Depois de um pequeno hiato de uma semana, volto para escrever mais um artigo controverso da série Videogames vs Filosofia. Hoje, para mostrar que, para Nicolau Maquiavel, o uso de hacks e cheats é justificável, desde que isso auxilie para o atingimento de uma finalidade.
“É preferível ser temido que amado”
Conhecido pela máxima de que “os fins justificam os meios”, frase que, por mais que resuma seu pensamento, não é de sua autoria, Maquiavel costuma ser visto como uma figura obscura e peculiar, sendo o termo “maquiavélico” usado de forma pejorativa até os dias atuais. Todavia, já adianto que existe uma tendência a distorcer a filosofia do florentino.
Na verdade, nem todas as atitudes seriam justificáveis na doutrina do estrategista político, mas, principalmente, as que se relacionassem ao intento de tomar ou manter o poder político. Naquelas ações que pudessem ser úteis à coletividade, por exemplo, paradigmas morais deveriam ser analisados (isso na visão do governante). Maquiavel servia e escrevia aos governantes absolutistas, inferindo-se que somente o soberano pode saber o que realmente é melhor (nota-se que o “melhor” nem sempre significa o “moralmente bom/correto”).
O autor destaca, ainda, que existe uma vantagem muito maior em ter virtude que depender da sorte. Um governante bom é aquele que sabe lidar com as adversidades e encara-as de forma lógica e ponderada, não ficando adstrito aos seus efeitos.
Temos, aqui, o cenário ideal para começar efetivamente o debate: será que todos esses postulados também se aplicam aos games?
Cheaters: condená-los ou defendê-los?
Certo; passamos a refletir sobre quais são os objetivos dos cheaters e hackers nos jogos. Em uma análise externa, parece que são dois: vencer as partidas ou atrapalhar os outros jogadores. Tendo isso e a teoria de Maquiavel em mente, é razoável o uso de “trapaças” nos games com algum desses intentos? Os fins justificam os meios nesse cenário?
Talvez, para você, os primeiros pensamentos que venham à cabeça sejam “Sim; por que não? O cara não falou que os objetivos justificam nossas ações?”; ou, ainda, esteja se perguntando o porquê de ainda estar lendo este texto.
Se for o primeiro caso, sinto muito, mas não acho que reflita a melhor interpretação do escritor. Agora, se for o segundo, o que eu tenho a dizer é que juro que sou uma pessoa legal e, se vocês puderem recomendar para os amigos e me ajudar a convencer o mundo que relacionar filosofia com os jogos pode ser algo interessante, eu agradeceria (hehehe).
É certo que é impossível prever o que Maquiavel falaria sobre cheats, talvez ele só gostasse de jogar Age of Empires, mas, utilizando-se de sua leitura, uma resposta razoável pode ser alcançada. Cabe rememorar, nesse diapasão, que os fins nem sempre justificam os meios, somente sendo possível tal inferência em casos em que a coletividade esteja seriamente colocada em risco (casos nos quais a moralidade teria um papel). Mais do que isso, o filósofo, diante do contexto em que se encontrava, estava defendendo o poder monárquico e sua teoria, naturalmente, não se estendia às demais classes.
De qualquer forma, o ponto crucial é tentar aplicar as noções de virtude e fortuna/sorte. Se é melhor “se garantir” a depender da sorte, então seria plenamente justificável o uso de cheats nos games. Por outro lado, pensando de uma maneira empática e no “fair play”, aprender a jogar melhor é um método muito mais justo, além de inexistirem riscos de banimento e de não deixar um gosto amargo na boca. Não esqueçamos que, justificáveis ou não, ações têm consequências.
No fim, podemos utilizar Maquiavel para defender e para criticar os cheaters. Só depende de uma boa argumentação. Mas sinceramente? Pare de ser maquiavélico e vá treinar sua mira no Fortnite! E por que escolher entre ser temido ou amado? Um bom jogador é aquele temido por sua técnica, mas amado por suas condutas, por seu modo de agir.
Gostaram da discussão da semana? O que acham? Bora continuar denunciando essa galera trapaceira, até porque isso é completamente justificável.
Ah, uma observação interessante é que Nicolau Maquiavel já foi um personagem da aclamada franquia Assassin's Creed, como pode ser observado na capa com a respectiva caracterização.
Revisão: Ives Boitano
Arte de capa: Rafael Isenof