Análise: Cris Tales (Multi) é uma bela história escrita com linhas (de código) tortas

Desenvolvido para ser uma carta de amor ao gênero JRPG, sua beleza é ofuscada por uma performance técnica ruim.

em 05/08/2021

Tempo. Ele intriga a ciência, inspira os autores, e organiza nossa vida. Ironicamente, enquanto procurava uma referência sobre este fenômeno para começar o texto desta análise, me deparei com esta citação de Albert Einstein, um dos mais importantes nomes da física moderna, de que a “diferença entre passado, presente e futuro é apenas uma persistente ilusão”.


A frase de Einstein define bem minha experiência com o RPG lançado pela Modus Games, na forma da ilusão de pensar que jogaria mais um ótimo título deste gênero. Ao lembrar de um passado onde fiquei interessado neste jogo quando foi anunciado, passei pela controversa experiência de jogá-lo, já pensando no que futuramente escreveria sobre ele em uma análise. Pois bem, eis aqui o que tenho a dizer sobre Cris Tales.

Hora de cumprir seu destino, Crisbell

Nossa história começa num humilde povoado chamado Narim. É neste simpático local que conhecemos Crisbell, uma jovem simpática que vive em um orfanato desde muito pequena sob os cuidados de uma figura materna que administra o lugar. O que parecia mais um dia comum na vida da garota acaba se tornando um dos acontecimentos mais importantes de sua vida.


Enquanto colhe rosas, Crisbell é surpreendida por um estranho sapo falante trajando uma cartola, chamado Matias. Ao seguir o anfíbio, ela manifesta o poder de vislumbrar passado e futuro ao mesmo tempo que vive o presente, podendo manipular os Cristais do Tempo e se descobrindo uma maga especializada neste poder.


Ainda assustada com tantas novidades, a jovem tem uma apocalíptica premonição sobre o futuro, e ele está ligado a uma figura importante do presente, conhecida como Imperatriz do Tempo. Com a ajuda de Matias, Crisbell aprende a importância de seu poder ao auxiliar os camponeses de Narim durante um ataque inimigo. Na ocasião, eles são apresentados a um jovem guerreiro e mago elemental chamado Cristopher.


O destino ainda coloca mais uma pessoa na vida de Crisbell: o mago da natureza Wilhelm, um jovem cuja idade esconde não apenas mistérios, mas um vasto conhecimento sobre o que está acontecendo com a menina. Ele assume o papel de mentor da jovem, e os três têm como objetivo viajar pelo mundo para visitar catedrais que abrigam murais mágicos que irão ajudar a órfã a manifestar mais de seu poder e aprender a controlá-lo, permitindo que ela seja capaz de mudar o futuro que profetizou.



Um mundo sobrenaturalmente belo

Um dos pontos onde não vou economizar elogios em Cris Tales é no visual. Foi por conta da belíssima direção de arte do jogo que fui fisgado quando ele foi anunciado pela primeira vez, em meados de 2019. Tudo que vemos é tão caprichosamente desenhado, nos passando a sensação de ver as ilustrações de um livro infantil ganhando vida em nossa frente.

Os poderes de Crisbell deixam essa experiência ainda mais valorizada. Quando a garota manifesta sua habilidade, ela é capaz de ver os locais por onde viaja em três épocas distintas: no passado, no presente e em um provável futuro. Atente-se a este “provável”, pois voltaremos a esse detalhe logo mais.


Em toda nova cidade que entramos neste mundo fantástico, cada qual com sua beleza única, ao conversar com os cidadãos vamos tomando ciência da história do local e dos fatos que ocorreram para que determinados acontecimentos estejam em curso ou que estejamos vislumbrando no futuro. Apesar de possuir um poder tão extraordinário, Crisbell não tem capacidade de se transportar para aquela época, algo que apenas o pequeno Matias é capaz de fazer.

Determinados eventos exigem que o anfíbio dê saltos temporais para o passado ou futuro, com o intuito de obter uma informação ou item que venha a modificar o rumo de algo ou alguém. Essas escolhas determinam o rumo da história e proporcionam a chance de sentir a responsabilidade do poder que a protagonista tem em suas mãos. Estas oportunidades estão inseridas no jogo no formato de sidequests, e em sua maioria premiam o grupo com alguma recompensa.


O carisma dos locais compete diretamente com a simpatia do nosso grupo de heróis e de alguns dos principais personagens que encontramos durante a jornada. Os estúdios colombianos Dreams Uncorporated e SYCK demonstram um grande apreço ao proporcionar uma experiência totalmente dublada, em inglês, dos diálogos do jogo, o que ajuda muito a transmitir os sentimentos dos personagens durante suas conversas. Se os textos estivessem em português, seria excelente para nós.

É muito fácil se encantar com o tom de inocência de Crisbell, o ar de cavalheirismo de Matias ou as mancadas de Cristopher. Cada indivíduo tem sua personalidade realçada com esse trabalho extra feito pela equipe e isso me cativou. Até mesmo um NPC aleatório que você só verá uma vez tem sua voz em áudio.

