetos que exibem segregação social, exploração animal, desmatamento e poluição, tudo isso coexistindo com as dificuldades dos animais remanescentes. Essa cenografia entra em sintonia com a experiência trágica de gameplay, levando o jogador a perceber que cada vez mais a raposa se torna dependente das atividades humanas para conseguir comida, sendo-lhe gradualmente mais importante invadir propriedades ou vasculhar o lixo.

Embora pudesse ser mais detalhado e expressivo o design facial, bem como os efeitos de fogo — um elemento central na temática do jogo —, os modelos cartunescos em 3D são bastante carismáticos e com animações fluidas e graciosas, no caso das criaturas, e intimidadoras, no caso dos inimigos humanos, que possuem um estilo punk misturado com referências interioranas. Ao mesmo tempo, há uma variação atenta ao figurino para os humanos indiferentes em relação à raposa, com roupa de trabalhador, e, para os marginalizados, trapos e cobertores, enquanto vítimas da miséria e da desigualdade.


As escolhas de figurino, assim como as de cenário, também se relacionam à gameplay. Os personagens apresentam diferentes padrões de comportamento, os quais, embora sejam baseados em uma IA simples, são eficientes para a mensagem do jogo. O que poderia ser mais elaborado, e que faz um pouco de falta, é uma maior interação com humanos pacíficos, bem como rotinas mais claras, críveis e interessantes para os NPCs.

A direção de som acompanha bem o design visual do jogo, com especial atenção a efeitos sonoros para sons da mata, das máquinas e dos animais, como latidos de cães e chirripiados das corujas. Poderia, no entanto, ter uma maior variedade de sons para as raposas e maior detalhe com o som das passadas em diferentes biomas.

A parte da trilha sonora, composta por Manel Gil-Inglada, é particularmente encantadora e elegante. Embora não muito variada, e simples em alguns aspectos, a OST é muito adequada tanto como música ambiente interativa, fundindo-se dinamicamente à atmosfera, quanto também como música de fundo, quando se sobressai em momentos emocionantes de adrenalina. Em estilo cinematográfico minimalista, dando preferência a cordas, percussão e efeitos de eco, as melodias tendem a ser espaçadas, claras e sutis, com uma harmonia romântica sólida, com ênfase a tons menores, e bem-feitas incidentais dissonâncias e vibrações para momentos de tensão.

Uma breve e emocionante experiência com sensibilidade ecológica e à mídia dos videogames

Embora com um gameplay um tanto simples e repetitivo, e a despeito de ter pontos em que poderia melhorar tanto em design narrativo quanto em audiovisual, Endling - Extinction is Forever (Multi) possui um trabalho audiovisual encantador, um design coerente e bem pensado, condensando de forma lúdica e intuitiva aspectos importantes de problemáticas socioambientais. Sua principal virtude está em conseguir imergir o jogador na vida animal de uma forma íntima e crível que poucos jogos conseguem. O título é indicado tanto para amantes de adventures mais casuais quanto para quem queira apreciar uma experiência narrativa imersiva sobre um dos mais importantes temas deste século.

Prós

  • Gameplay acessível, intuitivo e bem conectado com a proposta narrativa;
  • Design narrativo simples, sem diálogos e bem projetado para criar uma conexão íntima e crível do jogador com os instintos de um animal não-humano e sua prole;
  • O enredo aborda com sensibilidade questões sociais e ambientais de suma importância para o nosso tempo;
  • Uma bela direção de arte, com um figurino atento às disparidades sociais e uma cenografia que condensa as ruínas da natureza com o império da ambição humana;
  • Boa direção de som e trilha sonora, com escolhas que conversam com a ambientação e com as dinâmicas de tensão, furtividade e relaxamento da jogatina.

Contras

  • Mecânicas pouco desenvolvidas, sobretudo do ponto de vista furtivo;
  • Level design um tanto repetitivo e limitado;
  • O level design e a narrativa poderiam propiciar maior interação com NPCs;
  • Inimigos com uma IA muito básica;
  • Alguns comportamentos animais pouco verossímeis que pontualmente contrastam com o tom naturalístico geral do enredo;
  • Trama um tanto básica e clichê;
  • Embora com um bom audiovisual, poderia ter maior variedade musical, e o design facial, efeitos de fogo e alguns outros aspectos visuais centrais para a temática do jogo poderiam ser mais refinados.
Endling - Extinction is Forever — PC/XBO/PS4/Switch — Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela HandyGames

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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