Um dos filmes mais importantes da história do cinema é Vertigo, de Alfred Hitchcock, conhecido no Brasil como Um Corpo que Cai. Nele, John “Scottie” Ferguson é um policial que sofre de medo de altura e, por isso, é incapaz de exercer sua profissão. Assim, ele acaba arranjando um bico de detetive particular em que precisa simplesmente aceitar um favor de um amigo que acredita que sua esposa está agindo de forma esquisita e pede para que a moça seja investigada. Scottie, eventualmente, acaba se apaixonando por ela, até que a mulher decide se jogar do topo de uma igreja. Isso leva o protagonista, aos poucos, a perder a sua sanidade.
Alfred Hitchcock – Vertigo (PC), por sua vez, não tem nada a ver com isso. Ou melhor, até tem, uma vez que ele decide explorar os temas apresentados pelo longa-metragem em uma história completamente original, como um tributo. O que se tentou fazer aqui é uma releitura que tenta emular esses elementos de Um Corpo que Cai e o estilo narrativo do mestre do suspense. Assim, nós nos envolvemos em um enredo que trabalha temas como a famigerada vertigem, psicanálise, obsessão, controle, adultério, trocas e crises de identidade, crimes mirabolantes e um toco de uma árvore gigantesca e extremamente velha.
A história começa com o escritor Ed Miller acordando após uma espécie de acidente de carro e decidindo se jogar da ponte antes de ser impedido por um caminhoneiro. Após o ocorrido, ele desenvolve uma síndrome forte de vertigem — o nome chique para medo de altura —, adquirindo uma fobia intensa o suficiente para impedir que saia da cama. Para isso, a Dra. Lomas, uma psiquiatra e psicóloga especialista, é recrutada pelo editor de Ed para dar um jeito no rapaz, explorando aos poucos o seu passado e tentando descobrir as circunstâncias do acidente que quase o fizeram saltar. Paralelamente, há o enredo do xerife tentando desvendar um caso de assassinato e como ele se relaciona com os problemas apresentados por Miller.
Enquanto o xerife Reyes é um personagem escrito da forma mais clichê possível para esse tipo de narrativa, a Dra. Lomas até que é gostável por apresentar várias camadas em sua construção, visto que tanto o fato de ajudar os outros com seus problemas quanto o de ela ser muitíssimo bem resolvida em sua área de atuação não a impedem de apresentar seus próprios conflitos internos. Ed Miller, por sua vez, é um dos maiores babacas que você pode imaginar, por mais que tudo aparentemente seja fruto de sua infância difícil que ele tanto tenta abnegar.
Falando na sua infância, também não colabora muito que o modelo tridimensional da sua versão moleque parece um cão chupando manga, fácil uma das crianças mais feias que já vi nos videogames. Aliás, a maioria dos modelos em Vertigo são sofríveis, principalmente quando incorporados nessa estética genérica de pseudo-cartum que se tornou um padrão saturado no mercado há pelo menos uns dez anos. Nesse aspecto, não há absolutamente nada que outros jogos já não tenham feito muito melhor e com considerável facilidade.
O destaque visual, se é que há algum, tem mais a ver com a utilização das cores, que assumem um papel muito importante no longa-metragem de 1958, uma época em que filmes coloridos ainda se consolidavam por serem relativamente caros (para se ter ideia, Psicose, do mesmo diretor, veio em 1960 e ainda é em preto e branco). Há ainda uma sequência psicodélica do longa-metragem que é contextualmente reproduzida aqui e foi um bem-servido easter egg da obra original.
Em tempo, voltando à história, por mais que haja um esforço em tentar emular alguns elementos de mistério clássicos do diretor que carrega no título, Alfred Hitchcock – Vertigo mostra que apenas esforço não é suficiente. Vários dos acontecimentos do enredo acontecem rápido, de uma forma pouco verossímil, e outras reviravoltas simplesmente podem ser vistas quilômetros à frente de realmente acontecerem. Ademais, o ritmo da narrativa é péssimo e parece um filme antigo que envelheceu mal. Quanta ironia, não é mesmo?
