Our Life: Beginnings & Always (PC): olhares sobre gênero, sexualidade e representatividade em jogos

Um jogo que fomenta a discussão sobre gênero, sexualidade e inclusão.

em 02/04/2021



Video games e jogos eletrônicos são hoje mais que um produto do mercado de entretenimento. O ramo de jogos atrai investimentos altos e lucros ainda maiores, com valores que superam outras indústrias. A facilidade de acesso aos smartphones e às informações dos tempos atuais vem seduzindo a população ao consumo de jogos em plataformas distintas — como mobile, consoles ou computadores, diferentemente do mercado de alguns anos atrás, voltado a um público específico, com maquinário característico e de difícil acesso para a população em geral.


Os jogos também apresentaram evolução em seu enredo e jogabilidade, impulsionados não apenas pelos avanços tecnológicos, mas também pela maneira como seu público se expandiu e criou novos interesses. Tal como outras mídias e produtos consumidos por nós, os jogos eletrônicos estavam à luz das ideias e valores cultuados e consumidos pela sociedade.

Não tardou para que estes jogos fugissem do escopo de quem atinge a maior pontuação ou derrota o maior número de inimigos. Com novos recursos e demandas, tal mídia logo passou a construir narrativas próprias que muitas vezes refletem a nossa própria sociedade, seus acontecimentos e características. Podemos citar exemplos como Xenogears (PS), de 1998; a série Resident Evil (Multi) a partir de 1996; Legacy of Kain: Soul Reaver (PS/PC), de 1999; entre outros.

À luz de debates que eclodiram a partir do início do século XXI, os próprios jogos passaram a abordar temas ligados à representatividade, impulsionados pelas demandas do seu público. Podemos encontrar diversos títulos que abordam temas e possuem elementos capazes de gerar reflexões de cunho social, político e econômico. É de interesse deste artigo gerar uma reflexão acerca da representatividade de gênero nos jogos eletrônicos contemporâneos. Para tal, utilizaremos o jogo Our Life: Beginnings & Always (PC) como objeto de estudo.

Our Life: Beginnings & Always: discussões plausíveis

Our Life é um jogo da categoria dating simulator. Ele teve seu lançamento em 16 de novembro do ano passado e arrecadou verba através do portal Kickstarter. Portanto, seu desenvolvimento teve um processo de arrecadação de fundos abertos à comunidade, permitindo assim que pessoas físicas e jurídicas contribuíssem por meio de doações para os gastos de desenvolvimento do jogo. Desenvolvido pelo estúdio indie GB Patch Games, que possui outros jogos na modalidade, é um jogo free-to-play (isto é, gratuito para jogar), com algumas extensões pagas.

Dating simulators, ou simuladores de romance, são jogos que contêm elementos românticos. Eles fazem o jogador adotar o papel de um personagem principal e interagir com mulheres e homens dentro do enredo. Nos mais simples, o objetivo é encontrar um par e explorar a história, enquanto outros podem oferecer diversas linhas narrativas e opções distintas de parceiros e parceiras.


Our Life possui sua divisão em capítulos que tratam sobre partes da vida do(a) protagonista. Iniciando da infância e indo até o início da vida adulta, o jogador pode personalizar seu personagem, refletir sobre as diversas escolhas que o jogo oferece e estreitar seus laços com os NPCs ao longo da vida. Contudo, a trama foca-se na sua relação com Cove, um jovem garoto de cabelos verdes que se muda para a sua cidade, vindo morar com o pai.

Dividido em episódios, o foco do jogo são os acontecimentos que se passam durante os verões. Suas escolhas ao longo desta trajetória influenciam na forma como você se sentirá. Cove também é influenciado, seja na forma como crescerá ou no tipo de personalidade irá desenvolver. 

É um jogo simples, porém bem executado. Ele se distingue dos usuais dating sims não somente pelo enredo, mas por oferecer escolhas de âmbito pessoal. Há possibilidades de escolher a forma que você se sente sobre uma roupa ou um NPC, e até que tipo de pronome quer você que usem ao se referir a você. É assim que Our Life título se conecta com a ideia deste texto.


