A representação da violência nos jogos pode ser positiva?

Sabemos dos impactos da violência nos jogos, mas, dependendo de como é apresentada e mediada, essa representação assume um papel fundamental.

em 28/02/2021
A representação da violência presente em jogos é alvo de críticas sobre como podem, de alguma forma, estimular a agressividade e um comportamento violento nos jogadores. É comum encontrar discussões promovidas para desmistificar essa falácia e pesquisadores dedicados a compreender essas relações de forma mais aprofundada sem chegar a conclusões genéricas e até precipitadas. Entretanto, pouco se fala sobre os benefícios dessa representação de violência nos games. O que isso poderia trazer de bom? 
Ao buscar na memória os jogos mais antigos a que tivemos acesso, facilmente lembramos daqueles em que a ação de matar um oponente era uma das mais presentes nas partidas. A forma como se dava variava bastante: com tiros, golpes, até mesmo um simples ato de pular na cabeça do inimigo. Até aquele momento, as representações eram bastante rudimentares e pouco remetiam às violências experienciadas na vida real. Além disso, a virtualidade possibilitava que as ações dentro dos jogos recorressem a elementos fantásticos, o que pouco permitia que as pessoas relacionassem jogos aos casos de violência.




Com a evolução dos gráficos e da jogabilidade, as semelhanças entre as experiências virtuais e as reais se estreitaram. Embora pessoas que não conhecessem videogames demonstrassem receio com as novidades, o argumento de que eles causam comportamentos violentos não foi inocentemente formulado. Sabemos que somos influenciados por tudo que consumimos ao longo de nossas vidas, mas há um amplo debate a respeito das cruzadas incentivadas contra jogos que de alguma forma estão a serviço do desvio dos motivadores reais da violência. É muito mais fácil culpar uma "nova" mídia pelos casos de violência do que atribuir a responsabilidade a quem deveria atentar à saúde mental e econômica da população. Além disso, o argumento favorece aos lobbys armamentistas que delegam a culpa de fatalidades causadas com armas de fogo aos jogos, e não aos problemas do uso inadequado das próprias armas.

Embora especialistas defendam que não há ligação direta entre jogos e comportamentos agressivos, sabemos que determinados conteúdos podem influenciar de alguma forma quem os consome, seja positivamente ou negativamente. Pesquisas a respeito dos supostos efeitos nocivos de determinados jogos, como a que foi publicada em em 2019 pelo periódico The Royal Society, já estão ganhando cada vez mais destaque, mas pouco se ouve falar sobre os benefícios que os jogos com representações de violência podem proporcionar.

Embora a temática seja a mesma, as escolhas estéticas e as possíveis interações possíveis dentro de um jogo acerca de um ato violento apresentam grande potencial transformador. Em alguns casos, a violência continua deslocada da realidade e não serve como veículo de sentimentos negativos direcionados ao oponente. O ato de eliminar um inimigo ou até mesmo outro jogador faz parte estritamente das regras impostas, o que faz com que a violência se torne apenas um recurso de jogabilidade. Podemos observar esse tipo de estratégia em jogos como Hades (Multi), jogo indie do gênero roguelike que ficou extremamente popular no ano de 2020 e trouxe como narrativa central as tentativas de Zagreu de fugir do submundo. Embora você entre em combate com personagens que o protagonista conhece e até nutre alguma relação, o embate se limita apenas ao conflito de que seus adversários estão cumprindo ordens de Hades. Isso fica mais claro ainda quando fora de combate as relações não são necessariamente de inimizade.




Outro jogo que utiliza a violência como parte essencial do avanço dentro do jogo, mas descolado do sentido simbólico, é o MOBA League of Legends (PC). Utilizando de elementos fantásticos e pouco relacionados com as ações violentas do mundo real, exige que o jogador elimine os oponentes usando habilidades especiais. Uma vez eliminado, o adversário pode retornar à partida após esperar alguns segundos. 

Não há nada nesses dois jogos que indique que suas representações de violência poderiam de alguma forma incentivar comportamentos agressivos na vida real. Embora a comunidade do LoL seja conhecida por casos de cyberbullying, isso se dá mais pelo comportamento coletivo da comunidade do que pelo jogo. Infelizmente esse tipo de fenômeno se faz presente na cena gamer e ainda é um desafio que muitos desenvolvedores procuram manejar, mas não se limita ao contexto dos videogames; é possível encontrar comportamentos agressivos de massa em outras situações quando se trata de determinados grupos que compartilham alguma identidade, como em torcidas de futebol.




Há representações de violência que na verdade servem como recurso para marcar o nível de habilidade ou destacar o grau de complexidade de uma jogada. Isso é representado não apenas graficamente, como sangue, fraturas e gemidos, como também com pontuações que são mostradas sutilmente após os golpes deferidos. Jogos como The Witcher 3 (Multi), em que um combo bem executado fornece feedback ao jogador de forma gráfica, e a franquia Mortal Kombat, que tem justamente como marca registrada os golpes violentos surreais, são exemplos famosos de como a violência, por mais explícita que seja, não necessariamente exerce influência no comportamento dos jogadores. Isso também se dá porque, assim como em muitos outros casos, jogos que apelam para esse tipo de recurso geralmente apresentam temáticas fantasiosas, o que estabelece um distanciamento da realidade.




Há jogos que também se utilizam desse recurso de forma lúdica, como em Hungry Shark (Multi), em que um tubarão ataca peixes e banhistas de forma mais agressiva do que o comportamento natural desses animais, apresentando outra situação irreal. O sangue liberado ao atacar os alvos serve apenas como demonstração do poder do tubarão, mas o próprio jogo permite em suas configurações que esse recurso seja desativado.




