Análise: Stray (Multi) é um produto perdido no limiar entre o game e o meme

O famigerado “jogo do gatinho” é mais uma ideia pouco trabalhada do que uma execução sólida de game design.

em 30/07/2022

A palavra meme foi cunhada originalmente por Richard Dawkins em um livro chamado “O Gene Egoísta”, em que descreve que a cultura humana evolui similarmente à nossa própria biologia, cunhando o termo como um trocadilho para gene, uma vez que as ideias são passadas de geração em geração, desenvolvendo-se de maneiras diferentes, dependendo da abordagem, e tomando novas formas de acordo com que vão evoluindo. Meme não é só a piada da internet, mas a definição de como uma mera ideia se apresenta ao longo da evolução intelectual. Por sua vez, anunciado no mesmo evento virtual em que a Sony apresentou o PlayStation 5 ao mundo, Stray logo chamou atenção por conta da proposta única de controlar um gato em uma inóspita ambientação cyberpunk. 

Mostre mais, mie menos

O começo de Stray é minimalista ao máximo, com o nosso protagonista felino morando em um local claramente construído por humanos, mas totalmente abandonado e tomado pela vegetação. Durante uma espécie de migração, o gato acaba escorregando e caindo em um depósito de lixo. Sem saber como voltar, só resta a ele tentar escapar de lá, quando acaba entrando em uma cidade escura e sem qualquer sinal de humanidade viva. 

Na sua busca por uma saída, ele se vê perseguido por estranhas formas de vida mecânica, os Zurks, mas consegue escapar para dentro de um laboratório antigo, onde conhece o drone B-12, que passa a acompanhá-lo durante sua jornada e serve também como uma interface textual para o próprio jogador conseguir se comunicar com o resto dos elementos daquele mundo, conversando com os outros robôs que tomaram conta do local e traduzindo a linguagem estranha que é aparentemente o idioma predominante de lá.




É a partir de conversas fragmentadas com os robôs habitantes e recuperando as memórias do pequeno droide que conhecemos um pouco mais a respeito daquele local, como o fato de que se trata de uma cidade murada em que há diferentes níveis de habitação que variam de acordo com a altura da torre central de comando. Também descobrimos que, por algum motivo, a humanidade está extinta e os robôs assumiram seu lugar devido à assimilação de comportamento através de inteligência artificial. 

Sob tal ponto de vista, Stray traz uma narrativa ambiental em boa parte das vezes, visto que nós não prosseguimos na curta campanha por cutscenes, mas através da interação com os elementos dos cenários, inclusive fechando algumas sidequests pontuais que nos ajudam a entender mais daquele mundo. 




Decorrente disso, muito da progressão se dá justamente na estética, pois uma vez que o gato vai subindo a torre, o ambiente vai se tornando cada vez menos marginal, revelando-se em um exemplo consciente de “mostre mais e fale menos”. O problema dessa linha está, infelizmente, na reprodução de várias passagens que deveriam ter maior importância no andamento da história, só que na prática acabaram se mostrando extremamente anticlimáticas, previsíveis ou inverossímeis. 

Mesmo quando o jogo decide apostar na estratégia de falar em vez de apenas mostrar, a própria escrita parece sem ritmo, capenga por não ter um desenvolvimento progressivo e crescente. Ou Stray decide começar a descarregar algumas paredes de diálogo sem esdrúxulo algum, ou ele faz revelações importantes como se fosse alguém tentando lembrar o que almoçou no dia anterior. Não há uma dose correta nessa forma de exposição. Assim, fica evidente que essa tática de mostrar se dá porque ele não sabe dizer.




E mostra muito bem, por sinal. Stray é uma clara ilustração de jogo que não faz nenhum malabarismo com a engine para conseguir ser esteticamente bonito e atrativo. Um zoom aqui ou acolá acaba revelando algumas texturas de baixa qualidade, como a própria pelagem do gato, mas é um atestado de que parecer um game de PlayStation 3 não significa que ele vá ser necessariamente danoso à nossa visão, algo que Babylon’s Fall (que, ironicamente, é outro título cuja proposta básica é subir uma torre) poderia ter aprendido.