Abro aqui um espaço para definir alguns termos que ainda podem soar confusos para uma parcela da população. Arthur Filho, em seu trabalho intitulado “Consumo e Gênero: Uma análise das narrativas visuais da estética de Drag Queens na cidade do Recife”, pode contribuir para esse texto ao trabalhar conceitos como: identidade de gênero, orientação sexual e sexo biológico. Entre a extensa análise proposta pelo autor, podemos fazer uso de alguns conceitos e termos. A definição destes favorece o debate e, explico de forma breve suas definições:
  • Sexo Biológico trata sobre o conjunto de cromossomos e sua genitália, numa divisão entre macho e fêmea;
  • Orientação Sexual indicará pelo que um indivíduo se sente atraído, servindo como uma bússola para sua sexualidade, como homossexual e hétero, por exemplo;
  • Identidade de Gênero, por outro lado, é a maneira como você se enxerga, o gênero que se identifica fazendo parte;

Em Our Life, além de construir suas relações sociais, o(a) protagonista vive em uma estrutura social diversificada e inclusiva. Seus pais são um casal de mães de etnias diferentes, seu amigo tem os pais divorciados, sua própria jornada envolve descobrimentos sobre si mesmo. Enquanto cresce e estreita seus laços, você pode decidir coisas como seus sentimentos em relação a um personagem ou outro, ou que tipo de roupa quer usar em um evento importante (seja ela dita como feminina ou masculina).

Durante a narrativa você também pode escolher e fazer reflexões sobre seu gênero e sua sexualidade, ou seja, a forma como você se identifica sobre seu sexo e sua orientação sexual. Poder ver a construção dessa esfera mental e sexual do personagem é uma oportunidade pouco encontrada em jogos no geral. A maneira como o processo ocorre em Our Life não passa por rupturas bruscas, ele é construído pelo modo como o jogo corre. Você pode sentir que com a passagem do tempo, nas épocas de sua vida, essas questões naturalmente eclodem, quase sempre dada a sua relação com outros personagens e a história.

O poder pedagógico dos jogos e oportunidades de inclusão

Confesso que, com a ascensão dessas discussões na sociedade, é muito bom ver que há espaço para a inclusão do tema nas mídias, principalmente na esfera dos jogos; afinal, não faz muito tempo que tínhamos uma enorme maioria de heróis e protagonistas brancos e héteros. É com relativo pouco tempo que mulheres, negros, e homossexuais passaram a ganhar espaço não como figuras caricatas ou personagens de apoio longe dos holofotes, mas como donos de suas próprias histórias e narrativas.


Tais fatos podem ser encontrados no trabalho de Karen E. Dill-Shackleford intitulado “Violência, sexo, raça e idade em videogames populares: uma análise de conteúdo”, no qual a autora analisa os jogos mais vendidos do ano 2000 e atesta que 70% dos protagonistas dos jogos eram do sexo masculino e 68% brancos.

Alguns criam legiões de fãs, como CJ em Grand Theft Auto San Andreas e outros dividem opiniões, como a relação homoafetiva de Ellie em The Last of Us 2. Em ambos os casos, devemos compreender a importância de se sentir representado. Os jogos são instrumentos capazes de desempenhar funções sociais, causando impacto e gerando mudanças de mentalidade, que podem acarretar em desconstrução de pensamentos pré-estabelecidos.

Analisar a representatividade dentro desse tipo de mídia significa dar a grupos minoritários ou excluídos espaço, participação e representação de forma adequada e livre de estereótipos ou ofensas. É um impacto muito positivo, tanto para a indústria quanto para nós. Poder acompanhar a construção disso, como ocorre na narrativa de Our Life, tem ainda mais significado, pois dá um tom natural ao processo e não o estigmatiza.


Em sua obra “A Formação Social da Mente” (1998), o autor Lev Vygotsky defende que o aprendizado ocorre através de mediadores, para ele, ferramentas pedagógicas. O conhecimento entre humanos, portanto, sempre considera a mediação, que pode ser a linguagem oral e escrita. Estas ferramentas servem de intermediários para a construção da ponte entre o sujeito, o conhecimento e a realidade. Sendo assim, os jogos podem ser vistos como ferramentas pedagógicas, corroborando com sua atividade meditativa de ensinar.

