No dia 19 de abril de 2005, um novo jogo de plataforma 3D chegou ao mercado. O que logo chamava a atenção de quem olhava para Psychonauts pela primeira vez era o design peculiar de seus personagens, com cabeças enormes e rostos caricatos que desafiavam qualquer noção de simetria e proporção: como se Pablo Picasso pintasse o retrato de personagens da Nickelodeon.
Mas entre aqueles que deram uma chance ao game e embarcaram na aventura de Razputin Aquato e seus amigos, a maioria considera o título até hoje uma obra-prima no mundo dos videogames. O mérito está no enorme talento da equipe do estúdio Double-Fine, liderada pelo veterano Tim Schafer, que fundou a empresa após mais de dez anos trabalhando na LucasArts.
No dia 25 de agosto de 2021 — após 16 longos anos de espera —, finalmente foi lançado Psychonauts 2, para a alegria dos fãs. Será que a sequência conseguiu resgatar todos os aspectos que tornaram o jogo tão especial e amado?
Continuando a jornada de Raz
A história de Psychonauts 2 se passa apenas alguns dias após os acontecimentos do primeiro jogo, dando continuidade à jornada de Razputin, mais conhecido pelo apelido de Raz. O jogo tem início com o garoto de 10 anos de idade, que veio de uma família de malabaristas e que descobriu ainda cedo ter poderosas habilidades psíquicas, chegando ao Centro de Comando dos Psychonauts — grupo internacional de agentes secretos que trabalha junto ao governo para manter a paz no mundo. Raz tem o objetivo de se tornar um agente oficial dos Psychonauts e, para isso, ingressa na agência como um estagiário.
Inicialmente, Raz é designado a fazer tarefas simples e a assistir muitas horas de aulas com os Psychonauts mais experientes. Porém, algo terrível acontece: um importante Psychonaut é sequestrado e, a partir desse incidente, é descoberto um grande plano que coloca em risco toda a agência. Alguém está tramando trazer de volta a terrível vilã Malígula — uma psíquica muito poderosa, e que já causou a morte de muita gente — com o objetivo de acabar com os Psychonauts. E, como se isso não bastasse, os agentes descobrem que há um traidor entre eles, que está manipulando a equipe para atingir seus objetivos.
A partir daí, a missão principal se torna descobrir quem é o traidor e reunir os Psychonauts fundadores da agência, os únicos capazes de impedir o inimigo de completar seu plano. Nesse momento, Raz encontra a oportunidade para usar suas habilidades a favor dos Psychonauts e, se conseguir ajudar a salvar a agência, poderá se tornar oficialmente um deles.
Caso você não tenha jogado o primeiro game, não se preocupe: Psychonauts 2 possui logo no início um breve resumo dos acontecimentos anteriores, que serve tanto para quem está embarcando nesse universo pela primeira vez, quanto para aqueles que jogaram o primeiro Psychonauts há muito tempo e se lembram pouco dos acontecimentos principais do jogo.
Explorando as mentes alheias
Psychonauts 2 possui uma estrutura de jogo fácil de entender. Temos o Centro de Comando dos Psychonauts, que serve como uma espécie de hub central, onde ficam as salas de treinamento, um restaurante, a sala de correspondências e vários outros locais interessantes, que podemos visitar para conversar com os personagens e enriquecer ainda mais a experiência de jogo, além de procurar por colecionáveis e itens que ajudam a fazer upgrades nas habilidades de Raz. Mas onde o jogo brilha mesmo é nos cenários que estão dentro das mentes dos personagens, e é sobre isso que vamos falar um pouco agora.
O núcleo que une todos os elementos do universo de Psychonauts está na ideia de ser capaz de visitar as mentes dos personagens, o que é possível graças às habilidades telepáticas de Raz. Cada fase do jogo é a mente de um personagem diferente e, por conta disso, cada uma é totalmente diferente das demais e cheia de peculiaridades, pequenas surpresas, referências e diálogos que tanto servem como elementos de gameplay, quanto para ampliar nosso conhecimento sobre cada personagem.
Por exemplo, ao visitar a mente de um dentista, você irá se deparar com cenários cheios de dentes, plataformas que parecem línguas, instrumentos odontológicos como pinças e espátulas de metal por toda parte, e assim por diante. Já em outro momento, visitando a mente de um personagem que trabalha na área de correspondência do Centro de Comando, você irá encontrar coisas como máquinas de escrever gigantes, pilhas de papel espalhadas por toda parte e envelopes de cartas enormes que flutuam pelo cenário e que servem de plataforma para chegar a diferentes pontos do local.