Entrando em mais detalhes, tanto o filme quanto o título aqui em análise trazem uma reviravolta derivada de um estratagema meio xarope que envolve uma troca de identidade no intuito de fazer o protagonista de otário. No caso de Um Corpo que Cai, a simplicidade e a objetividade do plano maluco até atribuíam algum sentido a ele. No caso de Alfred Hitchcock – Vertigo, houve uma tentativa de trazer mais camadas a esses vários elementos resgatados, mas isso fez com que tudo não passasse de um malabarismo inverossímil, forçado e pouco convincente.
Essa comparação com um filme, obviamente, é perfeitamente pertinente e proposital. Mais uma vez, precisamos quebrar alguns paradigmas e determinar limites ao afirmar que é muito difícil chamar isto aqui de jogo. É possível vasculhar alguns ambientes tridimensionais e apertar alguns botões em quick time events, mas é o máximo de interação que existe nele. Nem como uma narrativa multiforme, como uma visual novel, ele poderia se classificar, visto que as escolhas não influenciam basicamente nada no desenrolar da trama, não abrindo finais alternativos, nem sequer desbloqueando sequências extras adicionais que possam ajudar a entender a trama com maior amplitude, salvo uma única exceção no final.
O máximo de desafio que Vertigo nos oferece é quando revivemos as memórias falsas de Ed Miller e precisamos revisá-las para encontrar certos elementos que as desmascaram, analisando a ordem cronológica e se apegando a certos detalhes que foram escondidos no subconsciente do personagem. Ainda assim, tudo não vai além de uma caçada pelo objeto interativo na tela — algo que a teoria crítica em game design chama de pixel hunting.
Convenhamos: existem alguns produtos que, pela experiência oferecida, a gente até releva essa problemática de não oferecer elementos factuais de jogo, como é o caso de VA-11 HALL-A: Cyberpunk Bartender Action (Multi). No caso, há realmente a entrega de uma história intrigante o suficiente para nos manter presos a ela. Vertigo, por sua vez, tem seus momentos, mas eles não são constantes e sequenciais, visto que os pontos altos são intercalados por extensas sessões de tédio. É uma campanha até que curta — é possível dar cabo dela com umas dez horas —, mas parece durar pelo menos o dobro desse tempo por conta da lentidão em que as coisas acontecem, especialmente nas sequências em que as memórias ainda estão maquiadas, reprimidas.
A principal analogia que pode ser feita é com a Telltale Games que, entre a má administração e o trato abusivo para com seus funcionários, ficou na indústria enganando seu público por quase quinze anos antes de declarar falência. Alfred Hitchcock – Vertigo é uma verdadeira herança maldita que a fraude promovida por tal estúdio deixou após sua dissolução. Pior, trata-se de um legado distorcido, pois, a despeito de a Telltale saturar o mercado com suas narrativas supérfluas contadas por algumas cutscenes em computação gráfica, elas ao menos apresentavam algum grau de escolha para a audiência.
As atuações de voz chegam a ser irritantes. Não basta elas soarem forçadas, com uma entonação daquelas que o enunciador parece estar cantando suas falas, como também o próprio texto é horroroso, com diálogos forçados e constrangedores. Parecem atuações provindas do começo dos anos 2000, quando a indústria de games ainda não sabia lidar com esse tipo de coisa.
Para piorar, a sincronização de lábios é patética e não é incomum que o movimento da boca não condiga com o áudio, ou que a boca se mexa sozinha, ou que apenas o áudio seja reproduzido, sem o movimento da boca. Ou seja: todas as possibilidades estão contempladas. A trilha sonora, entretanto, se salva e consegue reproduzir bem o jeitão do trabalho feito por Bernard Herrmann para o longa-metragem original.
Aliás, a relação que Alfred Hitchcock – Vertigo tem com o original chega a ser verdadeiramente intrigante. A ideia de conceber uma narrativa própria e vagamente inspirada pelo filme clássico em vez de simplesmente recontá-la ou atualizá-la para os tempos atuais é, facilmente, uma ideia maravilhosa, independente da qualidade da execução.
