O instável multiverso
Desde a nossa infância, nos é contado que o universo é praticamente infinito, com milhares de planetas e possibilidades situados a múltiplos anos-luz de nossa localidade. Porém, e se essa não fosse exatamente a verdade? E se, na realidade, vivêssemos em um multiverso onde uma fina membrana fosse responsável por separar diferentes mundos? Mais ainda, e se essa mesma membrana não fosse tão forte quanto parece?
É com essas perguntas filosóficas que Undungeon se apresenta. Neste fantástico e fictício universo, sete mundos — que correspondem a sete variações da Terra — foram instantaneamente unidos em um grande e misterioso cataclismo chamado de “A Mudança”. Tal ocorrência, porém, aparentemente quebrou a ordem do multiverso, fazendo com que restasse aos poucos sortudos que sobreviveram à Mudança a necessidade de corrigir o que há de errado com esta nova e frágil realidade.
É neste difícil cenário que você assume o controle de Void, um dos dois personagens controláveis disponíveis no título. Como um ser criado pelo próprio deus do vazio, sua missão é restaurar a ordem após os eventos da Mudança. Para tanto, será necessário encontrar os seis arautos e obter os seus selos, que concederão acesso aos mundos individuais.
Se a narrativa de Undungeon parece confusa nesse primeiro momento, é porque ela realmente o é — confesso, inclusive, que precisei de certo tempo para entender o que estava de fato acontecendo dentro do jogo. Porém, conforme o tempo passa, fica progressivamente claro que este é um dos pontos mais fortes da obra da desenvolvedora Laughing Machines. Sem entrar no campo dos spoilers, aqui está um daqueles games que devem figurar no radar de jogadores que apreciem passar horas lendo descrições e confabulando teorias sobre os acontecimentos in-game. É uma pena, portanto, que a jogabilidade por vezes não siga o mesmo caminho.
Encarar e destruir
Na prática, Undungeon se porta como um RPG de ação visto de cima. Logo após concluir o tutorial de combate, Void estará livre para explorar o mundo ao seu redor, cumprindo inúmeras quests e side quests enquanto tenta restaurar a ordem no multiverso.
O combate do game, sempre realizado em tempo real, segue a cartilha do gênero. Dotado de garras afiadas, escudo e uma esquiva (posteriormente, é possível comprar itens para atacar a distância, como granadas e flechas), Void pode confrontar seus inimigos livremente, desde que manuseando sabiamente suas barras de vida e energia, indicadas no HUD que fica abaixo do personagem. Porém, há pontos positivos e negativos na realização de todas essas mecânicas.
Vamos começar pela movimentação do jogo. Como em Enter the Gungeon (Multi), Hades (Multi) e tantos outros jogos independentes, é possível se locomover/mirar em 360º dentro dos cenários, mas o problema aqui é que Void conta com somente quatro sprites direcionais. Isso faz com que a movimentação constantemente pareça “travada”, especialmente quando se está utilizando a combinação de teclado e mouse ao invés de um controle.
Ou seja, na prática, você constantemente se verá andando de lado — igual um siri — ou de costas, como se tivesse engatado a marcha a ré e acelerado. Essa é uma decisão de design no mínimo curiosa e que, apesar de não prejudicar completamente o andamento da aventura, acaba retirando a fluidez da movimentação.
Igualmente questionável é a dificuldade em geral do título. Além de não ser exatamente um jogo fácil, Undungeon conta com uma mecânica, digamos, “interessante”, na qual quando um inimigo te acerta (o que não é lá muito difícil, dadas as proporções de seu personagem em relação à tela), Void recebe uma estrela acima da cabeça. Essa estrela significa que o próximo golpe desse mesmo inimigo terá o dobro de dano (!).
Para piorar a situação, tais estrelas podem ser acumuladas e, apesar de se dispersarem com o tempo, tornam-se escudos capazes de bloquear um golpe assim que esse fato ocorre. Como você já pode ter deduzido pela descrição, esse sistema, juntamente com a atual ausência de um seletor de dificuldade, diminui muito a margem de erro para ser bem-sucedido em cada confronto, principalmente contra um grupo numeroso de adversários.
Combine isso com a movimentação travada e a sensação aqui é de que há um imenso potencial desperdiçado em decisões questionáveis de design. Sendo sincero, não é o suficiente para tirar o brilho do jogo — a tendência é que você se acostume com esses aspectos —, mas vale o aviso prévio.
Inclusive, uma recente resposta dos desenvolvedores na Central da Comunidade do jogo no Steam deu a entender que a produtora está analisando a possibilidade de adicionar níveis de dificuldade. Mas, até o momento de publicação desta matéria, sinto informar que o jogo não recebeu essa função.
