Análise: Everhood (PC/Switch) é uma viagem psicodélica única e extraordinária

Aventura nada convencional da Foreign Gnomes é uma das melhores surpresas de 2021 e um título obrigatório para fãs de jogos excêntricos.

em 18/04/2021
Preciso ser sincero logo de início: Everhood (PC/Switch) é um dos melhores jogos que joguei este ano. Na minha humilde opinião, o RPG experimental dos desenvolvedores Chris Nordgren e Jordi Roca simboliza tudo o que a cena indie dos games pode oferecer de melhor: inventividade, criatividade e unicidade reunidas em um pacote coeso e divertido, que se torna mais intrigante conforme o jogador explora suas entranhas.


O resultado final é uma experiência singular, com personagens carismáticos, um sistema de batalha viciante e uma trilha sonora que provavelmente fará com que você aumente espontaneamente o volume de seus equipamentos de som. Por isso, caro leitor, prepare seus reflexos e embarque conosco na análise a seguir.

Um inefável conto...

“Como no mundo humano, nós ofuscamos os traços de sentido, mas a estrada está clara.
É, afinal, para o seu próprio entretenimento”.

A enigmática frase acima é um exemplo de tantas outras similares que o jogador encontrará ao longo de sua história em Everhood. Em particular, escolhi transcrevê-la para esta análise por sua capacidade de síntese: por vezes, de fato, esta aventura psicodélica não terá um sentido tão evidente, mas o caminho que deve ser percorrido a seguir estará sempre claro.

Essas são afirmações que já se aplicam ao início do jogo, quando somos apresentados ao protagonista Red, um simpático e misterioso boneco de madeira que tem seu braço roubado por um ladrão azul. Surpreendido pelo fato, Red decide ir atrás do meliante e acaba chegando ao poderoso vilão Gold Pig, que orquestrou todo o crime.

Falar mais do que isso em relação à narrativa já seria entrar no campo de spoilers, e o melhor que se pode fazer é jogar Everhood com o mínimo de conhecimento prévio possível; ao longo de aproximadamente seis horas de história — excluindo as missões secundárias, bem como os finais alternativos e o New Game Plus —, o jogador se deparará com diversas reviravoltas e esquisitices, e acredite: cada uma delas merece ser experimentada sem interferências externas.

O que pode ser adiantado, porém, é que convém esperar o inesperado: em uma mesma sessão de jogo, por exemplo, conversei com um espelho, participei de uma corrida à Super Mario Kart (SNES) e embarquei com outros personagens do título em uma partida de RPG de mesa cujo cenário me trouxe um sorriso ao me fazer lembrar dos primeiros Dragon Quest.

O mais surpreendente é que nenhum desses acontecimentos — completamente diferentes uns dos outros em vários aspectos — ocorreu de modo forçado ou coisa do tipo. Muito pelo contrário, inclusive: uma das tônicas da aventura de Red é que tais “atos” se encaixam perfeitamente, tornando a experiência final da obra realmente variada e especial.

...dos inexpressivos momentos de verdade!

Na prática, Everhood segue a cartilha dos jogos de RPG clássicos em 2D, com dungeons para exploração, um puzzle aqui e outro ali e belos cenários em pixel-art. Não é difícil notar a influência de obras cult como Earthbound (SNES) e Undertale (Multi) em múltiplos aspectos, principalmente no que tange à construção do mundo e dos personagens — se Red tende a ser caladão (chegando até a lembrar vagamente o Link, da série The Legend of Zelda), o mesmo não pode se dizer da maioria do elenco do título, que não precisa de muitas oportunidades para demonstrar personalidade.

Um dos primeiros confrontos que você terá, por exemplo, será com um sapo violeiro, seguido de um caixa eletrônico raivoso. Fazendo jus às suas inspirações, Nordgren e Roca criaram aqui um pequeno universo mágico, onde seres como vampiros, cogumelos, sapos e magos convivem e partilham seus problemas e alegrias em relativa harmonia. Devido ao carisma dos habitantes, mesmo que grande parte dos diálogos não sejam extensos, termina-se por estabelecer vínculos com grande parte deles, o que é sempre algo positivo e elogiável.

De longe, o grande diferencial de Everhood fica por conta de seu sistema de batalha único. Esqueça os usuais níveis, magias ou batalhas por turno comuns ao gênero: aqui, os confrontos ocorrem em um grid que lembra muito o que era visto nos antigos Guitar Hero (Que saudades!).

Isso significa que cada adversário virá acompanhado de uma faixa musical única, cujas notas serão representadas por símbolos coloridos e luminosos em movimento descendente. Porém, ao contrário da falecida franquia da Activision (a qual defenderei até o fim ser merecedora de um retorno digno), aqui o objetivo não é acertar e palhetar tais “notas”, e sim desviar delas a tempo até que a música acabe — quando isso ocorrer, você terá vencido o embate por exaustão.

