Análise: a versão de PC de No More Heroes 2: Desperate Struggle é muito desesperadora

Port da sequência do clássico de Suda51 é tão preguiçoso quanto o do primeiro.

em 20/06/2021

A série No More Heroes é constantemente lembrada por seu nicho de seguidores como uma das pérolas hardcore surgidas do Wii em meio a todos os títulos normalmente considerados ultracasuais e que tornaram o aparelho em questão o fenômeno de popularidade que ele foi em sua época. Enquanto o primeiro jogo da propriedade intelectual recebeu um port intitulado Heroes’ Paradise para o PlayStation 3 (e para o Xbox 360 no Japão), sua sequência, No More Heroes 2: Desperate Struggle, continuou presa ao console da Nintendo e a IP ficou por muitos anos em hibernação até seu derradeiro revival com Travis Strikes Again: No More Heroes (Multi), que foi seguido pelo definitivo No More Heroes 3. 


Nessa onda, um pedido dos fãs finalmente atendido foi a concepção de ports dos dois primeiros títulos da série, que foram inicialmente lançados no Switch, mas que acabaram ganhando um lançamento surpresa para o PC alguns meses antes da terceira iteração numerada enfim chegar às lojas.



Uma história de pompa, vingança e circunstância

No More Heroes 2: Desperate Struggle dá continuidade à história de Travis Touchdown que, depois do primeiro jogo, sumiu de Santa Destroy e conseguiu se desvincular do ranking de assassinos após chegar ao topo, o que rendeu-lhe a alcunha de Crownless King, o Rei Sem Coroa. Seu retorno se dá por conta de um chamado específico de Skelter Helter, o primeiro vilão que o jogador enfrenta, e faz parte de um intrincado plano de vingança que acaba ceifando a vida de Bishop Shidux, o dono da locadora e melhor amigo do (não mais) herói. 

A questão é que, de acordo com as palavras do próprio Travis (e do dito popular), “vingança gera vingança”. Com isso, a escalada pelos rankings torna-se um assunto pessoal e, para cumpri-lo, o protagonista se alia novamente a Sylvia Christel no intuito de derrotar o atual primeiro colocado, reconquistar seu posto e cumprir sua vingança jurada. 




O que mais chama atenção é que o antagonista responsável por todo esse esquema, Jasper Batt Jr., surgiu no primeiro game em uma missão paralela cujo intuito era apenas render uma grana para o personagem. Tendo seu pai e seus irmãos assassinados pelo otaku com sua Beam Katana (afinal, o termo lightsaber, sabre de luz em inglês, está protegido por copyright), o caçula então jurou que iria provocar em Travis o mesmo sentimento de amargura que ele um dia sentiu. Assim, ele restabelece os rankings com o único intuito de enfrentar seu nêmesis, mas não sem antes traçar uma linha de cinquenta e um assassinos à sua frente, forçando uma nova escalada do protagonista.

Esse ponto dos cinquenta e um assassinos, aliás, é aquele que tem a possibilidade de ser considerado um dos defeitos mais aborrecedores do título, principalmente para quem acompanhou as notícias de pré-lançamento do original. Isso se deve basicamente porque o jogador não chega factualmente a enfrentar esse número de inimigos, sendo ele só uma brincadeira de referência ao fato de o nome de Goichi Suda, o game designer criador da IP, poder ser lido como Suda51, como ele inclusive é conhecido. 




Acelerar o ritmo dos assassinos chega a trazer alguns problemas por desvalorizar alguns dos chefões que enfrentamos ao longo de nossa trajetória. Abrimos nossa onda de matança com Skelter Helter, o assassino de ranking 51 cuja aparência é claramente inspirada por Cloud Strife, e Nathan Copeland, o de número 50 que é um excêntrico rapper que fez da história de Travis sua religião. Logo depois, temos que enfrentar o número 25, Charlie MacDonald, um universitário jogador de futebol americano auxiliado por suas líderes de torcida que, no que lhes dizem respeito, ocupam as colocações de número 26 a 49. 

Para fins de ilustração, Skelter Helter e Nathan Copeland são personagens muito interessantes em suas motivações, mas eles perdem tanto seu potencial quanto o impacto inicial que transmitem por serem logo nossos primeiros desafios quando percebemos que um amontoado de líderes de torcida genéricas estavam a frente de ambos na hierarquia. Isso acontece algumas vezes ao longo do enredo, inclusive no Top 10. Como se não bastasse, alguns conceitos de assassinos foram reutilizados diretamente do primeiro título, como é o caso de Million Gunman, que não passa de um Dr. Peace 2.0. 