Beleza interior
As questões da movimentação e da dificuldade são uma pena, pois Undungeon entrega uma característica que julgo muito atraente e necessária em RPGs: a complexidade. Há aqui inúmeras possibilidades para montar e personalizar seu personagem. Sendo Void uma criação pós-apocalíptica, é possível trocar seus órgãos internos, como coração e cérebro, por outros, alterando stats e buffs no processo — um cérebro com atributo de “predador”, por exemplo, terá certas qualidades, enquanto um com atributos de “pensador” terá outras.
Similarmente, é possível alterar o “core” — núcleo de seu personagem — e os equipamentos dele, provendo uma abundância quase infinita de combinações possíveis. Se você, assim como eu, curte gastar minutos e mais minutos com cálculos e comparações para ver qual equipamento usar antes de partir em jornada, saiba que este é um jogo que entrega diversão com folga nesse aspecto.
Além de Void, com um certo tempo de progressão é possível desbloquear um outro personagem jogável chamado Mardurk. Esta é uma questão um tanto quanto polêmica a respeito de Undungeon, posto que durante sua campanha no Kickstarter, foram prometidos sete personagens jogáveis — algo que, como você já deve ter percebido, não corresponde ao lançamento final.
Para além das questões envolvidas nesse caso, informo que os dois personagens disponíveis até o momento são de fato bem distintos entre si, provendo uma experiência diversificada o bastante e capaz de aumentar por si só o fator replay. Particularmente, torço para que mais personagens cheguem, mas caso essa seja uma preocupação sua, o conteúdo aqui não é um problema: há diversos finais disponíveis e a aventura pode durar de 11 a 30 horas, de acordo com quão próximo do 100% você queira chegar. Só esteja, mais uma vez, ciente da dificuldade envolvida!
Pintura virtual
Um aspecto no qual Undungeon brilha sem ressalvas é sua direção artística. Visualmente falando, este é um dos títulos mais bonitos que joguei este ano, e dos cenários ao design dos personagens, toda criação transborda carisma e criatividade — o que, sem dúvidas, ajuda a elevar a qualidade da obra como um todo. Confesso que, não raramente, parei por alguns momentos em frente ao meu monitor somente para apreciar este universo virtual.
Igualmente elogiável é a trilha sonora e o sound design, que conseguem fornecer a ambiência necessária à sensação de desolação e solitude que paira sobre o mundo apresentado no game. Vale a pena conferir este trabalho que mescla Trip Rock e música eletrônica e é assinado pelo compositor ucraniano stonefromthesky. Meus destaques particulares vão para as faixas Wasteland Law e Ambush.
Ainda tocando no aspecto técnico e em uma nota menos positiva, porém, cabe mencionar que presenciei quedas de frames repentinas e abruptas em mais de uma ocasião enquanto jogava, o que denota certa falta de otimização aos meus olhos. Similarmente, penso que a grande quantidade de loadings entre áreas poderia ter sido mascarada com alguma mecânica particular, como uma animação ou coisa do tipo. Alguns desses loadings chegam inclusive a incomodar em sua duração, o que me leva a recomendar a instalação do jogo em um SSD a fim de amenizar um pouco a situação.
Por fim, é preciso mencionar que, tristemente, Undungeon não oferece suporte a português brasileiro. Como grande parte do brilho do jogo está na narrativa, fica registrada a esperança de que um futuro patch adicione suporte a nossa língua pátria — tendo em vista a qualidade geral da obra, fãs brasileiros do gênero certamente agradeceriam.
O fim da jornada
Undungeon tem os seus méritos e deve figurar no radar de todo jogador que deseja um RPG que preze pela narrativa e pela complexidade de seus sistemas. Infelizmente, deslizes como a movimentação travada e a dificuldade questionável impedem esta obra de alcançar o panteão dos grandes jogos independentes, mas é inegável que há diversão a ser encontrada aqui — basta que as expectativas sejam corretamente adequadas à realidade.
Prós
- Apresentação visual fantástica;
- Narrativa rica;
- Diversas possibilidades de personalização do personagem;
- Mecânicas de cores e órgãos traz complexidade ao jogo;
- Os dois personagens atualmente disponíveis conseguem ser distintos o bastante entre si.
Contras
- Movimentação travada para os padrões do gênero;
- Pode tornar-se muito difícil devido à decisões questionáveis de design;
- Sem suporte a português brasileiro;
- Quedas repentinas de frames e loadings frequentes denotam falta de polidez.
Undungeon — PC/XBO — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela tinyBuild
Análise produzida com cópia digital cedida pela tinyBuild