Esses são apenas dois exemplos da variedade de cenários que você irá encontrar em Psychonauts 2. Cada um desses níveis é muito bem feito, tanto na parte visual quanto no level design e na trilha sonora. O carinho e o cuidado que os desenvolvedores dedicaram ao jogo são tão grandes que podem ser sentidos a todo momento e em cada pequeno detalhe.
Eu me peguei sorrindo sozinho em vários momentos da jornada ao me deparar com as surpresas visuais, diálogos e mecânicas de jogo que cada novo trecho do jogo reserva. O que senti nesses momentos foi uma enorme gratidão pelo simples fato desse jogo existir e por ter a oportunidade de jogá-lo. E conversando com amigos, pessoas na internet, e até ouvindo alguns episódios de podcast sobre o game, fiquei bem feliz ao perceber que esse sentimento parece ser o de boa parte das pessoas que jogam Psychonauts 2.
A psicologia em Psychonauts 2
Ainda falando sobre o sistema de visitar as mentes dos personagens no jogo, eu gostaria de falar um pouco sobre o que talvez seja o ponto mais forte de Psychonauts 2: a forma como o jogo consegue abordar temas pesados com uma leveza e sensibilidade que raras vezes vemos em videogames. Tim Schafer e sua equipe se inspiraram muito na obra de Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço que fundou o campo da psicologia analítica, e essa inspiração permeia todo o jogo, tanto nos elementos visuais, quanto nos diálogos e até nos inimigos e nos itens colecionáveis, tornando o game uma obra riquíssima que recompensa com inúmeras surpresas quem dedica tempo à exploração de seus cenários e conversando com os NPCs.
Quando falamos sobre a mente humana seria falta de honestidade ignorar os traumas, sentimentos negativos e problemas psicológicos que nos tornam quem somos. E muitas das obras que tratam desses temas acabam se inclinando para o suspense ou o terror, retratando pessoas com distúrbios mentais como psicopatas assassinos, ou pessoas profundamente deprimidas com tendências suicidas. Mas poucas obras mostram que todo ser humano precisa lidar com problemas mentais e psicológicos em maior ou menor grau.
Nesse ponto, Psychonauts 2 é uma obra muito necessária, pois abre a porta para muitas discussões interessantes e importantes sobre assuntos que ainda hoje são tratados como tabus. O jogo aborda temas sérios como os vícios, o uso de drogas e o alcoolismo, o transtorno dissociativo de personalidade, os problemas mentais, a demência, a compulsão alimentar e outros temas de forma muito sutil, sensível e leve — e até com uma boa dose de humor de muito bom gosto — e nos ajuda a ver que esses temas precisam ser encarados como parte do ser humano e não como coisas negativas que devemos negar e das quais devemos fugir.
Algo muito bonito que o jogo nos ensina de forma tocante e inteligente em sua narrativa é que não devemos tentar mudar a mente das pessoas, mas sim, ajudar e dar nosso apoio para que as pessoas à nossa volta possam enfrentar e derrotar seus próprios demônios internos. Além disso, Psychonauts 2 também nos mostra que todos nós devemos nos preocupar com a saúde mental e psicológica — e não apenas as pessoas com quadros mais severos. E isso, mesmo em pleno 2021, ainda é algo que a maioria das pessoas não dá muita atenção.
Psychonauts 2 lida com temas sérios de forma sensível e inteligente. |
O retorno de uma fórmula clássica
Psychonauts 2 é um bom jogo de plataforma 3D, com controles simples que funcionam bem. Sua jogabilidade lembra bastante a de jogos do mesmo gênero lançados na época do primeiro Psychonauts, o que traz algumas coisas boas e outras não tão agradáveis, por serem já um tanto datadas e não se encaixarem muito bem para quem está mais acostumado com a jogabilidade de jogos mais novos.
A jogabilidade consiste na movimentação básica de andar, correr e executar saltos duplos e mais um leque de ações que vêm das habilidades psíquicas de Raz. A habilidade mais útil é a de poder gerar uma esfera de energia psíquica: com ela, Raz consegue flutuar entre diferentes pontos do cenário ou subir em cima da esfera de energia como um malabarista, para se movimentar de forma mais rápida — o que é explicado pelo fato do personagem ter sido criado no circo.
Os controles funcionam bem e é divertido se movimentar pelo jogo. Mas em alguns momentos, principalmente quando se exige maior coordenação no uso do pulo duplo em conjunto com o uso da esfera flutuante, é possível morrer algumas vezes até conseguir executar o conjunto de ações da forma que o cenário exige.
