Análise: Yakuza: Like a Dragon (Multi) é, ao mesmo tempo, um tradicional e subversivo JRPG

Como um dragão, a sólida IP da Sega alcança voos cada vez mais altos e chega pela primeira vez com suporte à língua portuguesa.

em 14/03/2021

O ano 2000 foi um marco no cenário mundial dos RPGs de mesa quando a terceira edição de Dungeons & Dragons trouxe o inovador conceito de Open Game License, que permitiu que marcas de terceiros pudessem se utilizar de seu sistema de regras — que posteriormente ficou conhecido como D20 — em outros cenários, de maneira adaptada. Em meados daquela década, o RPG nacional Ação!!! chegou ao mercado e veio com a premissa de adaptar esse mesmo sistema em um contexto verossímil à realidade, à nossa modernidade. Entretanto, não se engane: embora nossa própria vida seja, muitas vezes, tediosa, o RPG tentava fazer jus ao seu título  justamente por procurar trazer um pouco de ação a ela. 


E não é que Yakuza: Like a Dragon (Multi) faz um negócio parecido? Em uma tentativa de refrescar a sua já consagrada propriedade intelectual, a Sega pegou Yakuza e trocou toda a porradaria em tempo real por um sistema de RPG. O que inicialmente aparentava afetar apenas o combate na verdade mostrou-se uma mudança muito bem implementada que afetou todo o ecossistema de mecânicas presentes. 

Essa troca veio em boa hora. Após Yakuza se firmar como uma das IPs mais consistentes da empresa e ter gerado inúmeras iterações (e spin-offs, a exemplo do caso de Fist of the North Star: Lost Paradise) de veia similar, sempre com a mesma estrutura dorsal, Like a Dragon é uma espécie de soft reboot da marca. Explica-se: apesar de fazer menção a elementos do passado, não é necessário absolutamente nenhum conhecimento prévio para desfrutar da aventura de Ichiban Kasuga em toda sua integridade. É verdadeiramente um novo começo.



A Jornada do Herói

Uma característica da marca que prevalece é o fato de que os Yakuza são games carregados de uma longa e intrincada trama. No caso desse sétimo jogo, nós conhecemos a jornada de Ichiban, um ex-membro da Yakuza na faixa dos quarenta anos, dos quais quase vinte foram passados na cadeia por ele ter assumido a culpa de um crime que não cometeu para limpar a barra de seu chefe, Arakawa. Sua principal desilusão é que, após cumprir toda a sua pena e finalmente voltar à sociedade, ele esperava ser recebido pelo seu clã como um herói.

A realidade, contudo, foi bem mais dura: não apenas ele foi sumariamente ignorado por Arakawa, como ainda recebeu um tiro disparado diretamente pelo chefe que tanto admirava. Ainda vivo, ele é desovado em um lixão e encontrado por Yu Nanba, um ex-enfermeiro na condição de mendigo que acabou o salvando. Kasuga então se vê tendo que se recuperar física e moralmente com apenas a roupa do corpo em um local completamente não familiar a ele: o distrito de Isezaki Ijincho, em Yokohama.




Historicamente, a franquia Yakuza não é apenas sobre, bem, a máfia Yakuza. O que a série faz com maestria é retratar, de maneira satirizada, o estilo de vida urbano japonês. Isezaki Ijincho, embora não tanto quanto Kamurocho nos games anteriores, é um bairro vivo. Não só cheio de atividades para fazer, ele também está cheio de moradores e frequentadores, cada um com suas histórias singelas e particulares.

É a partir desses fragmentos de enredos que a narrativa de Like a Dragon se desenvolve expansivamente. Kasuga logo descobre que Ijincho é comandada por uma tríade de três diferentes máfias: além da japonesa, há a coreana e a chinesa disputando o domínio do local. Se já não fosse o suficiente, ele conhece uma quarta força, chamada Bleach Japan, uma espécie de ONG conservadora que visa “embranquecer” o Japão de atividades consideradas “cinzentas” que, por definição, operam à margem da lei.




A chegada de Kasuga em Ijincho aparentava ser justamente a peça que faltava para balançar tais estruturas vigentes no distrito. Cabeça-quente e impulsivo como é, ele jamais deixará passar uma oportunidade de ser um verdadeiro herói. Não apenas um herói figurado, e sim um herói de verdade. O protagonista é um verdadeiro lunático viciado em Dragon Quest, comprando para si os ideais de justiça e bondade inerentes aos inúmeros heróis da franquia da Square Enix. Mais interessante ainda, esses ideais de justiça não se referem a uma justiça pragmática ou utópica, mas uma justiça de viés claramente social, visando sempre defender os fracos, excluídos e oprimidos.

