De um modo em geral, os jogos de corrida partiram do princípio de simular esportes da vida real, tais como disputas à la Fórmula 1, Fórmula Indy, National Association for Stock Car Auto Racing — NASCAR ou mesmo o famigerado MotoGP. No entanto, em 1991, a Electronic Arts, pioneira em promover novos padrões para jogos do gênero, apresentou um conceito nunca antes explorado: disputas entre pilotos amadores de motocicletas que, além de disputarem “rachas” em rodovias, atracavam-se com diversos instrumentos — de cassetetes a correntes. O produto foi apresentado como Road Rash.
Um gênero bem representado, mas apenas no melhor console do mercado à época
Dentre muitas de minhas paixões em estilos de jogos, o gênero corrida está entre meus Top 5, com predileção àqueles que sejam aos moldes arcade: o controle simplificado dos veículos que oportunize ao jogador focar na diversão pura e simples é um de seus charmes.
Road Rash se insere nesse conceito, logo, curvas a mais de 90 km/h (ou 55,92 mi/h para os norte-americanos) enquanto se esbofeteia um adversário com as próprias mãos (ou o atinge com a arma roubada dele mesmo) não serão necessariamente um problema.
Dan Geisler. |
Em setembro de 1991 (mês de lançamento de Road Rash), em plena 4ª geração de consoles (com o SNES tendo chegado ao mercado norte-americano em agosto do mesmo ano), o Mega Drive despontava como o console ideal para o projeto.
Carl Mey (diretor técnico) e Dan Geisler (programador) foram contratados pela EA para integrar a equipe de Mario Andretti Racing, título de corrida do tipo stock car originalmente previsto para o NES. No entanto, havia um problema: Mey e Geisler receberam a missão de projetar um efeito de “estrada inclinada” e o console, por sua vez, era tecnicamente incapaz de reproduzi-lo. Em suma, o projeto foi suspenso e, posteriormente, lançado em 1994 para o Mega Drive.
E onde Road Rash entra nisso tudo? Nos anos 1990, a gerência da EA decidiu que o estúdio passaria a desenvolver jogos internamente; ou seja, teriam uma equipe própria para desenvolver títulos para consoles, visto que, desde o crash dos videogames de 1983, terceirizavam qualquer contrato envolvendo aparelhos dedicados — desde então, o estúdio se dedicava tão somente a jogos para computadores pessoais.
A equipe responsável pelo projeto era integrada, além de Walter Stein (co-designer) e Randy Breen (produtor e designer), que esteve envolvido no desenvolvimento de Indianapolis 500: The Simulation, um dos primeiros simuladores de corrida a serem lançados para dispositivos caseiros — algo comum em arcades; além de Carl Mey e Dan Geisler.
Breen, inclusive, possuía uma nova proposta: algo que oferecesse mais entretenimento e acessibilidade a qualquer tipo de jogador, em contrapartida à sua experiência profissional anterior. Mario Andretti Racing, ao contrário, tinha uma pegada mais próxima à de Indianapolis 500. Com isso em mente, Breen, Geisler, Mey e Stein discutiram dias a fio até decidirem que os veículos em questão seriam motocicletas (mesmo QuadRunners — as “motos” de quatro rodas — foram cogitadas, porém rejeitadas).
Indianapolis 500 (DOS) |
O conceito foi apresentado à diretoria com o nome Road Rash on Mulholland Drive e, como todos já previmos, foi reduzido para “Road Rash” — após algum conflito com os gerentes em razão do conceito: pilotos se atracando fisicamente enquanto disputam rachas em autoestradas. Uma curiosidade: road rash é um termo que se refere a lesões sofridas em quedas quando se pilota em alta velocidade em estradas, embora também seja empregado por praticantes de skateboarding e patinadores.
Road Rash
O conceito do jogo é basicamente como exposto acima: o jogador é colocado na pele de um participante de corridas de motocicleta clandestinas, com $1000 no bolso e um veículo para lá de questionável para as disputas.
Infelizmente, não há a possibilidade de se escolher um personagem, no entanto, em se tratando dos estágios, estes existem de sobra: são cinco níveis a serem escolhidos entre diversos locais do estado da Califórnia, que vão desde Pacific Coast Highway a Sierra Nevada, sendo cinco pistas por estágio.
O jogador deverá terminar a corrida ao menos em 4º lugar (dentre 14 pilotos, incluindo o próprio). A depender de sua posição, receberá menos ou mais dinheiro, o qual será investido na aquisição de novas — e mais poderosas — motocicletas, em consertar o veículo atual ou mesmo em pagar a fiança caso seja detido pelos patrulheiros — um conceito muito interessante e divertido em Road Rash.
Inicialmente, o jogador utilizará apenas suas habilidades como piloto e os próprios punhos para se atracar contra outros corredores, no entanto, se algum deles estiver armado e atacá-lo, será possível tomar para si o objeto e utilizá-lo contra o próprio adversário.
Para equilibrar o jogo, há duas barras de energia: uma é destinada ao estado físico da motocicleta, enquanto a outra para o próprio piloto. Se a barra do veículo estiver totalmente vazia, as avarias não permitirão que prossiga na corrida e o jogador terá de pagar os respectivos consertos — caso não possua recursos financeiros suficientes para tanto, o jogo será reiniciado (o mesmo ocorre quando os patrulheiros o prendem e não há dinheiro suficiente para a fiança).