Deixando de lado esse problema pontual, a narrativa de Desperate Struggle chega a ser mais elaborada e soturna do que a do primeiro game, só que sem abdicar de vários dos elementos que definem a marca, como seu humor escrachado e distinto, muitas vezes derivado de quebras de quarta parede ou de metalinguagem. Um exemplo é logo na cutscene após a derrota do primeiro boss, quando Sylvia e Travis batem boca sobre a importância ou não da necessidade de conhecer o primeiro título para poder aproveitar este segundo. Simultaneamente, a escrita de Suda51 não deixa de pincelar alguns tons existenciais e desenvolver com melhor propriedade a faceta de Travis Touchdown para além do estereótipo, principalmente no que diz respeito ao seu relacionamento conflituoso não só com Sylvia, mas também com Shinobu, sua autoproclamada discípula (mesmo que ele nunca tenha concordado em ensiná-la), e Henry, seu meio-irmão.

Uma das formas encontradas para fazer isso, inclusive, foi justamente colocá-los nas mãos do jogador como personagens controláveis, trazendo algumas variações de gameplay. Enquanto Travis tem como marca registrada os seus golpes de Beam Katana e movimentos de luta livre, Shinobu tem a capacidade de pular e disparar projéteis, característica compartilhada com Henry, cujo diferencial é um botão de esquiva próprio. Nota-se que, no caso de Travis, a jogabilidade básica é uma evolução natural da presente no primeiro título. As novidades são um pequeno combo com golpes físicos, que substitui o chute do game anterior; a maneira como o power up chamado Dark Mode agora pode ser acumulado e ativado a qualquer momento; e nas novas Beam Katanas distintas que oferecem estilos próprios de jogo. 




O principal mérito de No More Heroes 2, entretanto, é seu aspecto técnico. Embora tivesse sido originalmente desenvolvido para uma plataforma considerada pouco poderosa, ressalta-se que ele conseguiu se posicionar em um estilo estético quase cartunesco bastante funcional que, inclusive, é um dos games daquele console que melhor utilizam o recurso de texturas aplicadas aos modelos e ao ambiente, sem falar da decisão acertada em reduzir o cel-shaded exagerado de seu antecessor. Além disso, as cutscenes renderizadas na hora (salvo certas ocasiões) são impressionantemente bem animadas.

Outro ponto importante está na maneira como Desperate Struggle fez o dever de casa e incorporou o feedback dos fãs e da crítica em relação ao primeiro título, sendo a principal alteração a remoção do mundo aberto, que, originalmente, servia mais para inflar o tempo de jogo do que promover qualquer sentimento de imersão. Agora, a cidade é representada através de um menu, o que promove uma sensação de progressão ágil e direta. Demais destaques são os minigames de trabalhos paralelos, que passaram a ser em estética pixelizada, e na forma como não é necessário pagar uma quantia em dinheiro para seguir à próxima fase de ranking. A customização das roupas foi mantida, aliás. 




No More Heroes 2 é certamente uma experiência única de escrita e jogabilidade. A despeito de contar com uma infinidade de exageros e até mesmo situações de gosto duvidoso, nota-se que elas se tratam de um ponto de vista satírico. Do mesmo modo que os orientais são constantemente estereotipados pela indústria cultural ocidental (sobretudo a norte-americana), chegou a vez da retaliação. É a vez do Oriente discutir a respeito de como o Ocidente lida com a banalização da sexualização e da violência em suas obras. Some isso a uma espécie de melancolia japonesa característica da Era Heisei, decorrente do estouro da bolha econômica dos anos 80 e 90, e o que você tem nas mãos é um produto que escracha suas influências externas no intuito de forjar algo realmente único. 

E se a gente pegar a rom do Wii e subir ela no Steam?

Até aqui, entendemos que NMH2, como um todo, é um primor técnico que, quando foi lançado originalmente em 2010, fez o trabalho de corrigir a imensa maioria dos problemas apresentados pelo primeiro, além de contar com uma narrativa imersivamente visceral e instigante. Trazê-lo para novas plataformas mostrou-se um acerto por finalmente tirá-lo das correntes que o prendiam apenas ao Nintendo Wii. Entretanto, enquanto a versão de Switch corresponde às expectativas, essa edição para o Steam faz com que todos os aspectos aqui elogiados percam o sentido por um motivo simples: tal como acontece com o port do seu antecessor para a mesma plataforma, No More Heroes 2 para PC simplesmente não funciona. 




Na prática, a vontade que eu tenho é a de fazer o mesmo trabalho porco dos desenvolvedores com essa versão para o PC e recortar e colar a segunda parte da minha análise referente ao port do primeiro jogo. Contudo, vamos fazer o mínimo e enumerar quais foram esses transtornos tão gritantes que deixaram o título à beira do injogável, ok?

A primeira constatação a ser (re)feita é a maneira preguiçosa como o time responsável pegou o bom trabalho feito no Switch e aparentemente só geraram um executável para PC e o colocaram no Steam. Não entraremos no mérito de se tratar de uma emulação nativa de um emulador de Wii, uma vez que uma empresa third party de pequeno porte se utilizar desse recurso é muito diferente de quando grandiosas marcas first party fazem igual após deixar clara, por repetidas vezes, a sua postura contrária em relação a tal prática




Essa transição problemática de console para PC torna-se evidente quando um de seus principais defeitos e motivos de controvérsia é a primeira coisa descrita em um disclaimer enorme na página da loja: “No More Heroes 2: Desperate Struggle só pode ser jogado com controle. Não é possível jogá-lo com um mouse e teclado”. O PC é conhecido por ser uma plataforma mais democrática e personalizável se comparada aos consoles, o que a consolidou como uma das preferidas para os jogadores modernos. Embora eu particularmente ache que teclado e mouse não foram feitos para jogar, o problema está justamente na ausência de uma opção tão básica. 