Levando o “menos é mais” ao limite

O padrão minimalista de Stray é perceptível até mesmo na sua jogabilidade simplificada. Além de se movimentar, o jogador é capaz de fazer o gatinho miar (normalmente para atrair Zurks), correr, interagir pontualmente com o B-12 e saltar. Essa última ação, especificamente, não pode ser feita livremente, de acordo com a vontade e o manejo do jogador, pois se tratam de saltos pré-calculados, cabendo a nós apenas encontrar o melhor posicionamento para que apareça o indicativo de que a ação é possível. 




Nisso, observa-se uma oportunidade perdida, pois Stray poderia assumir alguns elementos de jogos de plataforma tridimensionais de baixa intensidade, como é o caso da série Banjo ou mesmo o recente Kirby and the Forgotten Land (Switch), e trazer uma variedade maior de gameplay. Ainda, embora esse sistema automático funcione em parte das vezes, na outra parcela desses momentos eles se mostram disfuncionais por acabar se resumindo a um chato pixel hunting, essas situações em que o elemento interativo teima em surgir na tela, aparecendo e escapando sem estabilidade.

Nota-se que o felino pode também interagir com elementos do cenário e com outros robôs, sendo possível arranhar tapetes e portas, bem como se aninhar em certos lugares específicos ou ainda roçar em determinados androides amigáveis. Entretanto, nada disso é realmente importante no andamento da trama ou sequer tem utilidade prática em termos de jogabilidade.




Isso chama atenção porque há quem diga que uma das principais graças de Stray é a maneira como o título consegue emular com perfeição certos comportamentos felinos aparentemente aleatórios. Esse argumento só fortalece a ideia de que se trata de um produto feito com um enfoque de convencimento principalmente na premissa básica e removendo qualquer dispositivo que poderia complementá-la. 

Inclusive, mesmo essa execução acaba sendo falha. Veja bem, se a experiência propiciada por Stray aos donos de gatos é diferente de quem não é um entusiasta por felinos, percebe-se mais um nítido deslize em capitalizar em cima desse sentimento, uma vez que seria simbólico se fosse adicionado, nem como um bônus de pós-jogo, uma forma de personalizar as cores do gato, fazendo com que o jogador pudesse reproduzir seu próprio mascote na tela. No PC sempre existem mods, mas não é a mesma coisa que ter um editor nativo dentro da aplicação em si. 




O principal mérito de Stray é que, tirando o potencial desperdiçado e as atividades paralelas que não servem para absolutamente nada para além do fortalecimento do grande meme que é o jogo, controlar o gato em si é uma experiência surpreendentemente fluida. Aliás, o destaque técnico fica na agilidade felina com que conseguimos nos movimentar com tamanha naturalidade — exceto quando tentamos encontrar o melhor ângulo em nossa caça ao pixel referente ao comando do próximo pulo. 

O único problema em relação a tamanha fluidez é que o título não conta com nenhum recurso de motion sickness, sendo que a melhor forma de fazer isso é improvisar e diminuir a taxa de quadros de 60 fps para 30 fps quando a dor de cabeça começa a bater. 




Ah, outro tropeço do game está na trilha sonora, que também segue essa tendência minimalista e memética ao apostar em uma pegada eletrônica lo-fi de ambiência, onde jaz o revés. Pois bem, a trilha sonora serve para embalar os acontecimentos de um jogo, mas que notoriamente tem a força de poder fazer o contrário, de trazer mais intensidade a certos momentos considerados cruciais na trama, fortalecendo, inclusive, aquelas situações supracitadas de anticlímax.  

De tal forma, a impressão deixada pela música de Stray é que a nossa aventura felina não passa de um grande passeio com música ambiente de elevador ou de uma sessão de concentração embalada por aquela stream eterna de música lo-fi com o vídeo da mocinha estudando. Auditivamente, Stray é monótono demais (no sentido básico da palavra, “mono-tom”, um único tom) e essa unidade temática só corrobora aquele sentimento de que tudo o que o estúdio tentou fazer foi fazer uma seleção especial do melhor da cultura da internet e jogar no liquidificador para ver o que acontece. 




Por conseguinte, falando um pouco de forma particular, em mais de um momento eu me vi diminuindo a música nativa do jogo e decidi tocar a trilha sonora de Nier: Automata (escolhida por afinidade temática) no fundo para ver se tornava a ação na tela minimamente memorável e engajante. Recomendo, viu?