O escritor francês Jean Chateau, em sua obra "O Jogo e a Criança" (1987), realiza um estudo aprofundado sobre o papel dos jogos eletrônicos. Ele define os jogos como formas elementares de como uma criança aprende a viver em sociedade. Através destas duas visões, há de considerar que mesmo que busquemos prazer e entretenimento em jogos digitais, eles podem ajudar um indivíduo a desenvolver seu pensamento sobre o mundo ao seu redor.

Our Life é realmente fantástico, e a impressão que tenho é que ele foi construído com bastante cuidado e atenção a todos os detalhes. O melhor de tudo é que o jogo é acessível; ele não exige computadores potentes e se encontra grátis na loja da Steam. Ele é uma ótima sugestão aos aficionados pelo tema e uma boa pedida aos curiosos; contudo, está disponível apenas em inglês.

Entrevista com os desenvolvedores

Convido vocês a experimentar Our Life: Beginnigs & Always, e agradeço imensamente a equipe da GB Patch Games, que disponibilizou seu tempo para responder algumas perguntas que fiz via Twitter. Na continuação do texto você pode conferir essa pequena entrevista com tradução nossa.

GameBlast: Sobre a estrutura do jogo em "Fases da Vida", pra mim a gameplay foi correndo de forma natural como um rio, então por que vocês escolheram isso e não imaginaram como um jogo inteiro com cenários e objetivos específicos?
GB Patch Games: Para Our Life, queríamos dar aos jogadores o controle sobre como progrediriam no jogo e para que a história tivesse os destaques absolutos do verão. Em uma história definida, teria sido difícil ir de um momento super memorável da vida para outro sem que as transições parecessem estranhas. Mantê-los como vinhetas separadas nos deixava livres para adicionar o que quiséssemos, e os jogadores também eram livres para fazer as cenas como quisessem.

Vocês fizeram uma campanha no Kickstarter que eu acredito ter tido bons resultados e, pelos comentários dos jogadores na Steam, ficou claro pra mim que a comunidade se apaixonou por Our Life. Vocês esperavam por isso ou foi uma grande surpresa?
Our Life conseguiu respostas muito maiores e melhores do que nós esperávamos. Foi maravilhoso ver tantas pessoas aproveitando o jogo.


É possível que no futuro o jogo esteja disponível em outras línguas? (há bastante pessoas no Brasil torcendo pra isso)
Nós não temos certeza neste momento. O jogo ainda está em desenvolvimento com ajustes/adições regulares de scripts, então não seria bom começar a traduzir o script ainda. Quando estiver totalmente concluído, veremos se as traduções são possíveis para nós!

Bem, nós sabemos que gênero e sexualidade são um tópico recente em discussão na sociedade como um todo. Our Life oferece a possibilidade de fazer escolhas importantes sobre isso. Você pode escolher os pronomes para você, as roupas que você vai usar em eventos importantes e até NPCs te questionam sobre amor. É um ótimo recurso que foge dos simuladores de namoro comuns na internet, qual era a intenção de vocês com isso?
Esperamos fazer todos os tipos de jogadores se sentirem bem-vindos e incluídos nas opções de MC, especialmente aqueles que geralmente são deixados de fora. Esperançosamente, fomos capazes de deixar as pessoas felizes com isso.

No geral, o time é team Cove ou há algum outro NPC que roubou os corações?
Eu digo que a maioria das pessoas na equipe gosta de todo o elenco, haha. 

Há alguma mensagem que você gostaria de enviar aos fãs e à comunidade?
Apenas que nós realmente apreciamos todo o suporte que estão dando à gente. Não teríamos sido capazes de chegar tão longe sem ele.

Revisão: Davi Sousa

É formada em Arquivologia pela UNIRIO. Amante de RPGs antigos e que quase enfartou com Fatal Frame, é fã assumida da série Red Dead e sempre se pergunta quando farão um crossover de Jurassic Park e Dino Crisis.
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