Para onde a representação lésbica nos jogos está caminhando?

Personagens lésbicas nos games não são novidade, mas como estão sendo representadas tem assumido um papel fundamental no combate à discriminação.

em 07/03/2021
The Last of Us Part II



Representatividade nos jogos é uma questão que tem ganhado cada vez mais relevância, seja na indústria, no jornalismo de games, nas competições de e-sports ou no conteúdo produzido pelos desenvolvedores. É visível que atualmente há um esforço para que o debate se materialize na prática, sendo possível expor outras referências de modo a naturalizar realidades diferentes das que estamos habituadas e, pensando de forma otimista, abrandar os efeitos da discriminação social.


Pensando estritamente nos jogos como objeto de análise, a representatividade lésbica tem tido ótimos avanços, demonstrando que não só procuram dar liberdade para que o jogador se expresse de forma mais genuína, mas também conheça um pouco mais sobre a dinâmica dentro de um relacionamento entre duas mulheres.

Vivenciar a lesbianidade nos jogos

A possibilidade de criar personagens homossexuais não é novidade. Jogos do gênero RPG há muito tempo permitem que os jogadores estabeleçam relações entre personagens do mesmo sexo, deixando que eles mesmos construam suas próprias narrativas a partir de suas escolhas nas aventuras.

Em Skyrim (Multi) e nos jogos das franquias Fallout e Mass Effect, as opções de parceiros são diversas, trazendo um caráter progressista a um ambiente que por muito tempo se apresentou como conservador. No gerenciador de fazenda Stardew Valley (Multi) e em The Sims, famosa franquia de simulador de vida, também é possível estabelecer relações homossexuais sem que isso traga qualquer tipo de estranhamento dentro do universo desses jogos, o que é bastante positivo, já que almejamos exatamente que esse tipo de reação seja transposta para a realidade.

Stardew Valley

Presença de personagens lésbicas e bissexuais

Outro tipo de representatividade acontece com personagens já determinados como homossexuais ou bissexuais. Isso não parte de um processo autoral do jogador, e sim do universo narrativo idealizado pelos desenvolvedores. Há personagens marcantes apresentadas como lésbicas, como Tracer, em Overwatch (Multi), que embora não demonstre sua sexualidade durante o jogo, foi declarada como homossexual pelos próprios desenvolvedores.

Tracer Overwatch



Há também personagens que podem de alguma forma desempenhar um comportamento lésbico dentro do jogo sem que isso seja fundamental para a história central, como Kassandra, em Assassin’s Creed Odyssey (Multi). Neste caso, a possibilidade de jogar com uma personagem que pudesse ser lésbica animou os fãs da franquia, mas infelizmente o jogo acaba limitando a agência dessa escolha quando força uma relação heterossexual ao longo da narrativa, o que rendeu críticas à Ubisoft.

Assassin's Creed Odyssey



Embora esses exemplos permitam que os jogadores possam ter experiências com mais identificação, ainda não assumem um papel educativo de demonstrar a quem não tem contato com esses tipos de relações como elas se desenvolvem e quais são suas particularidades. Esse tipo de exposição é extremamente importante para que o sentimento de empatia floresça nas pessoas. É difícil compreender aquilo que não se conhece, mas se um jogo consegue apresentar uma realidade distante da nossa, é provável que algumas reflexões sejam provocadas.

Reprensentatividade que acolhe

Minha relação com games nem sempre foi tão estreita como é atualmente. Embora eu jogasse algumas coisas a que tinha acesso, pouco conhecia a respeito das que fugiam do mainstream. Foi então que, a partir de alguns jogos indies, pude ver realidades retratadas que dialogavam diretamente com a minha vida. Tenho 26 anos e sou bissexual, mas me relacionei predominantemente com mulheres. A minha fase de descoberta, ainda que tenha acontecido cedo, foi semelhante à de muitas outras garotas lésbicas e bissexuais, o que me fez sentir pertencente a um grupo que compartilha de determinadas experiências, sejam elas reveladoras ou traumáticas.

