Análise: Shady Part of Me (Multi) é um retrato psicológico sobre a fragilidade da mente humana

Na pele de uma menina solitária e sua sombra, ultrapasse desafios emocionais em ambientes 2D e 3D.

em 24/12/2020
Desenvolvido pela Douze-Dixièmes e publicado pela Focus Home Interactive para PC, PlayStation 4, Xbox One e Nintendo Switch, Shady Part of Me é um jogo de plataforma que acompanha uma garotinha solitária e sua sombra por uma jornada poética entre lembranças e sonhos, onde ambas precisam aprender, cooperar e evoluir para ultrapassar desafios emocionais. O título combina jogabilidade 2D e 3D para criar uma experiência sensitiva e agradável, embora sua narrativa curta pudesse ter sido um pouco melhor desenvolvida.

O contraste inconfundível de uma garota e sua sombra

Uma garotinha solitária acorda inesperadamente em uma espécie de instituição psiquiátrica. Ela, no entanto, está assustada, tem medo da luz e do mundo ao seu redor; por isso, foge do local imediatamente, se esconde na escuridão e começa a percorrer ambientes surreais, que parecem ter saído de seus sonhos e de suas lembranças. Pelas paredes e pisos iluminados, uma figura amigável e mais corajosa emerge. Ela é o contraste em forma de sombra daquela mesma garota, como se fosse um amigo imaginário ou uma manifestação psicológica mais otimista em relação aos seus medos e inseguranças.

Conforme você avança com a menina e sua companheira, uma série de frases e palavras  algumas genéricas e clichês  são expostas nos cenários e, eventualmente, linhas de diálogo abstratas de um psicólogo e das próprias protagonistas se sobrepõem, referenciando um tratamento terapêutico em uma narrativa vaga e pouco explícita.

Ao longo de quatro atos, divididos em várias seções, as duas personagens ajudam uma a outra a superar diferentes desafios, incluindo uma quantidade atraente de quebra-cabeças e, aos poucos, vão criando um laço de amizade capaz de absorver e mutilar boa parte da solidão ali existente.

O jogo da Douze-Dixièmes se assemelha muito a Celeste (Multi) por apresentar temas de impacto e extremamente relevantes para os dias atuais, como depressão e ansiedade. Enquanto no jogo da pequena Madeline existe uma sombra de si mesma com medos e inseguranças que tentam impedi-la de chegar ao topo da montanha, em Shady Part of Me a sombra simplesmente tenta, de algum modo, resgatar os sentimentos mais profundos e perdidos da garotinha imponente e solitária, a fim de ajudá-la a prosperar.

Muitos desenvolvedores de jogos de plataforma e de quebra-cabeças já são conhecidos por desenvolver tais narrativas psicológicas e abordar temas complexos sobre a fragilidade da mente humana, porque na verdade esse processo nada mais é que juntar peças de tudo o que sentimos e temos. Retratar temas como saúde mental é sempre importante, e a Douze-Dixièmes criou uma experiência bem bonita, repleta de suavidades e também melancolias. No entanto, há algumas falhas em seu desenvolvimento, pois a narrativa é, na maior parte do tempo, confusa e utiliza fragmentos de frases para tentar criar conexões entre os atos, mas isso nem sempre funciona.

O título junta alguns trechos clichês já usados milhares de vezes em outras histórias como "você não está sozinho" ou "sou bom o suficiente?", o que comprova o tema estabelecido narrativamente, mas fica a impressão de que não há a profundidade necessária para oferecer uma resposta satisfatória sobre a jornada na tela. Shady Part of Me atrai o jogador de alguma forma ou outra, mas poderia ter coragem para explorar os assuntos com mais clareza.

Além disso, levei cerca de cinco horas para finalizar a jornada e senti falta de mais longevidade. O esquema de atos também contribui para o baixo fator de rejogabilidade e embora existam alguns origamis coletáveis espalhados pelos cenários, eles só empolgam o suficiente para retornar uma única vez. Apesar disso, esses defeitos são compensados pelo excelente desenvolvimento do setor jogável e lúdico.

