A série No More Heroes é constantemente lembrada por seu nicho de seguidores como uma das pérolas hardcore surgidas do Wii em meio a todos os títulos normalmente considerados ultracasuais e que tornaram o aparelho em questão o fenômeno de popularidade que ele foi em sua época. À exceção de uma versão alternativa, intitulada Heroes’ Paradise, para o PlayStation 3 (e para o Xbox 360 no Japão), a IP ficou por muitos anos em hibernação até seu derradeiro revival com Travis Strikes Again: No More Heroes (Multi), que foi seguido pelo definitivo No More Heroes 3.
Nessa onda, um pedido dos fãs finalmente atendido foi a concepção de ports dos dois primeiros títulos da série, que foram inicialmente lançados no Switch, mas que acabaram ganhando um lançamento surpresa para o PC alguns meses antes da terceira iteração numerada da série finalmente chegar às lojas.
O punk não está morto!
Conhecido por sua narrativa visceral e por sua escrita envolvente – mérito do game designer Suda51, que por muito tempo recebeu a alcunha de “Tarantino dos Games” –, No More Heroes traz a história de Travis Touchdown, um nerdão que compra uma espécie de sabre de luz em um leilão virtual, aqui chamado de Beam Katana, e sai em uma onda de matança contra os dez maiores assassinos de Santa Destroy, a cidade fictícia que é o palco do jogo em questão.
Embora tenha seu próprio sentimento de vingança que só é devidamente explicado na reta final do jogo, o protagonista só segue nessa onda por causa de Sylvia Christel, sua agente nesse negócio de assassinato, sendo a responsável por arrumar as lutas dos rankings. A loirinha é a responsável por insistir que ele continue em sua empreitada para se tornar o número um da classificação, chegando ao ponto de fazer certas promessas de cunho carnal para manter o Travis na linha. É tosco, mas trata-se de uma sátira representativa da forma como o Oriente estereotipa os clichês ocidentais.
Dessa forma, a jogabilidade de No More Heroes é cíclica: é necessário juntar dinheiro realizando vários minigames de trabalhos paralelos, como coletar lixo das ruas ou limpar as pichações dos muros da cidade, ou ainda completando missões de assassinatos aleatórios. Uma vez que uma quantia estabelecida é alcançada, deverá ser feito um depósito em um caixa eletrônico e a próxima luta será liberada. Paralelamente, o dinheiro coletado também pode ser usado para comprar novas roupas ou armas, adquirir e aprimorar novas Beam Katanas e treinar na academia para melhorar os atributos de Travis. Além disso, espalhadas pela cidade também podem ser encontradas camisetas nos latões de lixo e as Bolas que precisam ser entregues a Lovikov, que liberará novas habilidades em troca.
Assim que uma nova batalha de ranking é liberada, Travis precisa seguir até o local indicado e a fase tem início, sendo necessário ir abrindo caminho até o chefão enquanto dilacera os inimigos pelo caminho em um visceral hack and slash. Além de duas posturas diferentes com a Beam Katana, também é possível aplicar golpes de luta livre nos oponentes, trazendo maior diversidade ao combate. Os chefes também são um show à parte, cada um cheio de personalidade a ponto de causarem uma impressão verdadeiramente marcante no jogador, mesmo que eles apareçam por tão pouco tempo na tela. Cada um tem suas motivações que, por sua vez, acabam afetando Travis de uma maneira ou de outra, principalmente em relação à sua percepção desse joguinho de matança promovido por Sylvia.
A despeito de ser suficientemente imersivo em sua proposta, nota-se que, quase intocado como esse port foi, seus problemas ainda são os mesmos que perduram desde a versão original e que já chegaram a ser enumerados à exaustão. O principal deles é que, apesar de contar com várias atividades espalhadas ao longo de Santa Destroy, o extenso mundo aberto mostra-se mais como uma perda de tempo e uma inflação artificial do tempo de jogo, visto que constantemente é necessário percorrer de um canto a outro do mapa. Por mais que o jogador possa contar com a moto de Travis, Schpeltiger, parafraseando um antigo review que li ainda na época do original, a jogabilidade se assemelha mais à de um caminhão fazendo curva na estrada.
Na jogabilidade, embora haja alguma alternância entre os golpes de Beam Katana e os de luta livre, um pouco mais de complexidade cairia bem. A estrutura cíclica do título chega a ser levemente cansativa principalmente por conta da proporção relativa entre o tempo gasto na cidade e o que as fases efetivas levam para serem completadas.
A questão é que No More Heroes é um verdadeiro trabalho autoral de Suda51 e da Grasshopper Manufacture, cujo lema é “O Punk Não Está Morto”. Assim como o punk, ele é sujo, carece de refino técnico e chega até a ser um pouco repetitivo, mas ele também é desbocado, intenso e agressivo; ele tem alma, vontade e personalidade. No More Heroes tem uma voz alta, estridente e que quer ser ouvida porque tem uma mensagem, uma história para passar.
Um port de que precisávamos, mas não o que merecíamos
Dadas as devidas análises do título em si, gostaria de reiterar que nada importa para essa nova versão lançada para o PC, uma vez que ela simplesmente não funciona. Enquanto o seu port para o Switch é bastante competente, este para Steam passa a impressão de que simplesmente foi subida no servidor do jeito que estava, sem passar por processo algum de adaptação, ou ainda de que a equipe de desenvolvimento teve só o tempo entre o anúncio e o lançamento do game para trabalhar (coisa de alguns dias).