Isso se deve à própria criação de Kasuga. Filho de uma meretriz que ele sequer conheceu, o protagonista foi criado em uma casa de banho pelo gerente e pelas moças que lá trabalhavam. Durante a vida toda, ele soube o que é viver à margem da sociedade e compreende muito bem que os que realizam esse tipo de atividade ilícita o fazem simplesmente porque não têm escolha. Trata-se de um discreto, porém belo comentário social onde menos se espera, principalmente porque serve de pano para criar alguma oposição entre ele e a Bleach Japan.



Bater ou Correr em Isezaki Ijincho

Apesar de o vício de Ichiban por Dragon Quest acabar sendo a única justificativa in-game para a mudança de gênero em Yakuza, trata-se de um motivo bastante convincente. Não basta ser um obcecado por RPGs, ele enxerga o próprio cotidiano como um jogo do estilo e, por extensão, essa é a mesma experiência do jogador. Assim, o sistema de combate beat’em up dos antecessores deu lugar a um focado em turnos, mas que conseguiu realizar a façanha de ser tão fluido quanto antes.

De início, é válido chamar atenção ao fato de que em nenhum momento os personagens, sejam eles jogáveis ou controlados pela IA, ficam parados esperando os comandos. Eles estão em constante movimento pelo cenário, garantindo a dinamicidade dos confrontos. Ficar de olho no posicionamento faz parte do processo de tomada de decisão, já que é possível utilizar elementos do ambiente (característica clássica que foi adaptada para este novo modelo de batalha).




Embora a ação se dê através de comandos tradicionais, como atacar, defender, usar item ou ataque especial, os inputs do jogador seguem presentes e necessários em quick time events (QTEs) que aumentam a eficácia de certas técnicas ou da possibilidade de efetuar uma defesa perfeita ao apertar de um botão no momento certo do golpe do oponente.

Além do sistema de batalha, a adequação da modernidade feita pela Sega e pelo Ryu Ga Gotoku, estúdio interno responsável pela marca, a um jogo de RPG chega a ser excepcional. Assim como os heróis do gênero clássico têm aptidões para várias classes, os personagens de Like a Dragon têm aptidões para diferentes empregos, cujas habilidades foram comicamente adaptadas para combate. A mecânica de invocação também pode ser ativada com um simples toque de celular e novos summons são adquiridos ao completar sidequests diferentes.

A inserção do sistema de party se mostrou um processo tão natural que até parecia tradicional para a franquia, visto que ela sempre teve em seu DNA a ideia do companheirismo — aquela coisa de valorizar aliados, a família Yakuza da qual os personagens fazem parte, etc —, mas nada que realmente correspondesse a esse ideal na jogabilidade prática. Mais do que nunca, é como estabelecemos laços de apego aos aliados em nossa jornada. Desse jeito, ao lado de Nanba, nós nos aliamos a Adachi, um bruto ex-detetive de bom coração, e Saeko, a bartender cujo pai foi salvo por aqueles que posteriormente se tornariam seus parceiros de time.




Nesse aspecto, uma das qualidades de Yakuza: Like a Dragon é como ele traz todos esses elementos de uma maneira bastante simples para o jogador. Do mesmo modo que é possível para alguém já calejado com RPGs desenvolver a party de forma elaborada, aqueles que querem apenas continuar com a trama, sem se preocupar em evoluir classes diferentes para desbloquear skills próprias de cada uma, por exemplo, podem igualmente aproveitar o título sem sofrer nenhum tipo de desvantagem; entretanto, um certo nível de grinding se faz necessário em determinadas ocasiões.

Isso acontece porque o game é atolado de conteúdo extra. Temos, por exemplo atividades paralelas que servem de passatempo, tal qual o Dragon Kart (uma espécie de clone-sátira de Mario Kart), cinema ou karaokê (no formato de minigames), e os fliperamas da Sega (com versões emuladas e completamente jogáveis dos clássicos da empresa). Há ainda várias sidequests, cada uma com um fragmento de história que ajuda a compor toda a identidade e diversidade de Isezaki Ijincho. Isso sem falar do trabalho de herói em meio-período, que é um prato cheio para os platinadores de plantão, uma vez que se trata de várias pequenas conquistas internas do jogo a serem realizadas, como consumir todos os itens disponíveis nas várias lanchonetes do bairro. 

Como disse o Tchan, "vem do Oriente, para mexer com a gente, vem quebrar gostoso, aqui no Ocidente"

Uma novidade para o público brasileiro é que, pela primeira vez na história da franquia, Yakuza: Like a Dragon foi traduzido para o nosso idioma. Embora não se trate de um trabalho de localização completo, já que não foi feita a dublagem, a atualização que disponibilizou o português brasileiro para nós veio muito bem a calhar e sim, ela é muito boa.

