Voice of Cards: The Forsaken Maiden (Multi) foi anunciado de forma repentina, deixando o público surpreso devido ao curto espaço de tempo desde o antecessor, Voice of Cards: The Isle Dragon Roars. (Multi) Entretanto, tal sentimento pode ser um pouco injustificado por alguns motivos. O primeiro deles tem a ver justamente com o fato desse antecessor ser um game simples em sua proposta, o que obviamente facilita o desenvolvimento.
O segundo é porque muitas vezes nos esquecemos de como, no passado, era extremamente comum que inúmeras sequências fossem produzidas a toque de caixa utilizando sempre o mesmo motor de jogo, quase sem alteração. Mega Man e os Final Fantasy no NES que o digam, dada a periodicidade constante dos lançamentos na época em que tais franquias ainda engatinhavam.
É um pensamento moderno o de que esse tipo de prática é condenável. A justificativa por trás dele vem de se tratar de uma atitude preguiçosa — que é meia verdade — e que não é possível continuar a gerar produtos de qualidade dessa forma, visto que não há melhorias substanciais entre um título e outro, como normalmente se espera. Dito isso, The Forsaken Maiden pode não ser superior ao original, mas continua sendo muito bom.
Como o RPG que é, Voice of Cards: The Forsaken Maiden tem seu desenvolvimento voltado diretamente à sua questão narrativa. No caso, a história começa em uma ilha já predestinada à perdição por não contar com uma Donzela protetora para chamar de sua. Ou melhor, até tem, porém Laty aparentemente não é suficientemente apta para realizar suas funções como a escolhida.
Assim, no intuito de tentar evitar que a calamidade recaia sobre a ilha Omega, o protagonista (cujo nome pode ser escolhido pelo jogador, embora o padrão seja Barren) e a tal Donzela Desamparada do título percorrem o arquipélago atrás das donzelas das outras ilhas com o objetivo de fazer com que Laty consiga consolidar seu status de protetora.
A partir daí, o jogo se fragmenta em várias narrativas distintas, tendo como foco as donzelas protetoras das ilhas ao redor, tecendo um enredo quase episódico. O sistema de combate acaba se adaptando a isso ao fazer com que a party não seja fixa, sendo que as únicas constantes são o protagonista e Laty. A cada capítulo, o time passa a ser composto pela Donzela do local que estamos visitando e por seu fiel escudeiro, com quem elas geralmente sempre têm alguma relação complicada.
A maneira como Voice of Cards dá destaque às histórias individuais das donzelas é singular, pois nos faz entender o mundo do game como um universo onde há vários acontecimentos paralelos e reforça o fato de que, por mais Barren e Laty sejam os protagonistas, isso não irá significar que o universo gira em volta deles — erro até que comum dentro de um gênero que normalmente não deveria permiti-lo.
Tal mundo, inclusive, é construído pelo principal artifício do jogo: cartas. O mapa todo é uma espécie de tabuleiro inteiramente composto por cartas, sendo que cada uma é uma espécie de “casa” pelo qual o peão, controlado pelo jogador, percorre. Ocasionalmente, surgem alguns confrontos aleatórios — bem como um RPGzão de console old school — e é aí que se inicia o combate.
O problema de falar do gênero RPG, especialmente na subcategoria JRPG, é que não existe margem para inovação. Ainda é possível fazer excelentes títulos dentro do gênero, mas eles geralmente se atentam ao feijão com arroz do estilo. Tales of Arise, por exemplo, é a epítome dessa ideia. Octopath Traveller? Puramente estético. A maioria desses RPGs vai necessariamente ater-se às suas definições clássicas porque qualquer mudança o transformaria em outra coisa que não é um RPG, como um jogo de ação ou aventura.
Voice of Cards, por sua vez, é tradicional até o talo nesse aspecto. O combate é feito por turnos e há alguns atributos, como ataque e defesa, representados nas cartas de cada personagem controlável ou inimigo. Nisso, há a possibilidade de utilizar golpes básicos, como atacar, ou golpes especiais, que se utilizam de gemas que vão sendo acumuladas depois da ação de cada personagem.
A parte capciosa é que a maioria dos especiais consome pelo menos uma dessas pedrinhas. Atacar de forma simples não rende uma gema, mas outras skills básicas, como cura, sim. Ou seja, a gema que eu ganhar antes de cada turno será, quase que inevitavelmente, utilizada logo na sequência.
Golpes mais poderosos existem e precisam de mais de uma gema para serem usados. Dá para acumulá-las utilizando apenas os ataques normais ou ainda aumentar a quantidade delas com uma ação própria para tal. Acumular algumas dessas pedras pode parecer uma ação logicamente fácil, mas, com o tempo, a dificuldade da batalha vai engrossando e esse tipo de acúmulo de joias vai ficando cada vez mais complicado de se fazer.
No entanto, isso não significa que o combate seja necessariamente complicado em essência, especialmente para os jogadores já acostumados com o gênero. Basicamente, trata-se de um jogo de ataque, saber curar nos momentos certos, administrar as gemas e se atentar a potenciais alterações de status e aos elementos normalmente relacionados aos inimigos, o que nos leva a favorecer certos especiais do elemento contrário.