Isso faz parte do repertório coletivo desse grupo social, e apesar de algumas diferenças entre cada vivência, há uma compreensão de como nossas identidades se desenvolveram circunscritas a dinâmicas sociais que punem aquilo que somos. Quando entrei em contato com jogos que retratam experiências lésbicas, foi a primeira vez que eu senti que fazia parte desse universo. Eu poderia me apropriar desses conteúdos e desses espaços.

Da autodescoberta aos relacionamentos maduros

Gone Home (Multi) foi o primeiro jogo com temática lésbica com que tive contato. Recomendado por uma amiga, ele surgiu como uma grande surpresa delicada da qual eu, inicialmente, não sabia o que esperar. Assumindo a posição de irmã mais velha que volta de um intercâmbio em um dia chuvoso, você se encontra sozinha na nova casa de sua família, onde foram morar no período em que você estudava fora. Seus pais não estão em casa e na porta da frente há um bilhete da sua irmã mais nova, pedindo para que você não conte a seus pais sobre o que encontrar na casa.

A ambientação tensa de uma casa grande de madeira que range e pisca à luz das trovoadas não nos prepara para o que está por vir. Você deve vasculhar tudo que puder em suas andanças para descobrir o que aconteceu com sua família no período em que esteve longe. Não só tive o prazer de encontrar fitas cassetes da banda de Riot Grrrl Bratmobile, como encontrei zines feministas e até coisas no quarto de minha irmã mais nova que facilmente encontraria no meu quarto. Foi o primeiro toque de identificação.

Gone Home



Conforme você avança pela casa, vai descobrindo, por meio de pedaços do diário de sua irmã, sobre o despertar de interesse dela por uma garota que conheceu. Lembro até da sensação morna que me arrebatou no momento em que entendi do que se tratava o jogo. Os detalhes dessa relação vão se revelando singelos e cativantes, doces como um primeiro amor adolescente, proibido como a primeira experiência lésbica. A sensação de me enxergar na narrativa foi extasiante.

Gone Home



Outra grande surpresa foi o jogo Tacoma (Multi), que me pegou completamente desprevenida. Quando tive a oportunidade de jogá-lo, estava casada com uma mulher havia um tempo. A história se passa em uma base espacial abandonada, estando o jogador na posição de uma garota responsável por coletar as informações da inteligência artificial da base para descobrir o que aconteceu à tripulação. Embora o jogo não trate propriamente de lesbianidade, apresenta entre seus personagens duas lésbicas que me chamaram a atenção: Natali, especialista de rede na base, e Roberta, engenheira, que são casadas e moram juntas na nave. Apesar de cada uma ter sua própria cabine, elas passam a dormir juntas no mesmo quarto, deixando a cabine de Natali apenas para depósito.

Tacoma



Como Tacoma apenas representa seus personagens por hologramas coloridos de suas silhuetas, os diálogos acabam se destacando na construção de suas personalidades e relacionamento, o que já foge do padrão quando vemos que Roberta é uma mulher gorda, o que raramente entra no padrão de representação de mulheres lésbicas nos jogos.

Tacoma



Outros detalhes podem ser descobertos na medida em que você vasculha os pertences pessoais da tripulação e assiste às gravações dos hologramas em ambientes diferentes. Com Natali e Roberta pude enxergar muito do carinho e cuidado que meu casamento carregava. Há toda uma beleza na intimidade desenvolvida durante anos entre duas mulheres que se amam, e ali pude enxergar um pouco da história que compartilhava com a minha companheira.

Nos jogos Life is Strange (Multi) e Life is Strange: Before the Storm (Multi), as representações das relações entre garotas adolescentes fizeram com que eu fosse transportada para a época em descobri que me atraía por meninas. No primeiro jogo, Max acaba reencontrando sua amiga de infância, Chloe. Juntas, elas passam a procurar por Rachel, amiga de Chloe que desaparece sem deixar pistas, o que faz com que passem tempo suficiente juntas para relembrar as mágoas do passado e retomar os laços que foram estremecidos pela distância.