O tropeço inicial está justamente na utilização desse título horrível para o produto. A repetição constante dele ao longo da análise até aqui é intencional: percebe o quão desagradável é lê-lo, falá-lo ou ainda apenas pronunciá-lo na mente? Com um mínimo de esforço, logo me vieram Alfred Hitchcock’s Vertigo ou Alfred Hitchcock Presents: Vertigo, em analogia ao seriado televisivo produzido pelo diretor em questão. O problema está nessa meia-risca horrorosa que poderia até ser substituída por um sinal de dois pontos.
Moralmente, considerando as relações com o longa original em um nível apenas subtextual, talvez fosse interessante — e potencialmente mais barato — nem sequer tentar adquirir a licença da marca registrada, apresentando-se como uma experiência inspirada e que com certeza seria de uma elegante sutileza. Entretanto, é óbvio que colocar um nome tão consagrado assim chama atenção. Assim, novamente, usar “Alfred Hitchcock Presents” e um título completamente alternativo talvez fosse uma escolha bem mais sábia. Inclusive, isso é algo que já foi feito no tenebroso Alfred Hitchcock Presents: The Final Cut (PC), de 2002, que inclusive realizou a façanha de ser pior do que este aqui.
A falta de otimização do produto também é horrorosa. Teve horas que eu achei que era só o meu PC (que, ressalto, ultrapassa com folga os requisitos recomendados) que cismava em dar algumas enguiçadas na aplicação, em demorar para carregar e em exibir outros problemas de desempenho, mas não. Outros jogadores com setups bem mais poderosos do que o meu também relataram os mesmos empecilhos. Isso sem falar da questão do consumo de memória de armazenamento.
Digo, se tem uma tecla que eu costumo bater quando acho necessário, mesmo que seja uma briga que a maioria dos jogadores hardcore dificilmente compra, é o volume de disco rígido ocupado pela aplicação. Alfred Hitchcock – Vertigo comeu mais de vinte gigas do meu HD. Uma noção que as pessoas normalmente não têm é que espaço de armazenamento é um negócio caro e com uma tendência a custar cada vez mais, por conta do volume de informação produzido todos os dias em comparação à nossa capacidade de armazená-la.
Vinte gigabytes em uma aventura (falsamente) interativa simples, como esta, chega a ser uma inigualável afronta. Há RPGs japoneses modernos que não ocupam esse volume, para se ter ideia. Se o produto ao menos justificasse tudo isso, seria possível realizar algumas concessões no tom da crítica, mas a experiência não condiz com todo esse luxo que ela demanda. A sorte é que se trata de uma campanha tão curta e direta que vira quase um fast food no sentido de chegar, fazer a refeição e ir embora rápido — leia-se “ir embora” aqui como “desinstalar”.
Isso levando em conta a hipótese de que o jogador tem uma velocidade de rede boa o suficiente para conseguir baixar esse trambolho com certa agilidade. Em certas regiões do mundo onde a qualidade da internet não é lá essas coisas, periga o tempo de download do título ser maior do que a duração do dito cujo.
Dá um pouco de pena de escrever esta análise, sabe? A despeito de todos os pesares, lá no fundo, dá para ver alguma paixão e vontade no trabalho da Pendulo Studios. Pegar a licença do nome Hitchcock não deve ter sido algo nem um pouco barato também. A questão é que, se houvesse menos pretensão e um pouco mais de otimização do software (e, provavelmente, de tempo para lapidar e ampliar as possibilidades oferecidas pelo produto à audiência), dava para pegar mais leve. Talvez teria sido uma ideia bem melhor se tivessem refinado as cutscenes a ponto de transformá-las em episódios de uma série animada e tentassem vendê-la para algum serviço streaming. A experiência permaneceria inalterada.
Prós
- Atmosfera até que emula bem o estilo do Hitchcock;
- A ideia de fazer uma história “baseada em” é positivamente ousada;
- Ser fácil de alcançar 100% das conquistas pode ser visto como um pró?
- É curto em duração.
Contras
- Não parece tão curto em duração;
- História inverossímil e previsível;
- Carência de bifurcações narrativas de escolha do jogador;
- Personagens de escrita constrangedora;
- Atuações de voz pessimamente dirigidas e de tom amador;
- Modelos feios de doer;
- Otimização inexistente;
- Consumo exagerado de memória de armazenamento;
- Não é bem um jogo, né?
Alfred Hitchcock - Vertigo — PC — Nota: 3.5
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Microids