É suficiente para tornar o sistema de Voice of Cards: The Forsaken Maiden ruim? Não. Nem de longe. Na verdade, todo o conjunto do título é muito perspicaz no sentido de favorecer a construção de um formato instigante para se apresentar como um JRPG bastante tradicional e simples em sua essência. O mérito está na sua narrativa, que em vários momentos é clichê, mas uma história comum bem contada é consistentemente melhor do que um enredo complexo mal contado.
Especificamente, a sensação imediata transmitida é a de jogar um RPG de mesa, com narrador e tudo. Até há a utilização ocasional de dados em combate, similarmente a um tabletop. Isso chama muita atenção no que diz respeito a um jogo de videogame, uma vez que o gênero RPG (eletrônico) surgiu como uma tentativa de simular a questão do roleplay presentes na edição “física” dele.
Isso se aplica duas vezes mais aos JRPGs, que trouxeram vários atributos e variáveis numéricas que são, de certa forma uma tentativa de emular essas mesmas características dos RPGs de mesa. O fator aleatório, referente à rolagem de dados também é presente em Dragon Quest, Final Fantasy ou até Pokémon. A diferença é que não há dados sendo rolados, mas o sistema que faz esse trabalho de determinar resultados através de variáveis numéricas randômicas.
No caso de Voice of Cards, essa aleatoriedade se faz presente de uma maneira bem explícita, visualmente ilustrada, já que é comum que o jogador tenha que rolar algum dado durante as batalhas no intuito de determinar certas variáveis, como dano adicional ou se um ataque dará certo ou não. Enquanto Pokémon decide que um golpe tem 70% de chance de acerto, Voice of Cards faz igual ao dizer: “role um dado, o ataque só funcionará se o resultado for maior do que três”. O sistema é o mesmo, já que é o computador que faz o serviço através do random number generator, a percepção que é outra.
Além disso, a sensação de um RPG de mesa se expande em mais dois aspectos. O primeiro tem a ver com o fato de que todo o mapa do game, construído pelas cartas, se dá claramente em uma mesa, enquanto o combate, em uma espécie de tabuleiro separado. O segundo tem a ver com a existência de um único narrador que serve como mestre do jogo, o dungeon master.
Essa construção alegórica tem muito a ver com o dedo de Yoko Taro, atribuído como diretor criativo do jogo. Embora ele não seja a força-guia em Voice of Cards: The Forsaken Maiden (como é em Drakengard), seu estilo segue presente por conta da atmosfera melancólica presente, especialmente nos finais amargos de várias das side quests. A trilha sonora é outro destaque nesse quesito, visto que o compositor, Keiichi Okabe, é o mesmo com quem já trabalhou vezes antes, em Drakengard 3 e na série Nier (sendo que Automata, inclusive, se faz presente em The Forsaken Maiden como um DLC estético, mudando a aparência das cartas e outros elementos).
Tecnicamente, a principal observação a ser feita é a maneira como o título chega a ser lento, desde a progressão da história, em alguns momentos, ao próprio sistema de jogo. Existe uma opção nos menus de acelerar a engine, mas ainda poderia ser um pouco mais ágil. Há quem possa reclamar da quantidade de encontros aleatórios dos inimigos, só que é válido lembrar que, se formos pegar um Dragon Quest antigo, essa taxa não ia ser muito diferente, viu?
De um modo geral, Voice of Cards é o típico produto que a indústria precisa às vezes, que sabe fazer o básico com uma identidade própria, sem necessariamente ter que reinventar a roda. Nem todo jogo precisa ser revolucionário. Aliás, há saturação de tentativas pretensiosas de quebra de paradigmas que se esquecem de conceitos básicos de um game design minimamente saudável.
Houve pouco tempo entre os lançamentos The Isle Dragon Roars e The Forsaken Maiden. Ambos são RPGs consistentes em sua proposta de, com pouca pretensão, oferecer à sua audiência uma jogabilidade tradicional para o gênero em que, simultaneamente, para se destacar entre seus pares, tenta encapsular sua atmosfera própria para contar uma confortável narrativa de tom clássico. Essencialmente, trata-se de mais do mesmo — e isso não é ruim por causa e consequência. Como diz o ditado, uma história bem contada é contada duas vezes.
Prós
- Atmosfera melancólica tão característica quanto competentemente implementada;
- Trilha sonora que contribui na construção dessa ambientação;
- História envolvente justamente pela maneira como é contada;
- Sistema de combate acessível para os pouco familiarizados com o gênero;
- Tentativa bem-sucedida de emulação da sensação de jogar um RPG de mesa.
Contras
- Sistema de jogo poderia ser um pouco mais ágil;
- Não há muitas fragmentações narrativas ao longo da trama;
- Embora convidativo, sistema de batalha ainda pode se tornar um pouco chato para veteranos.
Voice of Cards: The Forsaken Maiden — PC/Switch/PS4 — Nota: 7.5Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix