Real em queda livre
Não é novidade para ninguém que a indústria dos jogos sempre teve seus valores regulados pelo dólar; mesmo quando contamos com produção nacional, muitos dos insumos e a licença para uso são negociados em moeda estrangeira.
Nos anos 1990 tivemos momentos em que o dólar e o real chegaram a ser equiparados, dando margem para uma maior acessibilidade a consoles, jogos e produtos licenciados. Sem a necessidade de retroceder tanto no tempo, muitos de vocês vão lembrar que na sexta geração (GameCube, PS2 e Xbox) quem tinha cartão de crédito internacional era “rei”, pois ainda compensava importar de países como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra.
Nessa época a briga era só entre os consoles. Hoje é contra o dólar, cambistas e a pandemia |
Atualmente, a conversa é diferente, pois o Brasil tem sido um dos locais mais afetados pela doença, propiciando uma série de recessões nos meios de produção em decorrência da necessidade por isolamento. Essa combinação transformou o país em um lugar desfavorável para investimentos, forçando uma fuga do capital estrangeiro para fontes mais seguras e estáveis em países com situação econômica controlada. Esse processo acaba afetando diretamente o preço de diversos produtos como combustíveis, eletrônicos e aqui, mais especificamente, os videogames e seus derivados.
Quebra na produtividade
Embora produtos chineses carreguem o velho jargão da qualidade duvidosa devido ao histórico com falsificações, o país é um dos locais mais propícios do mundo para indústrias graças à alta oferta de mão de obra e matéria-prima a um preço imbatível em relação a muitos outros países. Para dar um exemplo claro, uma série de produtos comercializados pela fábrica onde trabalho saem mais em conta quando importados da China ao invés de serem produzidos nacionalmente.
Atualmente, as fabricantes de consoles, jogos e periféricos, quando não são 100% situadas no país Oriental, parte majoritária de seus componentes é trazida de lá, como é o caso de chips e semicondutores. Com a necessidade de isolamento social, diversos setores da economia tiveram sua produção interrompida, causando um atraso tremendo nos cronogramas de fornecimento.
Samsung é uma das referências na produção de chips e semicondutores |
Quando a situação começa a entrar em níveis normais, ocorre uma espécie de “afrouxamento” da quarentena. Uma indústria que já estava retomando com alta demanda devido ao período de atividade parada, fica ainda mais sobrecarregada com a grande procura pelos consoles da nova geração: PlayStation 5, Xbox Series X, a crise nas placas de vídeo, que iremos explicar mais adiante, além de um aumento na demanda por parte da indústria automobilística que vem atualizando sua linha para veículos cada vez mais tecnológicos.
O resultado é uma capacidade fabril operando acima do limite e, mesmo com promessas de ampliação e grandes investimentos por parte de gigantes como Intel e AMD, elas permanecem longe de suprir as necessidades de fornecimento até pelo menos meados de 2022.
Caos logístico
Se a etapa produtiva é prejudicada da forma que relatamos, consequentemente toda a cadeia de abastecimento é impactada da mesma forma ou, em alguns casos, o estrago é ainda maior. No cenário em que o mundo todo enfrenta desabastecimentos de forma generalizada, com modais logísticos funcionando de forma reduzida devido às limitações em decorrência da pandemia. Por conta disso, os prazos de entrega que, no geral, já eram relativamente longos, ficam cada vez maiores.
A fim de contextualizar melhor sobre a seriedade da situação, os navios que costumam ser a opção mais barata de frete nos processos de importação e exportação, estão com o tempo de entrega cada vez mais esticados. Hoje, o navio que precisa realizar parada em determinado país pode ser impedido de atracar por conta de um lockdown ou, em alguns casos, ele até consegue ancorar no porto, mas no processo ocorre um aumento nos casos de contágio e o país entra em lockdown.
Recentemente ainda tivemos infortúnios como o acidente no canal de Suez, uma importante rota marítima artificial que corta o continente Africano ligando Europa e a Ásia Meridional, quando um navio cargueiro atolou durante a travessia, bloqueando o caminho e causando um grande congestionamento de embarcações.
Acidente no canal de Suez |
Em ambas as situações a embarcação fica presa e à mercê da melhora da situação. Somado a isso, em um episódio que falta insumos básicos até mesmo na área de saúde, é evidente que a prioridade para componentes eletrônicos será uma das últimas.
Apocalipse de criptomoedas
O fenômeno das criptomoedas não é de hoje. No passado, elas já tiveram o seu grande “boom”, com sua valorização disparada se comparada às moedas tradicionais. A questão é que, naquela época, o cenário econômico era estável o suficiente para que economistas analisassem a situação ao ponto de perceber que se tratava de uma bolha temporária.
A diferença nos dias de hoje é que o mesmo cenário encontra-se muito imprevisível, com países entrando e saindo de recessões, o que gera instabilidade econômica, quebra na credibilidade com os investidores e variações constantes de moeda.
Nesse contexto de incertezas em que as pessoas não sabem qual a melhor moeda para apostar seus recursos, as criptomoedas, que já tinham uma valorização elevada, voltam com tudo, por se tratar de uma verba independente de uma nação específica e, de certa forma, livre de impostos. Com ela, volta o antigo fantasma dos donos de PC gamer: a mineração de criptomoedas.
Estaríamos diante de uma nova bolha? |
Situando aqueles pouco familiarizados com essa prática: trata-se de um sistema em que você coloca a sua placa de vídeo para processar essas moedas para determinada empresa, em uma espécie de aluguel. É como se você emprestasse um caminhão de transporte para uma mineradora deslocar as pedras preciosas encontradas. Alguns sites especializados já permitem que você calcule o custo de energia e o quanto sua GPU irá gerar de lucro em criptomoedas por hora, dando um norte muito palpável e uma margem de risco baixa.
Isso gerou uma corrida por placas de vídeo desde março do ano passado, causando desabastecimento dos modelos mais novos da NVIDIA e da AMD e uma supervalorização delas nos principais varejistas. A coisa chegou a tal ponto que, enquanto alguns procuravam montar algumas estações de mineração em suas casas, investidores mais ávidos começaram a montar galpões inteiros dedicados à mineração. Em casos mais extremos, tivemos pessoas aproveitando o baixo custo de energia de países como a China. A coisa ficou escancarada ao ponto do país começar a banir a prática em boa parte de seu território.
Exemplo de estrutura dedicada a mineração de bitcoin |
Na falta de capacidade fabril e de insumos para produção, a saída encontrada pelos fabricantes foi de resgatar modelos de placas já aposentadas. O problema é que a procura é tão alta, que até mesmo esses modelos antigos acabaram sofrendo inflação. A GTX 1050, lançada em 2016, hoje é o modelo mais “acessível” e recomendado em configurações que desejam uma performance minimamente aceitável em alguns títulos populares de FPS, moba e battle royale.
O problema é que estamos falando de uma placa de 2016, considerada já na época como um modelo de entrada, que custava menos de R$ 900,00 e que agora está sendo vendida na faixa dos R$ 1.700,00, um investimento alto em troca de um resultado baixo frente ao que temos de lançamento no momento.
Desconfie sempre de preços muito abaixo da média |
O horizonte é tenebroso
Enquanto, do lado dos consoles, a grande procura pelos novos modelos da Sony e Microsoft foi surpreendente, o que iniciou o processo da escassez que ficaria ainda mais acentuada graças à dificuldade no abastecimento de componentes que integram as placas da AMD, responsáveis pela GPU e pela CPU de ambas as máquinas, o que levou ao sumiço desses aparelhos ao redor do mundo e a oferta, a preços exorbitantes, na mão dos chamados cambistas.
Tanto a Sony quanto a Microsoft estimam uma leve recuperação desses estoques a partir do segundo semestre de 2021, mas já declararam que não será uma recuperação a curto prazo. Recentemente, foi noticiado um rumor de que a Sony planeja realizar uma mudança na CPU para uma versão menor e mais barata. Tal medida seria uma saída para atender a grande demanda do público, além de possibilitar mudanças na estrutura do console, porém, não necessariamente uma nova versão slim.
Já quando falamos sobre PCs a coisa fica ainda pior. A plataforma, que sempre foi conhecida por permitir configurações acessíveis e com um desempenho que facilmente superava os consoles, hoje se mostra como uma opção cada vez mais inacessível. A escassez de placas de vídeo e os preços absurdos nos modelos encontrados tem enterrado a ideia do famoso PC baratinho para jogos. GPUs de ponta, como a RTX 3080, que antes eram encontradas entre 4 e 5 mil reais, hoje estão entre 15 e 20 mil reais.
As fabricantes já anunciaram que estão trabalhando em placas de vídeo dedicadas à mineração, a fim de desafogar a alta procura por modelos convencionais no mercado. Na prática, eu não acredito que isso será uma solução para o problema. Uma placa de ponta, como a já mencionada RTX 3080, pode extrair o máximo de mineração por um tempo consideravelmente longo e, futuramente, ainda ser revendida por um preço inflado, diferentemente de uma placa dedicada, que não poderá ser reutilizada para outros fins.
Placas como a GTX 1650 que já custaram R$670,00 estão sendo vendidas atualmente por R$3.000,00 |
Uma boa saída para quem deseja ingressar na nova geração e/ou não pode arcar com os custos de hardware de um upgrade no PC, é o criticado Xbox Series S. Já tivemos uma publicação aqui no Blast sobre como o pequeno monstro da Microsoft é capaz de entregar um desempenho surpreendente, se considerarmos as limitações gráficas para o 4K, e ainda simular a jogatina com teclado e mouse em algns jogos. Ainda assim, o próprio já vem recebendo aumentos nos preços que já ultrapassam a casa dos R$ 3.000,00 reais, contra os R$ 2.400,00 praticados na época de seu lançamento.
Qual o veredito?
Como fã, consumidor e alguém que gostaria de entrar na nova geração de consoles, encerrar a matéria sem trazer notícias positivas sobre o que esperar para o futuro é desanimador. Definitivamente, nunca foi tão difícil arcar com os preços de consoles, PCs e jogos, principalmente aqui no Brasil, que já sofre com a constante desvalorização da moeda em relação ao dólar desde dezembro de 2019 e uma carga tributária pesada.
A opção mais em conta para quem "precisa" ingressar na nova geração é, possivelmente, o combo Xbox Series S aliado à assinatura do Game Pass. Contudo, até mesmo ele já vem sofrendo aumentos de preço substanciais.
Caso você já possua um console da antiga geração, mantenha-o ao máximo. As novas máquinas estão sendo vendidas, essencialmente, nas mãos dos cambistas, a preços exorbitantes, e parte dos novos títulos ainda vão receber versões para PS4 e Xbox One.
No caso dos PCs, a recomendação de um upgrade fica apenas em situações que envolvam o uso do aparelho para o trabalho. Processadores e memórias continuam com boas ofertas, mas até eles são afetados pela volatilidade econômica que estamos vivendo.
Eu sei que muitas das vezes a tentação por ter a melhor experiência bate forte, mas adquirir esses hardwares nos preços fora da realidade que estamos vendo é um incentivo para que as coisas permaneçam como estão, além de contribuir com a prática injusta de cambistas.
Apesar de raro, eventualmente os revendedores oficiais abrem reservas de PS5 e XBX nos preços sugeridos pelo fabricante, compensando a demora na entrega com uma economia relevante no orçamento em um período delicado como o que estamos vivendo.
Espero que a matéria tenha sido proveitosa para vocês e que tenha ajudado a esclarecer a situação e, principalmente, protegê-los contra uma decisão impensada.
Revisão: José Carlos Alves