Em relação a jogos que utilizam como pano de fundo um contexto mais realista, costuma-se ter mais cuidado com a representação da violência, para que elas não abram espaço apenas para a vazão de um comportamento. Embora seja comum a diferença entre os jogos fantasiosos e os realistas em suas expressões gráficas e de jogabilidade, o debates a respeito do impacto dos jogos passou a ser mais comum atualmente. Anos atrás, pouco se falava sobre como determinados elementos poderiam até mesmo reforçar estereótipos. Dessa forma, é importante analisar cada jogo considerando a época em que foi desenvolvido a fim de propor novas abordagens para projetos futuros.

Na franquia Grand Theft Auto, as representações de violência se fazem presente porque a própria temática não permite que essa realidade seja ocultada. Entretanto, as escolhas de interatividade e a forma de expressão da violência foram amplamente analisadas e criticadas ao longo dos anos, o que permitiu avanços nos debates sobre que tipo de recursos podem ser abandonados. Um exemplo disso é como os jogadores podem contratar prostitutas e assassiná-las para pegar o dinheiro de volta. Esse tipo de possibilidade foi criticada por utilizar uma situação que é recorrente na vida real de forma até mesmo cômica no jogo, o que pode trazer mais impactos negativos do que positivos na tentativa de uma representação fiel da realidade. Além disso, quando jogadores agrediam alguém em jogos mais antigos da franquia, as reações chegavam a ser absurdas, como pessoas andando normalmente após tomar um tiro, o que tornava o jogo mais descolado da realidade. Na tentativa de trazer mais realismo, um jogo mais recente estabeleceu reações mais humanas, o que acabou gerando comentários de jogadores que se sentiram desconfortáveis, pois buscavam GTA para se divertir fazendo coisas que não fariam na vida real, mas acabavam sendo confrontadas com o sentimento de culpa. Isso até se refletiu no último jogo da franquia, que acabou retrocedendo nesse aspecto e trouxe novamente reações menos realistas para não comprometer o sentimento de entretenimento.




Apesar dos cuidados em distanciar as expressões de violência nos videogames da realidade, outros jogos buscam justamente o caminho contrário. A tentativa de trazer mais realidade a essas representações têm um papel pedagógico: quanto mais próximo da realidade, mais é possível promover, a partir da imersão, a sensação no jogador de que ele é agente de uma ação e que sofrerá suas consequências. É o caso de jogos como This War of Mine (Multi), em que você precisa manejar recursos de um grupo de civis em um cenário de guerra. Assim como na vida real, a luta pela sobrevivência acaba forçando o jogador a tomar decisões para preservar seu grupo e a si mesmo, podendo optar por ajudar pessoas que encontra, doando remédios e alimentos, ou até mesmo confrontá-las para obter recursos, podendo atacar inclusive um casal de idosos que moram isolados. O grande diferencial desse jogo indie é como as ações do jogo impactam tanto na saúde física quanto emocional dos personagens, podendo provocar depressão ou tendências a vícios caso um deles entre em contato com alguma situação traumatizante.




Outro jogo que recebeu muita atenção por suas expressões extremamente explícitas de violência foi o The Last of Us Part II (PS4). Embora se situe em um cenário distópico, em que pessoas são contaminadas por um fungo e apresentam comportamento semelhante ao de zumbis, o foco da narrativa se dá nos conflitos humanos. O primeiro jogo da franquia teve excelentes avaliações por ter uma história impecável, mas os conflitos com oponentes seguiam padrões conhecidos em jogos, em que os inimigos eram pessoas genéricas e tinham pouca influência sobre os acontecimentos. 

A grande novidade na sequência foi a forma como os oponentes foram extremamente humanizados. O jogo constrói a narrativa de forma fragmentada, em que você joga com a protagonista e também com a antagonista. Isso permite que se perceba que não há apenas um ponto de vista e que cada indivíduo possui seus próprios conflitos, motivações e crenças, o que torna ainda mais difícil causar mal a alguém cuja história e relações lhe são familiares. É quase impossível torcer completamente para qualquer um dos lados, porque ao empatizar com a vida de cada personagem o jogador se vê na posição de servir como agente de suas vontades, infligindo mal a alguém a quem se simpatiza e se compadece. 

Além disso, as pessoas com quem a protagonista cruza durante sua trajetória foram desenvolvidas com características únicas, não só esteticamente, mas com nomes, histórias e relações próprias. Quando alguém é atacado, os companheiros sentem sua falta, demonstram preocupação e ficam aflitos. Em alguns momentos é possível evitar o combate, mas em outros não, o que torna a experiência bastante perturbadora. Embora jogar TLoU Part II possa ser difícil e estressante, as escolhas narrativas e de elaboração das personalidades busca justamente mostrar a violência como algo não recompensador, e é aí que reside todo o potencial dessa obra de arte.




Assim como devemos ter cuidado com o conteúdo que produzimos assumindo a responsabilidade sobre o impacto que podem gerar no mundo, é preciso ir além. Buscar se apropriar dos jogos como ferramentas de transformação e defender o uso de tópicos difíceis a serviço de propostas educacionais para além do contexto acadêmico possibilitará que essa mídia seja encarada com cada vez mais seriedade. Se bem articulados o gameplay e as expressões de violência, os videogames podem trazer uma nova abordagem que não é permitida em outras modalidades do audiovisual. A imersão nesse caso se faz fundamental para que determinados comportamentos sejam experienciados de forma segura, mas não para serem emulados no seu convívio social, e sim refletidos e evitados. Respeitando a faixa etária recomendada e estabelecendo mediações responsáveis, é possível atrelar a violência à narrativa de modo a ensinar aos jogadores sobre o mundo que não queremos.

Já teve alguma experiência marcante relacionada a algum jogo com cenas violentas? Compartilhe com a gente como você se sentiu!

Revisor: José Carlos Alves


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