Ciência e videogames: entenda por que jogos de tiro podem estimular seu aprendizado motor

Estudo ainda em revisão indica que jogos de tiro melhoram aptidão motora de jogadores.

em 21/10/2021


Muitas pessoas praticam atividades por longos períodos de tempo para desenvolverem habilidades e reflexos, a fim de chegarem a um nível considerado profissional. É necessário ter persistência para realizar a mesma tarefa repetidamente, buscando que a coordenação dos movimentos se torne automática. Esse processo é chamado de aprendizado motor e acontece para qualquer prática que exija movimentos corporais, desde jogar futebol até aprender a tocar algum instrumento musical. 

Contudo, será que isso também acontece ao jogar videogame? Um grupo de pesquisadores norte-americanos, composto por membros de diferentes universidades, resolveu investigar se jogadores amadores e profissionais melhoram sua aptidão motora enquanto jogam frequentemente por mais de três meses. A prévia do estudo foi disponibilizada no acervo do bioRxiv e nos permite analisar algumas informações interessantes acerca de como aprendemos a nos movimentar e se jogos podem auxiliar a ciência no estudo do comportamento humano.

Aprendizado motor? Você com certeza já passou por isso!

Imagine que acabamos de ganhar um jogo que queríamos muito. Ao começar a jogá-lo, precisamos processar inúmeras informações novas: o que cada botão de ação faz, quais os menus, como é a física do jogo, o tipo de câmera, a sensibilidade do mouse ou controle. No início, é importante se familiarizar aprendendo as ações e os detalhes. Isso exige esforço e atenção, já que nesse ponto é comum ter que prestar mais atenção para tomar a maioria das decisões.

É só rolar duas vezes e cair direto nessa viga de madeira totalmente suspeita, impossível dar errado!
Depois de algum tempo jogando, não é mais necessário olhar o controle, porque acabamos nos acostumando com os movimentos do personagem e da mira. Porém, alguns deslizes ainda são cometidos, como errar muitos tiros ou pular antes da distância necessária e cair em alguns buracos ou armadilhas. Durante esse período, os movimentos aprendidos são melhorados e produzem um ajuste cada vez mais preciso ao longo do tempo.

Por fim, já zeramos o jogo diversas vezes e agora passamos um bom tempo no modo multiplayer, sendo constantemente desafiados. Nesse estágio,nem nos preocupamos em calcular a distância do pulo ou escolher qual arma vai utilizar, pois muitos movimentos já se tornaram automáticos.

Grafite no mapa de CS:GO em homenagem ao no scope com rifle de longo alcance do jogador profissional conhecido como s1mple.
Sem tanto esforço e com mais precisão e velocidade, conseguimos saber a altura exata para acertar um tiro na cabeça e também como atingir um alvo que se mexe, tudo isso enquanto alteramos nosso padrão de movimento para evitar ser alvejado. Essa evolução é adquirida ao custo de muitas horas de jogo, após termos resiliência para superar diversas frustrações e só então, percebemos que nosso desempenho está muito melhor quando comparado ao começo da jornada. Lembrando que não devemos confundir evolução com perfeição, mesmo profissionais ainda erram. As principais diferenças estão relacionadas à quantidade e os tipos de erro, que geralmente são menos frequentes e ocorrem durante a execução de  jogadas mais complexas.


Afinal, esse tipo de processo nos jogos pode ser considerado aprendizado motor?

Para entender se os jogadores desenvolvem suas habilidades motoras e se jogos podem ser utilizados para estudar comportamentos humanos, cientistas firmaram uma parceria com o estúdio State Space Labs para criar um jogo de tiro em primeira pessoa, o Aim Lab. Esses pesquisadores, coordenados pelo Dr. David Hegger, da Universidade de Delaware (Smaaaaash!), coletaram dados de aproximadamente 100 mil jogadores (amadores e profissionais) ao longo de 100 dias. Foram analisadas as pontuações do modo Grigdshot, que basicamente é um desafio de tiro ao alvo com contagem de tempo regressiva.

O Aim Lab foi desenvolvido com o propósito de treinamento para jogos de tiro em primeira pessoa.
Foi observado apenas um pequeno aumento na relação de acertos por tiros disparados, porém o desempenho dos jogadores profissionais poderia afetar o resultado devido ao treinamento diário em outros jogos. Isso resulta, de modo geral, em performances superiores em comparação às dos amadores.