Essa falta de versatilidade impede, por exemplo, que um público não habituado a jogar no computador e, portanto, não tenha um controle, tenha acesso ao título, contrariando justamente a ideia de torná-lo disponível em outras plataformas. Ademais, como se já não bastasse não ter suporte ao teclado e exigir que o jogador use um controle, é preciso que seja especificamente o modelo que eles querem, no caso, um que o Steam reconheça como um controlador de Xbox 360. Ou seja, nada de DualShock sem precisar de gambiarras adicionais. Enquanto a equipe de desenvolvimento reconheceu que esse não-reconhecimento é um revés, eles não chegaram a fazer menção alguma sobre a questão do teclado e mouse. 




Ainda reforço que é óbvio que é possível mapear os controles com programas externos (e até no próprio sistema do Steam, na verdade), mas é uma necessidade que deveria ser inexistente porque a plataforma Steam em si já ostenta essa característica de reconhecer controladores em seu estado nativo e fazê-los funcionar em suas aplicações. Qualquer esforço extra que um jogo exija de seus jogadores serve como um ponto negativo nesse aspecto. 

Similarmente ao primeiro port, também não consegui abrir o game a partir de um save, o que me fez jogá-lo em uma única sessão que acabou levemente mais prazerosa por conta da pegada Arcade que essa sequência tem. Nota-se que foi por muito pouco que eu realizei tal façanha, uma vez que fui vítima de um crash durante os créditos finais que, se tivesse rolado um pouco antes, eu não teria conseguido. Ainda assim, um título que eu teria facilmente platinado nessa tacada única ficou com algumas conquistas faltando porque elas simplesmente não funcionam, infelizmente.




É claro que Desperate Struggle não deixa de ostentar todas as tribulações constantes de qualquer port feito de qualquer jeito, como os tais crashes de sistema, problemas de áudio, resolução travada, queda da taxa de quadros e qualquer outro que eu esqueci de listar e que você, leitor, possa ter lembrado. 

Creio que de todas as aberrações recorrentes aos ports de ambos os títulos da IP, a única exclusiva deste segundo é a maneira como o excelente trabalho de textura feito no Wii acabou sendo distorcido no PC (algo que já acontecia na versão de Switch) por conta da mudança para uma resolução maior. Enquanto esse inconveniente no primeiro é menos perceptível devido à utilização intensiva de um cel-shaded exagerado — o que disfarça a situação e torna o visual bem mais chapado —, nesse segundo jogo, o trabalho não feito fica evidente por ser um game que se sustenta consideravelmente nessa questão. Um adendo: enquanto as cutscenes renderizadas em tempo real passaram quase inócuas, as poucas pré-renderizadas ficaram com um aspecto nojento, tornando-se uma verdadeira aglomeração de pixels invejável até mesmo aos promotores de festas clandestinas em plena pandemia. 



Struggle: do inglês, debater-se; despender muito esforço em uma tarefa complicada

A impressão que transmitem as edições de PC de ambos os No More Heroes, no geral, é que elas foram feitas apenas para os fãs de longa data da marca, sabendo que só esse nicho irá comprá-las mais uma vez e ignorará os todos os revezes técnicos existentes, porque tais jogadores focarão apenas na existência do título em si. Essa constatação pode ser corroborada com uma olhada rápida na qualidade e no teor das análises de usuário do Steam, uma vez que outros ports considerados ruins, mas ainda muito melhores do que este (como os de Final Fantasy XIII), receberam classificações piores do que “ligeiramente positivas”. 




No fim das contas, a versão de PC de No More Heroes 2: Desperate Struggle é desesperadora. Eu realmente lamento ter que dizer algo assim de um de meus jogos favoritos de toda a vida, mas afaste-se dessa edição para o Steam. Ela simplesmente não vale a pena e não faz jus a tudo o que a propriedade intelectual representa. 

Prós:

  • O jogo original é incrível.

Contras:

  • Port sem-vergonha de um port (que, por sua vez, é decente);
  • Resolução travada em 1080p;
  • Sem suporte a teclado;
  • Sem suporte a qualquer controle que não seja o de Xbox 360;
  • Versão produzida a toque de caixa, sem trabalho de adaptação de plataforma;
  • Lentidão por parte dos desenvolvedores em corrigir esses (e demais) problemas;
  • Basicamente, os mesmos do port do primeiro game;

No More Heroes – PC – Nota: 4.0

Revisão: Farley Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela XSEED Games

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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