Nota-se que eu nem pego no pé a respeito de o time ter usado um emulador público para realizar a conversão. Afinal, trata-se de duas situações diferentes: uma delas é quando uma empresa de terceiros – seja a Engine Software, responsável por essas versões; seja a Grasshopper Manufacture, a desenvolvedora original; seja a toda-poderosa Marvelous, a verdadeira detentora da marca –, independente de seu compromisso com algum console, fazer isso. A outra é, digamos, quando a própria Nintendo, que autua legalmente quem disponibiliza esse tipo de ferramenta, se utiliza de uma delas para vender suas IPs em um pacote verdadeiramente sem-vergonha.
Logo de cara, o primeiro absurdo a ser levado em consideração é o fato de que se trata de um jogo adaptado para o PC e os desenvolvedores não se deram o trabalho de atribuir um sistema de controle para o teclado. Sabe, não seria muito difícil colocar o personagem para se mexer com as teclas e o mouse, quem sabe, dando um jeito no resto, como a câmera e o movimento de finalização de inimigos. Os golpes de Beam Katana e os corpo a corpo poderiam ser aplicados com o apertar do mouse, enquanto as diferentes posturas poderiam ser alternadas com algum botão do canto do teclado, como o shift, ou com a rodinha do mouse. Shift (ou ctrl) também poderia ser a tecla de defesa e trava de mira, enquanto o rolamento de esquiva poderia ser atribuído à barra de espaço.
Viu? Não é nada muito complexo e em cinco minutos já é possível conceber um esquema minimamente funcional. Agora, nessa história do controle, como se já não bastasse, não é nem todo controle reconhecido pela Steam que o game suporta, visto que, aparentemente, apenas o de Xbox 360 é reconhecido pelo software, seguindo na contramão de qualquer acessibilidade decorrente do PC como plataforma.
Eu, especificamente, deparei-me com um bug bizarro: quando eu inicio o jogo pela primeira vez, ele roda direto, sem problema algum na inicialização. No instante em que eu salvo e saio da aplicação, ela simplesmente se recusa a abrir novamente quando decido voltar. Isso foi contornável ao excluir o arquivo de save, mas, para terminá-lo a fim de escrever esta análise, tive que jogá-lo em uma tacada só, quase que uma speedrun.
Pelo que está sendo discutido na comunidade na Steam, esse fenômeno acontece porque existe algum caractere especial (provavelmente o “ã”) no caminho do arquivo de save em questão. No entanto, por mais que eu já tenha zerado incontáveis vezes a versão original, ainda é por volta de seis a oito horas que o jogo exige para ser completado, algo cansativo principalmente nas sessões de grind financeiro nos trabalhos paralelos e nas missões de assassinato.
Para coroar, nota-se que várias das conquistas também estão com problemas de configuração, deixando de ser confirmadas quando completadas. Isso sem falar dos problemas de áudio estourado, dos crashes, da resolução nativa máxima de 1080p (algo que não faz sentido mais em títulos para PC) e de uma série de outras falhas menores que os desenvolvedores nem sequer se preocuparam em declarar ciência no intuito de demonstrar preocupação e trabalho em andamento para mostrar que um eventual patch está a caminho.
Ademais, vale a pena comentar que o preço cobrado pelo título chega a ser bastante salgado para um port tão problemático, especialmente no Brasil, onde fizeram simplesmente uma conversão monetária em vez de geolocalizar o valor em dólar, como é de praxe para o mercado nacional. Embora eu não costume levar o preço em conta na produção de análises, essa se mostrou uma reclamação recorrente da comunidade, especialmente em mercados em desenvolvimento como o do nosso país, a exemplo da Rússia. Afinal, já que estamos colocando a boca no trombone, uma colocação a mais ou a menos já não faz mais diferença no pender da balança dos prós e dos contras.
O jogo é galhofa, mas essa edição não precisava ser...
No fim das contas, é o que você leu aqui: o port de No More Heroes para PC é um verdadeiro desastre. Não leve o título a mal: ele é verdadeiramente incrível e um fruto legítimo de Suda51, uma das maiores mentes da indústria de jogos atual. Entretanto, todo o descaso para com essa versão do game, bem como a frieza por parte dos responsáveis ao decidir colocar no mercado essa aberração que beira o injogável, deveria colocar em xeque até mesmo a XSEED, empresa que geralmente se destaca por todo o zelo que tem com seus produtos. Afinal, como é que alguém testa um produto nessas condições e dá o parecer positivo para que ele seja disponibilizado ao público?
No More Heroes é uma singular peça de entretenimento eletrônico que tem orgulho de ser o jogo galhofa que é e merece ser difundida, universalizada para além dos consoles Nintendo. Contudo, não adianta nada acertar na decisão de trazê-la para o PC, uma das plataformas mais democráticas possíveis no quesito de alcance de público e, ainda assim, o resultado final ser um produto que continua inacessível para boa parte de sua audiência potencial.
Prós:
- O jogo em si é bom.
Contras:
- Port sem-vergonha de um port (que por sua vez é decente);
- Resolução travada em 1080p;
- Sem suporte a teclado;
- Sem suporte a qualquer controle que não seja o de Xbox 360;
- Versão produzida a toque de caixa, sem trabalho de adaptação de plataforma;
- Lentidão por parte dos desenvolvedores em corrigir esses problemas.
No More Heroes – PC – Nota: 3.5Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela XSEED Games