Pensando nisso, os cientistas também analisaram a quantidade de acertos por segundo e descobriram que a média por jogador aumentou após 100 dias. Como esperado, mais repetições levaram a um melhor desempenho. No entanto, o ganho mais expressivo ocorreu em treinos de aproximadamente uma hora por dia. Após esse tempo, o progresso começou a diminuir, provavelmente por causa da fadiga. Além disso, houve retenção de aprendizado e, quando um jogador aquecia por alguns minutos no dia seguinte, recuperava o nível do dia anterior e começava a melhorar. Um ponto importante a se ressaltar: quando os movimentos se tornaram automáticos (ou próximos disso), a evolução ficou mais lenta e saturada.

Esforço, dedicação e tempo são importantes no processo

Esses dados ajudam a entender, por exemplo, quando começamos a nos aventurar pelo modo multiplayer de algum jogo de tiro, com a esperança de ter um desempenho similar à experiência de enfrentar bots. No fim, acabamos nos decepcionando e ficamos irritados ao presenciar o nível de habilidade de um jogador experiente. Como vimos anteriormente, para automatizar um conjunto de movimentos é necessário que a repetição seja feita até que o movimento se torne automático.

Isso acontece porque são necessários três estágios para o aprendizado motor: cognitivo, associativo e autônomo. Durante o estágio cognitivo, existem muitas informações novas para assimilar, então toda decisão tomada precisa ser consciente; no associativo, a maioria das informações já foi assimilada, muitas ações não requerem tanta atenção para serem realizadas e a precisão e velocidade vão sendo aos poucos ajustadas e melhoradas.

Durante nossa vida, podemos aprender diversas atividades e as memórias geradas nesse processo permitem que consigamos reaprender mais rápido após um tempo sem praticar.
Já no estágio autônomo, a maioria das ações é automatizada, exigindo bem menos esforço e sendo executada mais rápido e com mais precisão. Nesse caso, a facilidade em realizar os movimentos permite que as pessoas realizem outras funções ao mesmo tempo, como analisar o ambiente (cenário) e pensar em diferentes estratégias. Essa é uma das diferenças mais gritantes dos jogadores profissionais em relação aos amadores, a capacidade de automatizar as mecânicas de jogo enquanto planeja jogadas complexas e analisa o ambiente ao seu redor.

Informações como as do estudo em questão intensificam a importância da prática diária de qualquer atividade para ter uma melhoria contínua. O modo como adquirimos e aperfeiçoamos a aptidão motora ao jogar é basicamente o mesmo utilizado para aprender outras atividades que necessitam de movimentos corporais. A utilização de jogos em estudos científicos possibilita não só revelar descobertas interessantes, mas também pode ajudar a criar e melhorar estratégias para jogadores profissionais nos eSports.

Os eSports possuem atualmente um efeito similiar ao futebol, muitos jovens de vários países e com diversas faixas de renda sonham em jogar profissionalmente.

Como funciona o aprendizado das habilidades necessárias para se tornar um ótimo jogador? Quantas horas por dia de prática seriam ideais? É possível criar métodos e regimes de treinamento, baseados em dados científicos, para desenvolver jogadores excepcionais? Como o desempenho dos jogadores melhora com o tempo? Ao que tudo indica, o uso de jogos no estudo do comportamento humano se tornará cada vez mais comum, principalmente pelo poder de alcance que possui em pessoas do mundo inteiro e também por ser relevante cultural e financeiramente. 

É provável que, com o tempo, as respostas para essas perguntas sejam reveladas e possam transformar o cenário competitivo de eSports. Os cientistas apenas começaram a utilizar jogos de videogame em seus estudos e contamos com pouca informação sobre o quão viável são essas metodologias. Estamos diante da chamada ciência de fronteira, que a cada nova descoberta, nos revela informações inéditas e abre caminhos para inúmeras possibilidades de utilização, inclusive no aperfeiçoamento de habilidades motoras através de experiências no mundo virtual. 

FalleN e coldzera são pro players brasileiros de Counter Strike: Global Offensive e ganharam inúmeros títulos, inclusive alguns prêmios de melhor jogador do mundo.

Ainda é cedo para fazermos afirmações, mas a partir dos estudos, é possível que novas estratégias surjam e poderemos encontrar muitos jogadores acima da média, como o FalleN e o coldzera e o nível dos campeonatos será totalmente diferente do que temos agora. Enquanto isso, seguimos jogando no modo old school: morrendo e morrendo e morrendo novamente. 

O Aim Lab está atualmente em fase beta e disponível gratuitamente para PC via Steam. Existe a possibilidade de realizar análises dos treinos buscando melhorar o desempenho em jogos de tiro em primeira pessoa.

Fonte: Long-term Motor Learning in the Wild with High Volume Video Game Data 
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli



Biólogo que vive em jogatinas há muitos anos, passou por alguns consoles, mas segue por mais tempo na dinastia Playstation. Curte franquias como Metal Gear, Silent Hill, God of War e outros tantos jogos. Fala de tudo um pouco em @afogadosnodeserto
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