Não é só um trabalho profissionalmente competente; certas escolhas criativas feitas pelo time de tradução tornaram a experiência fluida, com uma leitura agradável e sem forçar a barra em maneirismos de fala, mas também sem parecer uma tradução travada ipsis litteris em relação ao material original. Isso se aplica tanto às falas dos personagens quanto aos elementos de menu e nomes de classes e itens.



O único problema em relação à tradução é a maneira como alguns dos letreiros muito provavelmente eram textos em imagens “fechadas” que não podiam ser mudadas através do arquivo de texto, o que acaba gerando estranhamento quando aparecem antes de cada batalha, em uma das instâncias em que isso ocorre.

Independentemente disso, a qualidade do trabalho é bastante admirável, sobretudo por conta da consistência apresentada em relação à quantidade de texto presente — que não é pouca, vale ressaltar. Tomara que esse suporte idiomático ao Brasil dê retorno à Sega ao ponto de a empresa ponderar ir mais longe em futuras iterações da série, promovendo uma localização completa na próxima vez.



Novo começo, velhos e familiares empecilhos

Ainda que traga um verdadeiro frescor à franquia, Like a Dragon não deixa de lado alguns dos problemas recorrentes a ela e que, a essa altura do campeonato, já deveriam ter sido repensados. Um deles é como as coisas demoram para engrenar, algo que se enquadra tanto em relação ao roteiro quanto às mecânicas, que vão sendo apresentadas a conta-gotas no decorrer da campanha. Além disso, algumas das cutscenes poderiam ser mais curtas, principalmente em sequências de maior intensidade em que o jogador está borbulhando com a adrenalina do enredo, louco pela ação.

Apesar de ser um jogo bastante bonito em seu apelo estético, a série não apresenta nenhuma novidade nesse fator desde o começo da geração do PlayStation 4/Xbox One, basicamente. É como se já tivessem atingido todo o seu potencial logo no começo dela e fica por aí.




Essa questão se mostra especialmente evidente se comparamos o bairro de Kamurocho com Isezaki Ijincho. Kamurocho era vibrante, brilhante e visualmente denso. Isso contrasta demais com o relativamente pacato Ijincho, que, por sua vez, é baseado no distrito real de Isezakichō, em Yokohama, enquanto Kamurocho foi inspirado em Kabukichō, de Tóquio. Tudo é impressionantemente cheio de detalhes, mas algum trabalho nos gráficos, nem que seja para trazer alguma aparência estilizada em detrimento do fotorrealismo, viria bem a calhar, só no intuito de se destacar de seus antecessores.

A real é que Ijincho, embora seja por volta de três vezes maior do que Kamurocho (de acordo com o material promocional), passa a impressão de ser menor porque muito dessa área é usada, na verdade, para espaços e ruas bem mais amplas., Algo incômodo, inclusive, são os carros transitando pelas avenidas e arrancando um belo naco da vida do jogador, caso ele seja infeliz o suficiente para ser atropelado. Mesmo que seja uma forma de tentar trazer realismo ao distrito, está aí algo para o qual os desenvolvedores poderiam ter feito vista grossa no intuito de atrapalhar menos a jogabilidade prática do game.

Outro ponto a se chamar a atenção é que, ao menos no PlayStation 4 Fat e Slim, todas as vezes em que uma cutscene está para começar, o jogo dá uma travada de um segundo antes da cinemática. Certamente trata-se de algum loading disfarçado, mas é um revés que quebra a imersão e deixa a transição pouco fluida. O pior é que se trata de um defeito recorrente ao longo da franquia.



Like a Dragon (Quest)

Yakuza: Like a Dragon é uma bela subversão dos RPG japoneses. A despeito de se situar em uma ambientação bastante distante do tradicional para o estilo, todos os seus elementos característicos estão presentes e foram implementados de uma maneira bastante competente. Ao contrário de certas IPs que, almejando o sucesso ocidental, tentam se adaptar ao nosso mercado, a série Yakuza tem uma identidade bastante singular pelo fato de não ter vergonha de se apresentar como um produto provindo do Oriente. Isso, agora, está sendo colocado à prova mais do que nunca.

Prós

  • Tradução de primeira linha;
  • Mecânicas de JRPG que agradam tanto ao jogador veterano quanto ao novato;
  • Excelentíssima adequação do gênero ao ambiente do Japão Moderno;
  • Ichiban é um protagonista incrível, mostrando que a série está em boas mãos;
  • Narrativa instigante quando decide andar;
  • Atividades extras de montão.

Contras

  • Algumas cutscenes são cansativamente longas;
  • A narrativa e a progressão demoram um pouco para embalar;
  • O apelo visual poderia ser mais diferenciado;
  • Isezaki Ijincho é pacata até demais (com exceção do tráfego).
Yakuza: Like a Dragon — PS4, PS5, XBO, XSX, PC — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PlayStation 4
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Sega

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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