A barra de “vida” do piloto, no entanto, servirá como registro de quanto ele ainda suporta “ataques”: quando ela se esvazia completamente, o jogador será derrubado de seu veículo, terá de correr até a motocicleta, montá-la e prosseguir na disputa. Um aspecto interessante dessa barra é que, enquanto o jogador não está fisicamente atracado com adversários, ela se encherá novamente em uma velocidade considerável — algo muito bem-vindo para que o jogo não se torne frustrante ao longo das partidas.
Não bastassem as estradas repletas de curvas e o famigerado efeito de “estrada inclinada” (que, dependendo da velocidade, fará com o que o jogador “salte” como em uma rampa, podendo perder o controle sobre o veículo), carros “civis”, patrulheiros rodoviários, adversários insanamente agressivos e animais como alces e vacas invadirão inadvertidamente a pista, fazendo com que o impacto da batida lance o jogador ao chão — sendo um dos aspectos mais hilários do jogo. Outra curiosidade: Road Rash foi um dos títulos pioneiros a inserir veículos comuns, que nada têm a ver com as corridas, como um obstáculo extra.
A tela, por sua vez, possui informações importantes e conceitos interessantes: além da óbvia visualização da pista como um todo e da presença dos medidores (barras) acima mencionados, na tela também constarão ambos os retrovisores da motocicleta (muito precisos para se precaver de eventuais adversários se aproximando), o velocímetro e uma terceira barra de “vida”, referente ao piloto que estiver mais próximo do jogador. Mas, ao contrário do indicador do piloto, seus adversários não terão as barras preenchidas pouco a pouco. Isso permite elaborar estratégias para eliminar de vez um piloto que está “à míngua” ou simplesmente ultrapassar à distância um inimigo com a barra cheia que, por sua vez, está em plenas condições de disputar o pódio no “braço”.
Há um porém quanto à quantidade de informações na tela do jogador: disputas entre dois jogadores reais são realizadas de forma intercalada. Em outras palavras, infelizmente não será possível disputar uma partida contra amigos ao mesmo tempo.
The Road Rash Gang: equipe de desenvolvimento na capa do manual original. |
Visualmente, Road Rash possui gráficos equivalentes a outro sucesso do Mega Drive, Super Hang On, enquanto a trilha sonora destaca os sons de sintetizadores característicos do console: há quem prefira os sons mais graves de jogos para SNES — apenas para fins de comparação a seu principal concorrente —, contudo estão longe de serem considerados ruins. Os efeitos sonoros, no entanto, se limitam aos golpes, ao “Yeah! Yeah! Yeah!” do personagem jogável quando conclui uma corrida ou ao seu “grito” quando atinge um veículo “civil” ou algum animal. Por outro lado, não há qualquer som dos motores das motocicletas — o que é algo bem estranho para um jogo de corrida.
Quanto aos comandos, os três botões convencionais do controle (“A”, “B” e “C”) são mais do que suficientes para as principais ações do jogador: acelerar, frenar e atacar seus adversários, logo, um gamepad de seis botões não é imperativo para aproveitar o título.
30 anos e a pergunta que não quer calar…
Road Rash completará 30 anos de existência em setembro próximo. A questão principal é: ainda vale a pena? Como dito anteriormente, sou apaixonado por jogos de corrida no estilo arcade e, quanto menos convencionais forem, mais interessantes se tornam para mim.
Road Rash foi um marco no gênero, inseriu conceitos delicados (agressões físicas contra outros pilotos e corridas clandestinas) e definiu um conceito. Não à toa o título de estreia foi um sucesso, inclusive sendo “portado” para Game Boy Color, Amiga, Game Gear e Master System (sim, eles foram capazes de realizar a façanha da “estrada inclinada”), levando a duas outras sequências, no entanto, exclusivas para Mega Drive.
Além disso, um novo Road Rash (homônimo, não um reboot ou port) foi lançado em 1994, quando o disco compacto foi inserido nos consoles caseiros, recebendo versões para Sega CD, 3DO, Windows, PlayStation e Saturn (esse título merece um artigo à parte), sem ignorar, inclusive, Road Rash 3D, exclusivo para PlayStation.
Game Boy Advance, Nintendo 64 e mesmo celulares em Java receberam títulos exclusivos: Road Rash: Jailbreak, Road Rash 64 (o qual não possui qualquer participação da EA em seu desenvolvimento, estando a marca licenciada à THQ na ocasião) e Road Rash, respectivamente.
O legado deixado por Road Rash inspirou estúdios como EQ-Games e Maximum Games a desenvolverem Road Redemption (Multi) (que é o mais próximo que teremos nas novas gerações do título original) e Road Rage (um infame jogo de mundo aberto, completamente bugado e que este redator teve a ousadia de adquirir lacrado por R$ 150 — os mais mal gastos em um bom tempo dedicado a jogos), respectivamente.
Road Redemption é uma das melhores dentre as opções atuais para amantes de Road Rash. |
Bem recebidos ou não, o fato de títulos que se inspiram em Road Rash ainda serem lançados — alguns deles recebidos com considerável atenção do público — demonstra que é um segmento dos jogos de corrida, especialmente motocicletas, querido pelo público e que faz falta no mercado.
Revisão: Ives Boitano