Análise: NORCO (PC) é um adventure simples e breve, mas um dos mais bem escritos já feitos

Uma imersiva, sombria e bizarra distopia futurística assustadoramente próxima da realidade.

em 29/04/2022



Desenvolvido pelo estreante estúdio indie Geography of Robots e publicado pela Raw Fury, NORCO é um graphic adventure com mecânicas de point-and-click com uma ambientação de realismo fantástico sombrio. A aventura se passa em um futuro próximo distópico em Norco, uma cidade real do sul da Louisiana, nos Estados Unidos, e busca abordar problemas ecológicos e sociais locais em torno da indústria petroquímica, além de problemas mais amplos em torno da religião e da tecnologia.


NORCO tem como proposta trazer uma estética audiovisual gótica, surreal, retrô e cyberpunk, uma narrativa misteriosa, alegórica, profunda e rica com alternância de tempo-espaço com protagonistas diferentes. Em termos de gameplay, temos a presença de mecânicas simples de combate intercalado com uma variedade de puzzles de senhas e árvore de diálogos que aproveitam elementos tecnológicos de seu mundo ficcional. A seguir, explicaremos o desempenho de cada uma dessas propostas do jogo. As imagens abaixo estarão com texto em inglês, mas no momento NORCO já conta com tradução oficial em PT-BR (o que foi adicionado em uma atualização do dia 20 de abril).



Um outro olhar sobre a cidade de Norco (será só sobre ela?)

Escrita e projetada por Yuts, a história do jogo, dividida em três atos, possui um design narrativo bem interessante, dividindo o foco entre dois protagonistas que se alternam de forma episódica ao longo da trama. As duas personagens, Kay e sua mãe,  não estão separadas apenas no espaço, como em Halo 2 (Xbox/PC), mas sobretudo no tempo; suas histórias se passam em momentos diferentes. Ainda assim, tal qual em Halo 2, há um protagonista predominante que, em NORCO, é Kay.

Kay é uma jovem que retorna para sua cidade natal, Norco, após ficar sabendo da morte de sua mãe, Catherine. Chegando lá, Kay descobre algumas coisas estranhas na casa, como um aparente porão trancado e uma estátua de jardim na qual se pode inserir um cartão. Ao tomar conhecimento de pesquisas que sua mãe empreendia em uma imponente refinaria de petróleo, e também ao saber do desaparecimento de seu irmão, Kay sai em busca por respostas e pistas, inicialmente contando apenas com seu macaco de pelúcia e um andróide de segurança da casa de sua mãe.







O desenrolar da trama se dá em diversos cenários, quase sempre em um paradoxal contexto de subúrbio abraçado por prédios enormes e estradas elevadas. As protagonistas passam por bares, vielas estreitas, calçadão, casas modestas, riacho e várias localidades periféricas daquela cidade.

Às vezes, a sensação é de que estamos imersos em Os Miseráveis, de Victor Hugo, só que em um contexto futurista, em um futuro não tão distante, o que torna o contexto tão assustador quanto alguns bons episódios da série Black Mirror, de Charlie Brooker. A escrita de cenário de NORCO é muito bem feita, os personagens secundários são tão ou mais importantes e marcantes que as protagonistas e mostram um lado decadente de um futuro próximo da sociedade contemporânea.

A escrita dos personagens, além de ser funcional, para guiar, reagir e/ou informar o jogador, costuma ser de tal forma a cumprir duas funções no enredo. Primeiramente, a função de apresentar atitudes, opiniões e pensamentos verossímeis e diversificados diante da realidade marginal em que os personagens vivem, e daí o porquê de vários deles serem bêbados, mendigos, drogados, fanáticos etc. Toda essa dura realidade socioeconômica  está diretamente relacionada a problemas ecológicos e socioeconômicos decorrentes da indústria petroquímica e indiretamente relacionados a problemas sociais mais gerais e estruturais, dos quais vem a segunda função dos personagens secundários.










Os personagens são escritos também de tal forma a transparecerem a religiosidade e o imaginário enquanto fenômenos sociais daquele mundo. Nesse sentido, há, por exemplo, momentos em que várias pessoas em um culto religioso possuem o mesmo nome (Garrett — talvez uma referência à série Thief), problematizando a identidade delas, e há também seres que vivem na fronteira entre a realidade e a fantasia por trás da tecnologia de Norco.