É um sistema excêntrico e interessantíssimo por dois motivos, basicamente. Primeiro, ao contrário do que um olhar despretensioso poderia achar, não é tão fácil assim desviar dos objetos luminosos. Apesar de Red poder pular e se movimentar livremente entre as cinco casas inferiores, você precisará de reflexos rápidos para não perecer, especialmente no caso de sequências musicais mais complexas.

Em segundo lugar, há um acertado foco na apresentação e na musicalidade, com variações entre estilos, tendência à experimentação sonora e o emprego de truques e ilusões visuais que resultarão em um psicodelismo ora empolgante, ora desconfortante. Em ambos os casos, cada confronto acaba por tornar-se um evento cativante, simultaneamente único e desafiador, embalado por faixas como as seguintes:

Let's dance!

Com uma trilha sonora que varia do fusion jazz ao heavy metal com passagens pelo experimental, Everhood é certamente um agrado e tanto para os ouvidos. Ao escutar cada uma das faixas do jogo, é possível perceber que os criadores não pensaram duas vezes ao deixar a criatividade falar mais alto, e quem tem a ganhar com isso somos nós, jogadores.

Obviamente, sendo a aventura no fundo um RPG, a trilha sonora não poderia salvá-la caso sua história e seu sistema de combate não fossem divertidos e não fornecessem o necessário entretenimento ao jogador. Mas, como dito acima, felizmente a trama de Red se destaca nesses pontos também. Ouso dizer, inclusive, que a sinergia psicodélica de áudio e imagem aqui presente traz a tão necessária epicidade aos encontros com chefes que muitas vezes falta em outros jogos do gênero.

Tocando no assunto do desafio, confesso que até me acostumar com as mecânicas de combate, joguei no modo fácil por um bom tempo, e mesmo assim de vez em quando ainda tive de repetir um cenário ou outro. Porém, caso você (assim como eu) não possua os reflexos de um ninja treinado nas montanhas orientais, não se preocupe: há cinco níveis de dificuldade que podem ser selecionados livremente, incluindo um feito para quem quer focar somente na história. Caso você falhe em um determinado confronto, também é possível repeti-lo sem sofrer penalidades de nenhuma espécie.

Assim, a não ser que aventuras não convencionais ou sequências artificialmente alucinógenas lhe incomodem em âmbito particular, não há motivos para não se aventurar por Everhood. Mesmo no PC, seus requisitos gráficos são particularmente leves, de modo que acredito que qualquer notebook deve executá-lo sem maiores dificuldades. Desde o seu lançamento original no mês passado, alguns patches de correção foram disponibilizados para ambas as plataformas, e é sempre bom relatar que não foram vistos bugs ou crashes durante as sessões de jogo para a escrita desta análise.

A única menção negativa de fato que devo fazer é relativa à ausência de suporte ao português brasileiro, que basicamente obriga o jogador a ter um certo conhecimento de alguma língua estrangeira para aproveitar 100% do título. Ah, e também, como há suporte para a criação de batalhas customizadas por parte da comunidade — um recurso atualmente em fase beta —, seria interessante ver uma integração com a Oficina Steam, que facilitaria todo o processo. Então, fica aqui registrada a sugestão aos desenvolvedores.

O início, o fim e o infinito

Everhood
é criativo, preciso, único e envolvente. É honestamente refrescante ver um título experimentar tanto ao longo de sua proposta e ainda assim entregar um produto final harmônico e coerente. Embora a trilha sonora e o sistema de combate sejam os grandes destaques quando analisados individualmente, todos os elementos aqui presentes merecem elogios.

Portanto, não se deixe enganar: aqui está um RPG que, apesar de não convencional, merece ser jogado por todo fã do gênero, especialmente os que não tenham medo de experiências que fomentem o pensamento fora da caixa. Recomendadíssimo.

Prós

  • Sistema de batalha envolvente e divertido;
  • Elenco carismático;
  • Narrativa com reviravoltas;
  • Referências (algumas em forma de partes jogáveis) a outros games e gêneros;
  • Trilha sonora espetacular;
  • Estética agradável retrô em pixel-art;
  • Recursos como New Game Plus e sidequests prolongam a vida útil da aventura.

Contras

  • Não possui tradução para português brasileiro;
  • Recurso de Custom Battles poderia contar com integração à Oficina Steam.
Everhood — PC/Switch — Nota: 10.0 
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: José Carlos Alves
Análise produzida com cópia digital cedida pela Foreign Gnomes

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