Um chavão bastante comum na crítica de videogame é quando nós dizemos que um jogo pode ser bom, mas que precisaria de uma sequência para corrigir seus eventuais problemas e atingir uma plenitude inquestionável. Dessa forma, é um sentimento muito bom ver uma continuação ganhar vida e que, por sua vez, consegue revisar seus defeitos com maestria e saná-los nessa nova iteração. Nem todos os games conseguem esse feito, mas AI: The Somnium Files — NirvanA Initiative (Multi) aprendeu com os tropeços e se mostrou uma continuação de respeito.
Um mistério sobre encontrar a cara-metade, mas não do jeito que você pensa
A história de AI: The Somnium Files — NirvanA Initiative começa com o cadáver
de Jin Furue sendo encontrado em um campo de beisebol. A questão é que apenas
metade desse corpo foi identificada no tempo presente, já que a outra parte
havia aparecido misteriosamente em um programa de auditório seis anos antes,
mas todas as análises forenses indicam que são as duas partes de um só
indivíduo.
Mais do que tentar descobrir quem é o responsável pelo assassinato, o verdadeiro mistério logo se mostra bem claro: quando esse crime foi cometido? Afinal, são duas metades de um mesmo corpo cuja precisão do corte que as separou foi a nível molecular e, ainda, nenhum dos lados apresentou qualquer efeito de decomposição aparente.
O jogo então passa a acompanhar dois protagonistas distintos, Ryuki Kuruto e
Mizuki Okiura, na investigação desse mistério. Enquanto Mizuki é uma
personagem do primeiro game que agora retorna em um papel de protagonista,
Ryuki é um novo deuteragonista, sendo que ambos são membros da ABIS, órgão da
polícia cujo nome é uma sigla em inglês para Esquadrão Avançado de
Investigação Cerebral.
Um dos principais méritos de NirvanA Initiative é a forma como ele conduz o
roteiro, dividido primariamente entre dois períodos distintos: o passado,
quando a primeira metade do cadáver foi encontrada por Ryuki; e o presente,
quando a outra parte veio parar no caminho de Mizuki. O entendimento logo de
cara pode parecer confuso, com duas linhas narrativas se entrecruzando, mas
essa sequência tem uma didática muito maior nesta do que no antecessor.
Outro aspecto importante é que não é necessário ter jogado o primeiro título
para entender a história desta continuação. Ela consegue se sobressair
individualmente — o que é uma direção excelente para um produto
consideravelmente nichado como este — sem depender de conhecimento prévio.
Aliás, ele até pergunta ao jogador, em uma interessante dinâmica de quebra de
quarta parede, se ele jogou o antecessor. Caso a resposta seja negativa,
NirvanA Initiative simplesmente lima as linhas que fazem referências ao
AI: The Somnium Files original.
Inclusive, em comparação com o antecessor, é válido chamar a atenção que esta
sequência emplaca um ritmo de narrativa muito mais ágil e imersivo do que o
primeiro, que custa para pegar no tranco e realmente imergir o espectador.
Agora, tudo é muito mais dinâmico, com informações menos floreadas e mais
diretas, além de lembretes pontuais na própria tela que evitam que o jogador
tenha que ir até os bancos de dados para lembrar de alguma informação em
específico.
A construção da atmosfera também passa pelo mérito estético, trazendo não
apenas gráficos bonitos, mas também interfaces extremamente chamativas e
condizentes com a atmosfera geral da trama e do universo em questão. Os
designs dos interessantes personagens causam boa impressão ao ponto de se
tornarem extremamente reconhecíveis, mais um trabalho certeiro de Yusuke
Kozaki, que também assinou obras como a série
No More Heroes, Fire Emblem (Awakening e Fates, do 3DS) e
Daemon X Machina
(Switch/PC).
Adicionalmente, os conceitos de ficção científica apresentados são muito
consistentes, colaborando para a construção de um mundo suficientemente
imersivo e que desperta a curiosidade da audiência. Nesse aspecto, ele não
fica distante de nomes consagrados do gênero, como
Astral Chain
(Switch) ou, no caso da animação japonesa, Psycho-Pass, com quem NirvanA
Initiative compartilha uma premissa similar, mas ainda original o suficiente
para conseguir brilhar com sua própria luz.
O único problema na progressão é que poderia haver um sistema melhor de
configuração para acelerar a velocidade do texto automático ou das animações,
talvez podendo configurar individualmente esses dois momentos, já que eles
podem se mostrar enfadonhos e repetitivos em alguns pontos determinados.
Reduzir a uma visual novel é uma ofensa ao que AI: The Somnium Files tem a oferecer
Um dos principais debates a respeito de uma visual novel está até que ponto
uma desse formato pode ser considerado um jogo, visto que o grau de desafio
e jogabilidade prática costuma ser consideravelmente baixo, não se
distinguindo praticamente de uma narrativa multiforme ou hipertextual —
os filmes interativos da Netflix, por exemplo, se encaixam aqui.
AI: The Somnium Files, entretanto, consegue fazer um trabalho muito bom no
que diz respeito a ir além de simplesmente apertar o botão para prosseguir
no diálogo e, eventualmente, fazer uma escolha que irá fragmentar a
história. Há sequências práticas de jogabilidade e puzzles que trazem maior
dinamismo ao título e colocam o game um patamar acima dessas
experiências.
No caso, isso tem a ver justamente com as atividades da ABIS, visto que,
como o próprio nome indica, é capaz de investigar os suspeitos através do
interrogatório mental. Afinal, nem sempre conseguimos a informação que
queremos só na base da conversa, então ele precisa ser levado para a
delegacia para um papo mais aprofundado.
Nessas sequências, o jogador assume o controle direto de Tama, uma
inteligência artificial que é inserida nas microrrealidades das mentes dos
interrogados chamadas Somnia. No caso, elas consistem em salas fechadas com
puzzles que precisam ser resolvidas dentro de um limite de tempo de seis
minutos, funcionando quase que num estilo escape room. Algumas ações tomarão
mais tempo do que outras, fazendo com que o jogador tenha que tomar as
melhores decisões de otimização de tempo para ser bem-sucedido.
Para trazer ainda um fator a mais de complexidade, vale chamar a atenção de
que os Somnia são mundos surreais na definição do movimento cultural,
baseando-se na construção do onírico, o mundo dos sonhos, em que as coisas
podem acontecer sem motivo algum ou cuja física simplesmente não corresponde
à do mundo real. Dessa forma, é necessário pensar nas propriedades de certos
elementos e imaginar qual seria sua função contrária em um mundo reverso
para, então, conseguir completar os quebra-cabeças propostos pelo
game.
Tais segmentos também estavam presentes no primeiro AI: The Somnium Files,
mas a aplicação prática da ideia neste segundo título também é a
consolidação da ideia de que eles ouviram o feedback e identificaram o
problema na morosidade desses momentos e trabalharam para aprimorar a
experiência prática proporcionada por eles. Agora eles são divertidos, o
mínimo que se espera para qualquer jogo de videogame.
Esses períodos de Somnium, por fim, também têm uma função importante na
fragmentação da história. Dependendo do desempenho de Tama (e, por
consequência, do jogador), a árvore narrativa se fragmenta, trazendo
desfechos diferentes para certos nós da trama, mas nada realmente
substancial por tudo seguir um fluxo cuja percepção é linear em demasia.
Talvez o único revés considerável seja a ausência da possibilidade de
criação de mais progressos de save, principalmente para facilitar a viagem
por esses supracitados momentos de bifurcação do script.
Outro aspecto de gameplay está em certas sequências de investigação em que o
jogador pode contar com um arsenal de habilidades — além da leitura de
mentes — concedida pelo porte de Tama (e, em certos momentos, de Aibo, que
retorna do primeiro jogo), que, no mundo físico, se manifesta como um
pequeno robô-globo ocular que compartilha a visão com os
protagonistas.
Por fim, outras pequenas mecânicas, como os compêndios de informações com
dados a respeito dos personagens e do universo de AI, bem como a interação
de “bichinho virtual” que o jogador pode ter com a mascote Tama, ajudam a
trazer um sentimento de saciedade para o produto no que diz respeito a
conteúdos adicionais.
Uma verdadeira aula de como se produzir uma sequência
A existência desta série é muito interessante no que diz respeito ao debate
do que faz uma experiência interativa ser ou não um jogo. Afinal, se for
fomentar uma comparação, AI: The Somnium Files traz elementos de
jogabilidade que oferecem desafios ao jogador que certas visual novels que
se vendem como game não chegam nem perto de corresponder — Ace Attorney, não
finja que não é com você.
No caso de AI: The Somnium Files: NirvanA Initiative (Multi), é muito
bom ver que o mercado ainda se preocupa em produzir sequências que têm como
objetivo primário tentar oferecer um refino técnico ainda superior à do
original, em vez de tentar surfar a onda do antecessor e oferecer a mesma
experiência levemente repaginada. É uma continuação de respeito, capaz de
ser aproveitada por quem passou reto do primeiro título e extremamente
recomendada para entusiastas de histórias de ficção científica ou de
detetive, fãs de animação japonesa ou todos ao mesmo tempo. Inclusive, a
Spike Chunsoft está perdendo tempo em não expandir o universo em outras
esferas multimídia, como animes, mangás e novels (os livros, no caso), porque potencial há.
Prós
- Narrativa imersiva e com o bônus de não precisar conhecer o jogo antecessor;
- Apresentação atmosférica e estética de tirar o chapéu;
- Segmentos de puzzle suficientemente interessantes e que alternam bem com o ritmo dos momentos textuais e de investigação;
- Atenção aos detalhes e conteúdo adicional de caráter enciclopédico muito úteis no entendimento amplo do universo do game;
- Oferece uma qualidade técnica substancialmente superior à do primeiro jogo.
Contras
- Seria bom um controle maior na velocidade do texto e das animações;
- Poderia ter mais espaços para salvar o jogo;
- Uma variedade maior e mais radical de ramificações narrativas seria a cereja do bolo.
AI: The Somnium Files - NirvanA Initiative — Switch/PC/PS4/XBO — Nota: 8.5Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Thais Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Spike Chunsoft