Lindo de se ver, incômodo de se jogar

Se Cris Tales fosse uma vitrine, tudo de bom estaria exposto em uma bandeja prateada enquanto o gameplay seria um vidraça embaçada, daquelas que ficam cada vez mais manchadas quando passamos um pano para tentar limpar. Durante minhas jogatinas eu tentei me divertir com o game, mas quando esse sentimento finalmente se mostrava próximo, lá vinha o próprio jogo com um rodo sujo para tentar limpar o que eu estava vendo.

Boa parte disso é culpa da má otimização nos consoles. Antes de entrar em detalhes sobre a jogabilidade, preciso enfatizar que esse foi meu maior problema ao jogá-lo e, ironicamente, nos faz desperdiçar justamente o fenômeno que norteia sua trama: tempo.

As excessivas telas de carregamento chegam ao ponto do insuportável para cada evento que acontece: uma troca de cena, uma entrada em batalha ou uma cutscene. Cheguei ao ponto de cronometrar o tempo perdido a cada vez que eu precisei olhar para a tela abaixo e apelei para a matemática para computar meu prejuízo.

Essa tela se tornou uma companhia extremamente irritante
Com um tempo médio de 12 segundos para cada vez que o jogo precisou ser interrompido para carregar mais conteúdo, salvo momentos em que o tempo é maior para carregar as cidades ou masmorras (cerca de 20 segundos), posso comprovar matematicamente quanto tempo eu perdi. Fazendo uma conta simples, se para cada minuto (60 segundos) eu perdi 12 segundos, cada minuto tem 48 segundos restantes.

Considerando que cada minuto ainda possui 48 segundos “jogáveis”, em uma hora (60 minutos) teremos 2880 segundos (48x60). Sendo assim, os habituais 3600 segundos que uma hora normal possui têm 720 segundos (3600-2880) perdidos em telas de carregamento. Convertendo para minutos (720:60), conclui-se que 12 minutos são perdidos para cada hora de jogo em Cris Tales.

Em uma campanha com cerca de 30 horas de duração, chega a ser chocante saber que 360 minutos (6 horas) foram jogados fora apenas para o carregamento. É quase o tempo de um dia útil de trabalho! O problema foi constatado por mim enquanto jogava no PlayStation 4 e também por nosso colega Raoni Mendes na versão para o Switch.

Relatos informais de outro colega dizem que, apesar das telas de carregamento excessivas, no Xbox Series X o tempo de carregamento é consideravelmente menor para cada evento, girando na casa dos 3 segundos. Esses números me deixaram mais chocados que o fato de Cris Tales não possuir uma função de salvamento automático, me obrigando a ficar paranoico atrás de pontos de salvamento que encontrava no caminho para garantir que eu não teria mais tempo perdido ao tomar um game over ou o jogo fechar por algum motivo.

Se o problema fosse apenas esse, acho que ainda teria aproveitado mais minha experiência, mas toda a beleza e simpatia do RPG é fortemente prejudicada com um gameplay lento e muitas vezes complicado e limitado de forma desnecessária. Com um sistema de batalha inspirado no clássico sistema de turnos dos JRPG convencionais, os embates contra os inimigos são vagarosos e exigem um pouco de tempo e paciência para serem assimilados e realmente apreciados.


Cada personagem do grupo possui características próprias, com destaque para os poderes de Crisbell. A menina pode fazer uso dos Cristais do Tempo para colocar os inimigos em uma janela temporal que os deixam mais jovens ou velhos, dependendo do lado da tela em que estão. Cristopher se destaca pelas magias elementais e Wilhelm se especializa em causar danos de status (queimadura, envenenamento, paralisia, etc.) e analisar os inimigos. Outros dois personagens integram a equipe posteriormente.

Uma coisa eu tenho que admitir que ficou bem legal é a combinação de fatores para tirar proveito dessa habilidade. Quando um inimigo sofre algum tipo de dano por status, como envenenamento ou queimadura, avançar o tempo faz com que todo o dano que ele sofreria nos turnos posteriores seja imediatamente aplicado, causando-lhe um massivo estrago de forma instantânea.

Outra consequência interessante desta ação é tornar inimigos mais ou menos perigosos com o passar do tempo. Criaturas podem ficar decrépitas e medíocres quando velhas ou extremamente ágeis quando jovens. Os que fazem uso de magia podem se tornar muito poderosos se lançados ao futuro, pois ficam mais sábios. E nos chefes essas mecânicas são ainda mais interessantes de usar, por oferecerem resultados únicos e às vezes inesperados.

Com o decorrer da campanha, Crisbell também aprende habilidades que permitem que um membro do grupo, ou mesmo um inimigo, volte no tempo para sua situação no turno anterior. Por exemplo: se alguém morrer por consequência de um ataque, basta “rebobiná-lo”  para sua situação antes do ataque fatal, ou seja, vivinho da silva como se nada tivesse acontecido.