A premissa de relacionar ocultismo e realismo fantástico é muito bem empregada aqui para abordar questões graves da sociedade contemporânea, como o conspiracionismo e o fanatismo. O fato da região do jogo ser, a um só tempo, real e ficcional, torna ainda mais tênue a linha entre o jogo e a realidade do jogador, tendo até mesmo referências conhecidas de outras obras reais, como do livro O Código da Vinci, de Dan Brown.



Um mergulho em pântanos industriais

A descrição de NORCO no Steam traz algo que, a meu ver, sintetiza perfeitamente a estética do jogo:  o conceito de “pântano industrial”. Essa expressão comunica tanto os esforços audiovisuais para remeter à ecologia e à ambientação quanto seus esforços também para algo que lembre tecnologia e industrialização.

Ao mesmo tempo, “pântano industrial” remete a essas coisas com uma nuance de algo sombrio, perigoso, solitário e pegajoso. Tudo isso está em Norco, tornando-a a cidade-palco perfeita para os problemas que o roteiro quer abordar.







O estilo visual é totalmente em pixel art, às vezes mais detalhado, às vezes menos, a depender do personagem, mas geralmente com cenários bem-feitos, principalmente nas áreas mais populosas e em ambientes naturais. Para dar uma experiência mais retrô, o jogador pode optar, nas configurações, por usar um filtro CRT, o que é muito bem-vindo, também por deixar mais agradável a pixelização de alguns objetos e mais sombria a iluminação dos cenários.

Do ponto de vista artístico, os pixels e as pinturas de Jesse Jacobi transparecem, em seus personagens, algumas escolhas góticas, como em faces completamente escuras com olhos brilhantes, e outras  naturalísticas, como em fisionomias rudes e sem adornos de pessoas marginalizadas. Por sua vez, a cenografia traz inspirações de cyberpunk que lembram coisas como os filmes Blade Runner, de Ridley Scott, e Akira, de Katsuhiro Otomo, embora em um futuro mais próximo.







Esses cenários, como já comentado, não são povoados apenas por pessoas e máquinas, mas também por alguns seres mais fantasiosos, os quais remetem ao surrealismo, isso porque fantasiam em cima de elementos da própria realidade que são utilizados com símbolos oníricos de algum conceito. Um exemplo disso pode ser visto nas cortinas com olhos em um palco teatral improvisado em um dos becos da cidade. Essa riqueza simbólica contribui tanto para atmosfera quanto para o enredo do jogo.

Em alguns casos pontuais, há também momentos em que a experiência estética muda de uma perspectiva em primeira pessoa, na qual se pode ver os elementos de interação (mesmo que quase totalmente estáticos) para uma visão top-down, enquanto se está navegando de lancha. Nesse caso, assume-se uma perspectiva minimalista, em um mapa dos rios da região, havendo possíveis intervenções no caminho acompanhadas geralmente só por textos. É uma experiência retrô interessante que lembra algo como um text-adventure com mapa.







As músicas e a direção de som de Fmaura combinam perfeitamente com a proposta visual e narrativa. Norco é tingida não só por pixels, mas por uma incessante música ambiente, ou seja, um estilo musical com uma composição que se confunde com os próprios efeitos sonoros da dinâmica nas cenas. A atmosfera é geralmente sutil, mas outras vezes também bastante poderosa, o que já se pode notar desde o início, em momentos em que o jogador entra em contato com algo misterioso e inesperado.

A harmonia da OST é quase sempre sombria e solitária com melodias espaçadas e sobrepostas, frequentemente em tons menores. Os timbres são geralmente elétricos ou sintéticos, remetendo a coisas naturais, retrô, cibernéticas e industriais. Essas características também estão presentes nas músicas de fundo (não só nas ambientes), utilizadas principalmente durante as batalhas, embora, nesses casos, com ritmo e melodia mais marcados, velozes e com antecipações, aproximando-se do rock, a fim de criar mais ansiedade e pressão no jogador.