Life is Strange



Max e Chloe não necessariamente precisam entrar em uma relação lésbica dentro do jogo, mas as possibilidades que encaminham a interação para esse nível demonstram com realismo como se dão as primeiras descobertas adolescentes. As duas são confidentes, conhecem intimamente as questões mais profundas uma da outra, admiram-se e flertam de brincadeira o tempo todo. Ou seria sério? Essa ambiguidade nas relações entre meninas (e também mulheres adultas) são bem marcantes e costumam se fazer presente ao longo de suas vidas amorosas. É fácil desenvolver sentimentos por uma amiga, porque nas relações entre mulheres é praticamente impossível não nutrir uma amizade profunda e confidente por aquela que caminha ao nosso lado e que compartilha de cicatrizes semelhantes.

Life is Strange



O jogo, que usa a viagem no tempo como recurso de jogabilidade, trabalha com as dificuldades de se fazer escolhas e arcar com suas consequências, ainda mais quando suas atitudes podem atingir alguém que se ama. É justamente pela intensidade dessa relação, seja pela amizade ou pelo turbilhão que é o primeiro amor, que os dilemas encontrados na história se apresentam tão complicados e significativos. Algumas vezes é até difícil estabelecer prioridades, o que se aproxima muito de como lidamos com problemas durante nossa adolescência. Não estamos suficientemente maduros para racionalizar que o nível de emoção nem sempre converge para o que supostamente deveria ser feito se analisássemos racionalmente.

Na pré-sequência Before the Storm, temos a oportunidade de conhecer mais sobre Rachel e sua relação com Chloe. Esse jogo conseguiu se ater a tantos detalhes do deslumbramento da paixão juvenil que me fez sentir borboletas no estômago ao ver Chloe se encantando pela leonina cheia de personalidade que aparece bem na época em que Max muda de cidade.

Embora as duas garotas apresentem personalidades fortes, são bem diferentes entre si e reagem aos problemas que enfrentam de forma bastante particular, o que gera conflitos em sua relação. Apesar disso, a forma como essa aproximação é desenvolvida me remeteu à sensação que tive em grande parte dos meus relacionamentos com mulheres: embora cada uma estivesse enfrentando suas próprias batalhas, encontravam na outra um refúgio do mundo.

Before the Storm



Assim como no primeiro jogo, Rachel e Chloe não necessariamente precisam desenvolver um relacionamento romântico, mas todas as interações que denunciam a forma como Rachel desestabiliza a outra garota demonstram que a intenção era algo real, independentemente de como o jogador encaminha os acontecimentos na narrativa. Quando se articula as histórias dos dois jogos, nota-se que as decepções de Chloe são justificadas pela forma como as duas se apegaram e as promessas que foram feitas.

Os desentendimentos intensos e as complicações de se estabelecer uma relação sólida lésbica quando se é adolescente são algo que não está explicitado, mas que é facilmente identificado por qualquer garota que já sentiu na pele o receio de assumir esse compromisso e acabar se indispondo com familiares e amigos. Nesse ponto, o jogo consegue remeter às sensações vividas ao descobrir que nos sentimos diferente em relação às outras garotas, isso sem deixar de envolver muito drama, o que ironicamente também pode ser bastante coerente com as relações lésbicas de modo geral.

Before the Storm



Os últimos jogos com que tive contato e que representam as relações lésbicas de forma fiel foram The Last of Us: Left Behind (PS3 e PS4) e The Last of Us Part II (PS4). No primeiro jogo da série, Ellie é uma garota de 14 anos que acompanha Joel durante a aventura. No DLC pré-sequência do primeiro jogo, Left Behind, Ellie aparece junto de sua amiga Riley, uma garota um pouco mais velha que a leva para passar um dia dentro de um shopping desativado. Durante o game, Riley e Ellie brincam e aproveitam seu tempo juntas com bastante descontração, tiram fotos juntas e aproveitam todas as surpresas que Riley preparou para sua amiga antes de se despedir.