 O (não) jogo de Schrödinger

Stray não é um produto carente de qualidade. Longe disso. O problema é que o produto, esquelético como é, não consegue se expressar como um game completo. Embora não abdique de ser um jogo — como, por exemplo, Alfred Hitchcock’s Vertigo (PC) —, Stray segue no limiar fronteiriço no sentido de fazer o mínimo para não perder tal condição dentro de padrões ludológicos. Em outras palavras: Stray só não é um passeio glorificado por conta de certas sequências de perseguição, stealth e puzzle (por mais simples e pouco inspiradas que sejam) que trazem a recompensa do progresso, no caso de sucesso, ou um game over no caso do fracasso.




Uma das maiores reclamações, inclusive, diz respeito à sua duração, mas isso nunca foi um impeditivo na indústria de games. Hotline Miami (Multi) é um clássico indie hardcore incontestável e tem a mesma duração de Stray, a fim de comparação. O mesmo vale para Portal (Multi), com seus engenhosos puzzles que não duram além de dez horas. A opção por tornar Stray tão curto, inclusive, é acertada, porque uma experiência mais longa apenas tornaria suas limitações ainda mais evidentes. 

A renúncia de uma jogabilidade diversa em prol desse minimalismo acaba simplesmente reduzindo-o ao produto meme que é. É mais uma ideia que alguém teve e só quis brincar um pouco com ela do que realmente um conceito trabalhado a fim de explorar todas as possibilidades que tornariam a campanha — que o estúdio responsável aparentemente trabalhou artesanalmente para forjar — rica e justificada. Nesse aspecto, o game me lembra muito Tasomachi: Behind the Twilight (PC), onde o jogador encontra uma construção de mundo esteticamente minuciosa que foi severamente prejudicada porque não souberam como utilizá-la. 




É, inclusive, possível especular que Stray só recebeu essa atenção toda por ter sido revelado no mesmo evento de apresentação do PlayStation 5, uma vez que o Annapurna, a empresa responsável pela distribuição, tem uma série de outros produtos com similar viés de potencial desperdiçado e/ou limitado, como Sayonara Wild Hearts (Multi), The Artful Escape (Multi), ou até Neon White (PC/Switch), e a maioria deles fica restrita sempre a um mesmo perfil de jogador mais nichado.

A despeito de tudo isso, não leve Stray a mal porque ele não é ruim. O problema é que é impossível deixar de se lamentar diante de tanto potencial desperdiçado, especialmente após vislumbrar o que ele poderia ter sido durante a própria jogatina. Há uns vinte anos, teria sido um experimento interessante, só que fica complicado quando a indústria já avançou o suficiente a ponto de conseguir aliar essa proposta minimalista a uma jogabilidade diversa. Não estou pedindo um novo The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Switch/Wii U), que faz isso com maestria, mas até Ico (PS2), de 2001, já tinha conseguido um feito similar lá atrás. 

Um produto superestimado pela força do meme

Embora nós conheçamos o termo hack como um vocábulo atribuído normalmente à ciência da computação, a palavra tem um significado bem mais amplo quando utilizada na língua inglesa. No geral, ela se refere ao entendimento amplo de um sistema e, em seguida, do aproveitamento de suas falhas e características a nível técnico. 

Tendo isso em vista, Stray é um hack, visto que ele pega coisas que a internet reproduz incessantemente como memes — gatos, estética cyberpunk, lo-fi, vaporwave — e condensa em um único produto que conseguiu exposição o suficiente para que fosse intensivamente comentado por seu público. Não é necessário fazer mais do que o mínimo, já que se aproveita de brechas no sistema para suceder em seu objetivo. Nesse aspecto, Stray é, sem dúvidas, um inquestionável sucesso. 

Prós

  • Construção de mundo imersiva e exemplar;
  • Consegue mostrar sem ter que falar;
  • Gratificante fluidez na movimentação básica do gato;
  • Se fosse mais longo, os problemas seriam mais evidentes.

Contras

  • Fracassa nos momentos em que precisa falar para mostrar;
  • Momentos importantes da narrativa expostos de forma anticlimática;
  • Apostou demais na ideia e entregou pouco na execução;
  • Potencial desperdiçado que pode ser observado a anos-luz de distância.
Stray — PlayStation 4/PlayStation 5/PC — Nota: 6.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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