Uma gameplay diverso e inteligente em mecânicas com um level design simples, acessível e funcional

Claramente NORCO é um jogo movido pela narrativa, não pela gameplay, mas, ainda assim, utiliza bem suas mecânicas a seu favor. Algumas delas estão estreitamente relacionadas ao celular do jogador, como na possibilidade de gravar áudios, ler mensagens, “escanear” o ambiente e utilizar serviço de transporte por aplicativo, assemelhado a serviços como Uber. Isso é uma forma inteligente de interação com o meio, com o histórico de diálogos e também com o contexto tecnológico da proposta.

Outra mecânica que merece destaque é a do mapa mental (Mind-Map), o qual consiste em uma espécie de mapa conceitual que pode ser aberto a qualquer momento, exibindo um conjunto de figuras (cada qual para um personagem da história) que vão se acumulando e se interligando, por exemplo, ao descobrir que um personagem x tem uma relação de parentesco com y, ou que x matou um personagem z, e assim por diante. Além disso, de modo análogo a Disco Elysium (Multi), é possível interagir mentalmente com essas figuras por meio de diálogos que nada mais são que reflexões internas de Kay para entender o que está acontecendo em Norco e como isso está relacionado à sua família.







Outras mecânicas envolvem a já mencionada navegação com lancha e coisas mais conhecidas de point-and-click, como investigação de senhas ou uso de determinados objetos para interagir com personagens ou para destrancar algo cadeado etc. O bom é que essas mecânicas são aqui aplicadas com sabedoria e moderação, não exigem combinações exóticas de objetos ou uma exploração exaustiva, no nível de “caçar pixels” na tela, como alguns clássicos do estilo. Em alguns momentos, o jogo até impede o jogador de sair de um local até ter encontrado o que ele precisa, evitando que ele possa se perder, sem saber mais o que fazer.

Por fim, há alguns esporádicos momentos de combate, utilizando os membros do grupo (cada qual com HP próprio) para ataques únicos de cada personagem em um ritmo de turno uniforme. A eficácia dessas ofensivas depende do jogador executar corretamente Quick Time Events.

Seja durante ou fora dos combates, o jogo apresenta desafio praticamente nulo; o maior trabalho que se possa passar será em um ou outro puzzle, mas nem isso ocupará muito tempo, podendo-se finalizar facilmente esse título em aproximadamente 8 horas de jogo. Trata-se de uma experiência de gameplay simples, acessível e breve, mas coerente, funcional e adequada à proposta.

Um dos melhores contos já contados em videogames

Apesar da simplicidade tanto em alguns aspectos técnicos visuais quanto em seu level design e em suas mecânicas, NORCO sabe usar o minimalismo e o point-and-click a seu favor com criatividade e expressividade, principalmente em audiovisual, entregando um dos mundos mais imersivos, fascinantes e memoráveis que já experimentei em videogames. Em especial, o texto possui um sofisticado design narrativo, um contexto bem motivado por importantes problemas sociais e ambientais de nosso tempo e um dos roteiros mais bem escritos dos últimos tempos.

O jogo de estreia do estúdio Geography of Robots é um forte candidato a ser um dos melhores indies do ano, além de ser um título obrigatório para fãs de adventures e uma recomendação geral para quem aprecia boas histórias em videogames.

Prós

  • Trilha sonora e direção de som coerentes com a proposta e bem funcionais para a imersão e expressão do mundo;
  • Um mundo ficcional único, ao mesmo tempo metafórico e verossímil, e muito bem construído e ambientado em realismo fantástico;
  • Possui artes belas, oníricas, expressivas, sombrias e com boas inspirações em surrealismo e ficção científica;
  • Traz temas importantíssimos e bem trabalhados de naturezas religiosa, social, ecológica e tecnológica;
  • Design narrativo engenhoso com riqueza e profundidade em referências e diálogos, com alternância de protagonismo e com um roteiro bem escrito e sucinto em poucas horas de jogo;
  • Algumas mecânicas interessantes e adequadas para a proposta;
  • Gameplay acessível e diversa.

Contras

  • Embora adequados e criativos, os personagens costumam ser pouco marcantes;
  • Mecânicas bastante simples e algumas delas subutilizadas;
  • Level design traz muito pouco desafio tanto em combate quanto em puzzles.
NORCO — PC — Nota: 9.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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