Tirando essa parte boa das batalhas, o ritmo do combate é um tanto lento e às vezes injusto, ao ponto de forçar o jogador a apelar para o “bom” e velho grinding, que consiste em farmar pontos de experiência e dinheiro para melhorar seus personagens e equipamentos. Me vi obrigado a apelar para essa prática cansativa nas primeiras horas de jogo.


Um detalhe que me deixou meio em cima do muro foi sobre uma mecânica de comando durante os combates. Por regra, quando você pressiona o botão de ação uma segunda vez durante a execução do comando, seu personagem pode aumentar o dano causado quando está atacando ou reduzir o dano sofrido quando está defendendo. Quem jogou algum Paper Mario sabe bem do que estou falando, pois é uma característica comum lá.

A mecânica é interessante, mas exige prática para ser dominada, e necessária para se dar bem nos combates em Cris Tales. Nas primeiras lutas a quantidade de dano recebida pelos heróis é bem alta, acho que numa tentativa de “forçar” o jogador a aprender essa técnica à força. Cada personagem possui suas próprias mecânicas, o que torna a escolha do grupo bastante estratégica.


Para deixar essa escolha mais difícil, diferentemente de outros jogos do gênero, um dos personagens, um androide, é extremamente ofensivo, ao custo de precisar gastar um turno para esfriar, e a outra, uma garota com uma bolsa mágica, tem suas ações baseadas em sorte. Já quem fica “no banco de reservas” não recebe nenhum ponto de experiência, deixando o crescimento da equipe bem desigual.

Cada escolha, uma perda

Ser uma maga do tempo tem suas vantagens, mas também torna a missão de Crisbell mais pesada quando se sabe qual o destino de alguém com base nas decisões próprias ou de terceiros. Em nossa jornada por Cris Tales temos a difícil responsabilidade de guiar a jovem nesses dilemas morais.

Dois tópicos acima eu mencionei os vislumbres de um provável futuro que a menina pode ver. Isso se reflete nas consequências que ações no presente têm para o futuro de alguns personagens da trama. Estas escolhas refletem como a história vai terminar, e a responsabilidade pelo fim que você quer dar a ela está em suas mãos — em certos casos, refletindo na vida ou morte de algumas pessoas.

Um exemplo genérico que posso dar para evitar spoilers é quando vemos que uma pessoa no presente não existe no futuro. Ao pular com Matias para saber o que aconteceu, descobrimos que a pessoa morreu por causa de uma doença. No presente, é possível evitar isso oferecendo um remédio ou orientando a pessoa a se cuidar.


Sempre que um capítulo chega em seu clímax, uma mensagem informa que a partir deste ponto você não poderá mais voltar, e as decisões, ou a falta delas, não poderão mais ser resolvidas, desenhando a linha do tempo que culminará no fim da história. Um menu de tarefas está disponível para você monitorar essas atividades, mas já adianto uma coisa: você não será capaz de resolver tudo. Muitas das escolhas impedem que outra seja tomada naquela região.

Traduzindo, é como se você tivesse duas portas em sua frente, não sabe o que tem depois delas e só pode passar por uma. Uma vez que você fez sua escolha, jamais saberá o resultado se ela for diferente. Não escolher também é uma opção, e para todos os casos haverá consequências.



O cristal que tu me destes era vidro e se quebrou

Bonito, elegante e charmoso, mas que não vale tudo o que aparentou ser. Adaptando a letra da popular cantiga, é dessa forma que vejo Cris Tales após minha desagradável experiência com um título de um dos gêneros que mais gosto. Méritos para a arte lindíssima e o cuidado em dar voz a todos os personagens, além de interessantes usos do tempo e um roteiro que é moldado pelo jogador.

Porém, parece que o adiamento do game, inicialmente planejado para o fim do ano passado, não resolveu muita coisa. O mesmo tempo que dá protagonismo à heroína é muito mal aproveitado fora do jogo, com telas de carregamento excessivas, ritmo lento dos combates e o famigerado grinding, que nos fazem perder ainda mais deste valioso recurso que regra nossa vida: o bom e velho tempo.

Prós

  • Visual lindíssimo;
  • Personagens carismáticos que esbanjam personalidade;
  • As mecânicas temporais adicionam uma estratégia interessante aos combates, à exploração e à interação com o mundo;
  • As decisões do jogador moldam o rumo da história.

Contras

  • Péssima otimização nos consoles da geração anterior (PS4, XBO, Switch), com interrupções contínuas para carregamento de conteúdo;
  • Apesar de ser por turnos, o ritmo das batalhas é lento;
  • Desbalanceamento no crescimento dos personagens e picos de dificuldade;
  • Sem função de salvamento automático;
  • Não possui textos em português.
Cris Tales – PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch – Nota: 6.5
Versão utilizada para análise: PlayStation 4
Revisão: Davi Sousa
Análise feita com cópia digital cedida pela Modus Games

Fã de Castlevania, Tetris e jogos de tabuleiro. Entusiasta da era 16-bit e joga PlayStation 2 até hoje. Jogador casual de muitos e hardcore em poucos. Nas redes sociais é conhecido como @XelaoHerege
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