Grandes demonstrações de afeto não são exclusivas a relacionamentos entre mulheres, mas há uma tendência de que alguns detalhes sejam mais levados em conta até mesmo pelas expectativas que se tem sobre relacionamentos. Se duas pessoas culturalmente aprendem a esperar as mesmas coisas de uma relação, é mais fácil que elas consigam suprir as demandas uma da outra. A forma como as duas personagens se tratam é bastante atenciosa e amigável, mas como a ambiguidade é algo bastante presente nesse tipo de relação, ao final as duas acabam deixando claro que há um interesse romântico recíproco, tudo retratado com uma delicadeza coerente com a idade das meninas.

Já em The Last of Us Part II, pude presenciar uma das melhores representações de relacionamento lésbico que já vi em jogos. Depois de adulta, Ellie vive em uma comunidade junto com várias outras pessoas, dentre elas Dina, ex-namorada de um amigo de ambas. A aproximação das duas se dá de forma gradual, mas muito menos burocrática do que em relações adolescentes. Embora elas passem por situações de lesbofobia, o maior empecilho é justamente o cuidado que buscam ter com os sentimentos do ex-namorado de Dina. Além disso, há o conflito central da história, que não permite que Ellie possa se dedicar plenamente ao relacionamento.




Durante os acontecimentos do jogo, as interações entre as duas se faz mais madura, incluindo cenas de beijos ou de sugestão de sexo que demonstram que a relação entre as duas não é como a última experiência de Ellie. Embora algumas vezes as experiências lésbicas sejam retratadas nos jogos em situações em que as duas são adolescentes e estão se descobrindo, Ellie e Dina são uma representação respeitosa de como a intimidade entre duas mulheres adultas pode carregar sexualidade em meio à descontração.

Com o avanço da história, Ellie e Dina passam a morar juntas com um bebê, construindo assim uma família. Uma queixa comum entre as lésbicas é a de que dentro de seus círculos sociais, como familiar ou de trabalho, muitas vezes elas são infantilizadas e nunca são vistas como mulheres adultas. Há quem defenda que as mulheres são somente reconhecidas como adultas na sociedade a partir do momento em que se estabelecem em uma relação e têm filhos, porque isso concretizaria, a partir de uma visão patriarcal, que seu propósito foi alcançado.




Diante disso, há um lugar comum nas narrativas sobre relacionamentos lésbicos que centram essas representações nos conflitos mais conhecidos, como o da descoberta da sexualidade, sendo pouco abordado como essas relações se estabelecem com a maturidade e que tipo de conflitos são enfrentados em relações em que supostamente há compreensão mútua. É exatamente por isso que TLoU II se destacou diante de outros jogos: ele se atreveu a retratar uma relação madura, com conflitos cotidianos e com seriedade, não utilizando a sexualidade das personagens a serviço de fetiches, mas não as tratando como seres assexuais e imaculados.

Ansiosas por mais!

A importância dessas narrativas é que elas não só comunicam aos jogadores que essas histórias existem e que lésbicas não são aquelas representações rasas com as quais estamos acostumadas, aprofundando seus conflitos e batalhas pessoais enfrentadas, como também fazem com que mulheres de todas as idades que compartilhem dessas vivências possam sentir que, ao ver personagens semelhantes a si mesmas em produções tão relevantes como o AAA da Naughty Dog, sintam que suas narrativas sejam validadas, tendo suas experiências legitimadas.

Sentir-me vista foi um dos maiores presentes que os jogos me proporcionaram e eu sei que embora ainda haja muita resistência quanto a conteúdos como esses, a expressão massiva de satisfação e alegria por parte das jogadores lésbicas felizmente tem dado o recado de que não só estamos preparados para essas histórias, como também estamos ansiosos para ver mais histórias de mulheres incríveis com suas complexidades e com seus afetos.

Revisão: Davi Sousa


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