Porém, isso não chega a ser frustrante, pois os checkpoints do jogo são muito bem posicionados e sempre que Raz morrer por cair em um salto errado ou por outro motivo, o jogo reiniciará rapidamente de um ponto bem próximo de onde o jogador estava. Isso ocorre também nos trechos de combate e em lutas contra chefes.
Talvez o maior problema na jogabilidade de Psychonauts 2 esteja em alguns momentos de combate. Raz é capaz de executar ataques à curtas distância, atirar nos inimigos usando seus poderes e utilizar algumas de suas habilidades para ajudar nas batalhas. As ações são simples e fluem bem na maior parte do tempo, mas quando há um grande número de inimigos na tela, a câmera se atrapalha bastante, e muitas vezes você nem saberá quem foi que te acertou. Porém, apesar de frustrante, isso não chega a atrapalhar o aproveitamento do jogo como um todo, pois o combate é algo bastante secundário e ocorre em poucos momentos da jornada de Raz.
Os combates podem frustrar em alguns momentos. |
Raz possui 7 habilidades psíquicas no total, que são desbloqueadas conforme se avança na história do jogo. Essas habilidades podem ser mapeadas nos botões "de ombro" do controle conforme a necessidade e as preferências do jogador. O mapeamento é feito segurando o direcional digital para cima, o que abrirá um menu radial contendo as habilidades. Nesse menu, basta utilizar o analógico direito para escolher a habilidade que deseja mapear e então pressionar o botão de ombro que deseja utilizar para acionar a habilidade. Esse sistema de mapeamento das habilidades é um pouco confuso e poderia ter sido melhor planejado, mas com algumas horas de jogo, o processo acaba se tornando mais natural.
Uma aula de direção de arte
Psychonauts 2 possui uma das melhores e mais fascinantes direções de arte que já vi em um videogame. Apesar de à primeira vista o design dos personagens causar uma certa estranheza, e até talvez levar alguns a ter um certo preconceito contra o game, quando entramos no universo do jogo e vemos a forma como cada cenário é construído e uso das cores, formas e texturas, é impossível não ficarmos impressionados. O estilo cartunesco e com proporções e ângulos surreais tanto dos personagens quanto dos cenários, combinado às texturas de alta qualidade e resolução, traz um resultado visual muito bonito, que enche nossos olhos.
A biblioteca é um dos vários cenários fascinantes do game. |
Apesar de o jogo ter sido lançado para a geração passada, sendo possível jogar no PlayStation 5 e nos Xbox Series via retrocompatibilidade, a qualidade das texturas e dos efeitos visuais é surpreendente. Joguei a versão de PC com os settings gráficos entre médio e alto e com resolução Full HD e a maioria das texturas é tão bem feita que parece ser possível até tocar alguns dos objetos na tela. E, apesar da enorme qualidade, o jogo é muito bem otimizado e raramente sofre com quedas na taxa de quadros.
Quem mais pegou essa referência? |
Conclusão
Psychonauts 2 levou 16 anos para chegar ao mercado, mas a espera valeu a pena — e muito. Os fãs do primeiro game poderão mergulhar mais uma vez nesse universo tão especial e rever Raz e outros velhos conhecidos. E para quem ainda não conhecia a série, essa é uma oportunidade para experimentar um jogo muito singular e, quem sabe, depois até se sentir motivado a ir atrás do primeiro game da série.
O estúdio Double Fine conseguiu nos entregar uma obra de arte incrível em que podemos perceber a todo momento o carinho com que a equipe trabalhou no projeto. Você irá sentir um quentinho no coração e um sentimento de gratidão por esse jogo existir, seja pela sua personalidade, sensibilidade ou empatia.
Psychonauts 2 é um jogo que está destinado a tocar a todos que o jogarem, e nos deixa na expectativa para ver qual será o próximo projeto de Tim Schafer e de sua talentosa equipe.
Prós
- Jogabilidade divertida que remete à era de ouro dos jogos de plataforma 3D;
- Visuais de encher os olhos em uma das melhores direções de arte que você verá na vida;
- O jogo consegue abordar temas sérios de forma sensível e inteligente e nos motiva a refletir;
- Cada trecho do jogo é único e cheio de surpresas, referências e diálogos interessantes que fazem valer a pena explorar o máximo cada cenário.
Contras
- A câmera fica um tanto confusa em trechos de combate com muitos inimigos na tela;
- O jogo não possui melhorias de qualidade de vida comuns em jogos atuais, como mapas mostrando a localização de coletáveis, o que pode frustrar quem busca a platina ou os 1000G.
Psychonauts 2 - PC/PS4/PS5/XBO/XSX - Nota 9.0Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator