Halloween: fantasmas, aparições e assombrações no mundo dos jogos

Neste ano, daremos uma atenção especial a esse tema que é o preferido de muitos jogadores que se sentem carentes de títulos relacionados.

em 31/10/2021

Este será o terceiro ano seguido em que me responsabilizo pelo Especial de Halloween do GameBlast e percebi que, até o momento, não mencionei especificamente fantasmas e suas derivações em nosso amado entretenimento. Talvez seja em razão da grande variação sobre o tema (como é o caso da “múmia”, mencionado na matéria  do ano passado) ou mesmo em razão de outros destaques que fiz em 2019. No entanto, os jogos em que eles aparecem não são poucos — ainda assim, mencionei títulos como Sweet Home (Famicom).

Como este é um tema que interessa a muitas pessoas, este ano será dedicado especialmente àqueles que já desencarnaram, mas, por alguma razão ou outra, alguns ainda caminham entre nós. Vamos nessa? 

Sentem, que lá vem história…

A obsessão dos humanos com os seus mortos, a qual, invariavelmente, se conecta ao Halloween, remonta há alguns bons anos nas mais diversas culturas. Em torno de 3.000 a.C., os celtas elaboraram o festival Samhain, realizado na passagem entre o verão e o inverno que, em seu calendário, equivaleria ao dia 31 de outubro em nosso calendário, respectivamente correspondente ao início e fim das colheitas. Com a expansão do Império Romano sobre o território dos celtas durante os séculos V e VII, os romanos transferiram sua própria celebração, outrora comemorada em 13 de maio, e a transformaram na Lamuria, festival no qual depositavam leite e alimentos no túmulo de seus mortos para apaziguar seu eventual desejo de retornar, comemorado em… 31 de outubro.
Já com a consolidação da Igreja Católica mundo afora, em torno de 602 Anno Domini (nossa era, do Calendário Gregoriano), a Igreja tomou a Lamuria como o Festum omnium sanctorum (“Dia de Todos os Santos”, para nós), que, ao longo dos anos, foi transferido para o dia 1º de novembro, pois a festividade do dia 31 era atribuída aos pagãos. Para reforçar ainda mais a celebração, no século II a Igreja adotou o dia seguinte como o Dia de Todas as Almas (exatamente o nosso Dia de Finados), que objetiva a prece para auxiliar a alma dos mortos que estivessem presas no purgatório. No entanto, ainda no século II, muitos cristãos rezavam pelas almas de pessoas falecidas quando visitavam o túmulo dos mártires católicos.

Diz-se que foi nessa época em que foi inserida a “prenda” nessa data em específico, quando crianças pediam bolos para rezarem pelas almas no purgatório e que os pobres solicitavam alimentos e dinheiro pelas rezas aos mais abastados. Ao notarem a diferença material entre esses dois grupos sociais, os menos providos passaram a vandalizar, devidamente fantasiados, aqueles que se recusavam a oferecer algo pelas orações, surgindo daí a ideia em empregar fantasias na referida data.
 
Com a colonização da atual América do Norte pelos ingleses, os irlandeses e escoceses incrementaram à data criaturas de seu próprio folclore, tais como histórias de fantasmas e mesmo o “bicho-papão”, cuja caracterização provém de diversas culturas, tais como a espanhola, portuguesa e brasileira, a qual remete mesmo ao Баба-яга (“Baba Yaga”) da cultura eslava. Durante a Guerra Civil Americana, muitos temiam que os espíritos dos mortos que não fossem enterrados ou reconhecidos vagassem sobre a terra.
Representação de Baba Yaga no longa soviético Vasilisa prekrasnaya (василиса прекрасная, 1940)

A origem do Halloween como o conhecemos atualmente possui mais reveses, mas o que interessa para nós é que tudo começou com certa obsessão pela alma dos mortos. No México, o dia 2 de novembro é dedicado ao Día de los muertos, de origem indígena e atualmente reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Imaterial da Humanidade, sendo o momento de celebrar aqueles que faleceram e, crê-se, é o dia em que aqueles que partiram têm autorização para visitarem seus parentes ainda vivos.
 
Atualmente, algumas religiões se dedicam ao “intercâmbio” entre os vivos e os mortos, dentre elas o kardecismo e o xamanismo. Religiões de matriz africana, especialmente o candomblé, se valem dos Exus (também presentes no como divindades no jejê e no iorubá), que são almas desencarnadas que evoluíram ao longo dos anos e servem como guias espirituais e intermedeiam o fiel e as divindades. Indivíduos oriundos da África Ocidental e da Costa da Guiné e que foram levados até o Haiti como escravos “ocultaram” os espíritos que cultuavam (Ioás) na forma de santos católicos romanos, já que sua manifestação religiosa originária era perseguida.

O ponto nevrálgico para nosso artigo, no entanto, é este: de uma forma ou outra, por qualquer razão que seja, a humanidade possui um histórico de conexão com seus mortos. Em alguns aspectos, por respeito e celebração. Com a cultura moderna atual, como basicamente tudo o que a integra, o faz principalmente pelo entretenimento e, inevitavelmente, isso respingaria no mundo dos jogos eletrônicos.

Nem os mortos descansam

O conceito de “fantasma”, como a manifestação do espírito de algum falecido aos vivos remonta às civilizações pré-históricas. O cinema global explorou o nicho ao máximo, desde o (provavelmente primeiro “pseudodocumentário”) The Uninvited (1944), que foi ousado o suficiente ao afirmar que a aparição ocorrida no longa era real, até Ghost (1990), com seu romance picante (quiçá bizarro) que levou o público ao delírio na época, isso sem ignorar as inúmeras adaptações cinematográficas de romances.
The Uninvited (1944)

 

Não surpreendentemente, o mundo dos jogos eletrônicos aproveitou o filão, mesmo que a tecnologia disponível à época não fosse capaz de transmitir as sensações esperadas por quem busca entretenimento com essa temática.
 
O primeiro título que me remete é Haunted House, do Magnavox Odyssey, o qual acompanhava o console lançado em 1972, em um de seus cartuchos numerados. Em resumo, o jogo para dois ou mais participantes consistia em uma disputa entre detetives que deveriam colher pistas na caçada a um tesouro escondido em uma casa mal assombrada. Como tudo o que envolvia o Odyssey, o aspecto “tenebroso” dependia mais da imaginação dos jogadores do que das luzes que piscavam na tela de plástico colocada à frente do televisor. Ainda assim, Haunted House não apenas é considerado por muitos como o primeiro jogo de terror da história dos videogames, como mesmo o primeiro survival horror.
Haunted House (Magnavox Odyssey).
Haunted House lançado para Atari 2600 em 1982 era um tanto mais criterioso: no controle (literalmente) de um par de olhos, o jogador deveria percorrer uma mansão assombrada, outrora propriedade de Zachary Graves, a fim de encontrar as três peças necessárias para abrir uma determinada urna.
 
Uma geração de consoles adiante, enquanto o NES recebia adaptações questionáveis de filmes de terror hollywoodianos famosos, curiosamente o Famicom acolhia com exclusividade o já mencionado Sweet Home, lançado em 1989, baseado no longa japonês homônimo lançado no ano anterior, dirigido por Kiyoshi Kurosawa. O RPG/survival horror (atribuído como a grande inspiração para a série Resident Evil) consistia no controle de cinco personagens que adentravam a mansão do falecido Mamiya Ichirou  e, ao descobrirem que o lugar era assombrado por seu espírito, dentre outras criaturas, tentam deixar o local antes de serem todos mortos.
Sweet Home foi bastante perturbador.


 

 

 

 

 

 

 

 

 
As limitações técnicas da época, como de praxe, impactavam negativamente na experiência de medo que se buscava imputar ao jogador, sendo mais impactante o fato de que personagens eventualmente mortos em combate não poderiam ser ressuscitados (logo, definitivamente perdidos) do que a atmosfera proposta.
 
A geração 128-bits, que consolidou a perspectiva de jogos em 3D inaugurada na era 32- bits, contribuiu consideravelmente na imersão que jogos dessa natureza exigem. Não apenas franquias de horror como Resident Evil e Silent Hill foram aprimoradas, como também novas foram apresentadas ao público, sendo a série Fatal Frame talvez a mais interessante na temática “espíritos e assombrações”.

Conhecida como Project Zero no Japão, a franquia (outrora exclusiva para o PlayStation 2, mas também lançada para Xbox) se baseou em diversas lendas e superstições japonesas para desenvolver o enredo dos cinco jogos da série principal. Contudo, a premissa básica era a de que o (a) protagonista detinha tão somente uma câmera fotográfica municiada com lentes especiais para derrotar e capturar as inúmeras aparições que surgiam durante a jogatina.
Dentre os jogos principais, Crimson Butterfly (subtítulo de Fatal Frame II) me foi o mais memorável e tinha um charme todo especial porque não abusava do jumpscare, à la títulos como  Slender: The Arrival (Multi) e Outlast (Multi). A bem da verdade, me foi muito mais impactante aguardar uma multidão de fantasmas “andar” lentamente no meio da floresta escura enquanto eu aguardava em um estreitíssimo corredor entre cabanas de bambu.

Outro dos aspectos interessantes de Crimson Butterfly é a possibilidade em ouvir mensagens desesperadas de almas perdidas em uma espécie de rádio espiritual, a fim de desvendar alguns dos segredos do jogo. Em 2012, um port para Wii foi lançado com o título Fatal Frame: Deep Crimson Butterfly.
 
Ao longo dos anos, a série se apresentou também em jogos spin-offs para telefones móveis e consoles Nintendo, tais como Spirit Camera: The Cursed Memoir (3DS). Mesmo com as limitações visuais do console, tinha como ponto forte seu efeito 3D nativo, que foi empregado de modo divertido no título, já que o próprio aparelho seria a câmera propriamente dita. O game também vinha acompanhado de um livreto com elementos de realidade aumentada (AR) que, combinados com o portátil, permitiam descobrir segredos do enredo.
 
Tanto o Wii como o Wii U receberam jogos da franquia, sendo estes Fatal Frame IV: Mask of the Lunar Eclipse (prequela do jogo original, o primeiro a não ser desenvolvido pela Tecmo Koei e exclusivo do mercado japonês) — além do próprio Deep Crimson Butterfly, já mencionado — e Fatal Frame: Maiden of Black Water, respectivamente, sendo que este último recebeu na última semana ports para Switch, PS4/PS5, Xbox One/Series X/S e PC (via Steam), em comemoração ao 20º aniversário de lançamento da saga.

É claro que há no mercado outros jogos que explorem a temática, tais como a série Luigi’s Mansion que, convenhamos, é mais uma aventura do melhor entre os irmãos Mario do que um jogo de fantasmas propriamente dito. No entanto, para que os fãs do gênero não se sintam tão órfãos e “presos” em Fatal Frame, novos estúdios têm lançado produtos interessantes com relativo sucesso.

Um destes é a Kinetic Games, responsável por Phasmophobia, lançado em 2020 para PCs (mediante o Steam) e telefones móveis. O título segue a tendência do já consolidado modo “quatro jogadores contra um”, popularizado por jogos como Dead by Daylight (Multi) e Friday the 13th: The Game (Multi), nos quais os players se dividem entre aqueles que darão suporte (monitorando câmeras de circuito fechado de televisão e sensores de movimento) e os que enfrentarão cara a cara as aparições propostas pelo jogo, utilizando tabuleiros Ouija, itens religiosos etc. No mínimo, é um título que vale a pena para jogar com os amigos e, com o suporte a óculos de realidade virtual, a sensação de medo pode ser ainda maior.

É isso, então?

Questões religiosas à parte (e me desculpem aqueles que professam aquelas que mencionei e que, eventualmente, tenha me equivocado em algum ponto), o sobrenatural é um tema altamente explorado na cultura pop mundo afora, seja na música, no cinema, na literatura e, inevitavelmente, nos jogos eletrônicos. 
 
Mencionei em artigos anteriores que sou um cético e, embora (obviamente) não alimente temor ou acredite em tais questões, a temática, vira e mexe, acaba rondando alguns dos produtos que consumo. Ao contrário do cinema, que já está saturado do mais do mesmo, apelando cada vez mais para o jumpscare e fatidicamente para o gore, o entretenimento eletrônico sofre de certa escassez de bons trabalhos “fantasmagóricos”.
Phasmophobia tem potencial.

 

 

 

 

Com o avanço da tecnologia, e até mesmo, dos óculos de realidade virtual, talvez este fosse um bom momento para desbravar tal possibilidade, desde que não sejam cópias das cópias e não nos empurre ainda mais títulos com sustos gratuitos e toscos. Phasmophobia, por exemplo, pegou uma fórmula já esquematizada, embora apresentando-a em um novo e interessante pacote. A série Fatal Frame, por sua vez, está consolidada e segue firme e forte. Dentre tantos elementos de terror, uma das mais aclamadas é aquela relacionada àqueles que “já partiram”. Não reclamaria se outras mais surgissem.

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli


Mineiro, apaixonado por livros, música, filmes, discussões, Magic: The Gathering e, claro, jogos eletrônicos.
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