Análise: Tell Me Why (XBO/PC) é uma história emocionante sobre memórias e laços fraternos

Personagens marcantes e temas pesados são retratados de forma competente neste título de investigação da Dontnod Entertainment.

em 24/01/2021
Tell Me Why é essencialmente uma história narrativa interativa, onde é possível explorar os cenários, interagir com objetos, resolver enigmas e conversar com pessoas para aprender um pouco mais sobre os fatos e descobrir a verdade. Estruturalmente tem elementos que lembram bastante Life is Strange, outro título de sucesso da Dontnod.

O jogo já começa com uma cena extremamente pesada e impactante, deixando claro que a temática abordará assuntos sombrios. Estamos em Delos Crossing, um vilarejo fictício no Alasca, onde acompanhamos a história dos irmãos Tyler e Alyson, separados por dez anos devido a um trágico incidente em suas vidas. Quando os dois voltam para a casa de sua infância, antigas recordações vêm à tona, mas algumas evidências não se encaixam com suas lembranças. Embora a história seja amplamente conhecida na cidadezinha, ainda há muito o que se descobrir sobre as circunstâncias que levaram a esta fatalidade, então ambos partem em busca de respostas sobre o que de fato aconteceu.


Gêmeos não tão idênticos

Os personagens em Tell Me Why, especialmente os protagonistas, são complexos e bem desenvolvidos, fazendo com que o jogador crie interesse e afeição por eles. Tyler é mais arredio, e por ser um homem transgênero frequentemente precisa lidar com a discriminação velada de outras pessoas. Impulsivo e determinado, ele tende a reagir de forma mais agressiva quando confrontado. Em contraste, Alyson é mais comedida e passiva, buscando conciliação familiar mas não lidando bem com sentimentos de culpa ou memórias traumáticas. Ela sofre mais com as lembranças do passado e pode ter crises de ansiedade em situações de estresse. 


Uma grande sacada é que o jogador se alterna no controle de Alyson e Tyler, possibilitando experimentar perspectivas diferentes sobre as situações apresentadas. Os laços entre os irmãos são fortes, tão fortes a ponto de desenvolverem uma ligação sobrenatural que permite que conversem telepaticamente e vejam lembranças do passado, como em um filme tridimensional. Esta mecânica é uma das coisas mais legais do jogo, pois é possível mover a câmera em tempo real para mudar o ângulo em que você assiste a lembrança, como se fosse um filme holográfico. O mais interessante é que estas lembranças não são totalmente confiáveis e algumas vezes cada irmão se lembra da mesma cena de um modo diferente, cabendo ao jogador decidir qual destas perspectivas está correta.

A verdade é um ponto de vista

Os puzzles e minigames são poucos nos dois primeiros capítulos, mas abundantes no último. Alguns são super simples e outros requerem mais raciocínio, observação e investigação. Os únicos que exigem habilidade motora são a pesca no gelo e uma cena em que Alysson precisa controlar a respiração para lidar com um ataque de ansiedade. De modo geral, os desafios são variados em dificuldade e mecânica, o que é bem legal.




O enredo segue sobre trilhos e o andamento da história é bastante linear, só prosseguindo para a próxima cena quando você cumpre uma determinada tarefa, como encontrar um objeto ou ter uma conversa com alguém. As opções de resposta, normalmente duas, são extremamente polarizadas para um lado ou para o outro, sem chance de um meio-termo, como é comum em jogos da Telltale ou da Rockstar. Seria interessante um maior leque de opções para o jogador.

O jogo é dividido em três capítulos; em média, cada capítulo leva três horas para ser finalizado, portanto Tell Me Why rende de nove a dez horas de jogo, sendo ideal para pessoas com pouco tempo disponível. Apesar de ser um período relativamente curto, o jogo oferece uma experiência envolvente e intensa.


Existem três finais, sendo um deles “secreto”, que pode ser acessado dependendo das escolhas que o jogador fez durante a história. Talvez o final que você encontre não seja necessariamente a verdade, porque como vimos, as memórias podem falhar. Como na vida real, nossas impressões sobre o passado podem não corresponder às lembranças de outras pessoas ou mesmo à realidade, o que é muito profundo e interessante, fazendo com que você queira assistir aos outros finais para chegar às suas próprias conclusões.

Direção de arte cinematográfica

Visualmente, Tell Me Why não é excepcional, mas no geral os gráficos são bonitos e bem trabalhados, mostrando uma evolução considerável em relação a Life is Strange. A modelagem de alguns personagens, como Alyson, Tyler e Michael, está muito bem-feita, e alguns objetos e ambientes estão muito bem trabalhados, quase fotorrealisticamente. 

Por outro lado, personagens como Tessa parecem pouco trabalhados e inacabados, assim como os veículos, que parecem ter saído de um jogo de gerações anteriores. A inconsistência na qualidade visual incomoda um pouco, mas não chega a arruinar a experiência de jogo.

Um ponto que chama a atenção é a beleza das paisagens e o excelente trabalho da direção de arte. Os deslumbrantes cenários do Alasca foram retratados magistralmente, com cutscenes cuja beleza tem um nível de qualidade digno de cinema.


A trilha sonora acompanha muito bem essas cenas, fazendo com que você sinta total imersão com a história. A Dontnod contou com a consultoria de uma comissão de artesãos e designers das comunidades nativas do Alasca para representar a cultura tlingit da forma mais autêntica possível. O resultado foi uma Delos Crossing cheia de personalidade.

O jogo oferece várias opções de idiomas, incluindo dublagem em português. Os textos dos livros, cartas e placas foram mantidos em inglês e você pode acionar uma janela de texto auxiliar sempre que quiser. Eu gostei desta opção, pois ela mantém o aspecto original dos objetos sem comprometer a jogabilidade para quem não domina o idioma inglês.
 

A dublagem é bastante competente. Os dubladores brasileiros atuaram com bastante sentimento e foram creditados ao final do jogo. Caso você prefira as vozes originais, elas também estão disponíveis no menu de opções. Minha única reclamação neste ponto é que às vezes o volume da voz fica baixo demais quando o personagem com quem você está falando se afasta, e algumas poucas vezes a fala teve cortes repentinos.

Um jogo impactante

Tell Me Why foi vencedor no The Game Awards 2020 na categoria "Jogo Impactante", que celebra títulos que se destacam por trazer reflexões sobre temas importantes. É um feito impressionante, considerando que o jogo concorreu com Spiritfarer.

Tyler é um dos poucos personagens transgêneros representados nos games e o primeiro a ser protagonista. Ele foi desenvolvido pela Dontnod com consultoria da GLAAD para representar uma pessoa trans com autenticidade. A desenvolvedora merece elogios por abordar de forma séria um assunto sensível numa mídia que frequentemente retrata personagens trans de forma pejorativa.

Também é elogiável que, apesar deste tema ser relevante, a história não gira exclusivamente em torno disso. Tyler é um personagem com várias camadas, de personalidade marcante, e ser um homem trans é apenas mais uma de suas características. A forma como isso foi tratado de maneira natural e sutil é notável.

Este não é o único tema sensível abordado por Tell Me Why. O jogo levanta discussões sobre abuso materno, infidelidade, ataques de ansiedade e sentimentos de culpa. A Dontnod é especializada em fazer jogos que trazem esses assuntos de forma orgânica.


Tell Me Why é um jogo narrativo bonito e interessante, com personagens carismáticos e complexos. É um título muito bem trabalhado em suas concepções artísticas e traz discussões sobre temas bastante sensíveis de forma muito respeitosa e natural. Apesar de pecar por alguns detalhes técnicos pontuais, é um título indicado para aqueles que gostam de jogos de investigação com histórias intensas e experiências imersivas.

Prós

  • Protagonistas bem desenvolvidos, carismáticos e complexos;
  • Temáticas sensíveis pouco abordadas em videogames;
  • Ótima direção de arte;
  • Dublado e localizado em português.

Contras

  • Poderia oferecer mais possibilidades de respostas nos diálogos;
  • Falhas eventuais no som;
  • Algumas falhas pontuais em texturas. 
Tell Me Why - XBO/PC - Nota 8.5
Versões utilizadas para a análise: XBO e PC
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator



é engenheiro eletrônico e tem uma filha fofinha que tenta morder os controles do papai. Curte jogos de luta, corrida e ação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.