Alternando entre jogabilidade 2D e 3D

O seu objetivo em Shady Part of Me é movimentar as personagens de um ponto A até um ponto B em vários cenários que são gerados proceduralmente, enquanto vai alternando entre uma jogabilidade 2D e 3D para resolver diferentes quebra-cabeças; a garota de carne e osso percorre o escuro de ambientes tridimensionais, enquanto a sombra supera os desafios em paredes bidimensionais.

O revezamento de modos ocorre ao apertar um botão específico. No PlayStation 4, por exemplo, você seleciona o "triângulo" do DualShock 4 para mudar de visão e movimentar a personagem em questão até onde conseguir; em alguns momentos é possível levar ambas individualmente até o final, mas na maior parte do tempo é preciso alternar durante o percurso. Nesse ponto eu particularmente senti falta de um modo cooperativo local integrado, porque faria muito mais sentido e seria bem mais interessante e fluido, apesar do progresso single player ainda funcionar extremamente bem.

Em boa parte da jornada você deverá mover caixas diante da luz para, por exemplo, liberar uma alavanca em forma de sombra, que quando acionada abre caminhos e pontes para ambas as personagens atravessarem. No entanto, também existem alguns obstáculos como plantas espinhosas e nuvens que desaparecem entre esses puzzles, tornando tudo mais desafiador.

Em caso de morte, o jogo fornece um recurso de retrocesso de tempo, então ao invés de voltar ao último checkpoint e refazer tudo novamente, você pode simplesmente retornar a alguns segundos antes do acontecimento. Além dos puzzles que usam e abusam dessa mistura inteligente de modos, o título também apresenta outros desafios inéditos, como o uso da gravidade, que transforma a jogabilidade de várias maneiras inesperadas.

Ao longo de todas essas fases, seja com a sombra ou com a garotinha, você poderá encontrar uma série de 98 origamis que completam um quebra-cabeça no menu inicial. Para cada ato existe um número concreto de peças que, quando juntas, criam uma imagem representativa daquelas seções.




No geral, tanto a dinâmica de gameplay quanto a jogabilidade são excelentes, contando com controles super responsivos e uma câmera consistentemente admirável. Os quebra-cabeças são sólidos e oferecem uma dificuldade satisfatória; ou seja, eles não são extremamente difíceis ou irrealizáveis, mas precisam de atenção e observação constante para sua resolução. Só é uma pena que quase todos utilizam da mesma fórmula e ideia durante a experiência.

Visualmente e sonoramente melancólico

Shady Part of Me é um jogo visualmente lindo, com tons neutros que mesclam o preto e o branco de maneira rara e sutil para encantar quem estiver jogando. Mas diferente de muitos títulos que tratam temas como saúde mental com mais delicadeza, este aqui traz uma sensação mais melancólica e angustiante do início ao fim, juntamente com uma trilha sonora inquietante, mas igualmente extraordinária.

Tudo isso faz os jogadores mergulharem em uma atmosfera surpreendentemente acolhedora, mas muitas vezes difícil de abstrair e totalmente desprotegida de energias emocionais negativas e sombrias. Entretanto, é isso que faz do jogo da Douze-Dixièmes maravilhoso e original, pois ele tem essa capacidade de fazer transparecer sentimentos que muitas vezes tentamos ignorar enquanto pessoas de carne e osso por parecerem "sensações vergonhosas" perante a sociedade.

Sublime, apesar de vago e curto

Shady Part of Me usa e abusa do preto e branco para criar uma poderosa jornada psicológica repleta de melancolia. Ainda que sua narrativa principal soe vaga e confusa, os quebra-cabeças inteligentes e a dinâmica de gameplay adequada já são suficientes para retratar de forma concisa e consciente temas como a depressão e a ansiedade. 

A Douze-Dixièmes juntou todas as suas melhores e mais sofisticadas características para criar uma experiência deslumbrante e recomendada que universaliza nossos sentimentos de maneira brilhante através da linda direção artística e trilha sonora. Infelizmente, é uma pena que seja tão breve e não contenha um alto fator de rejogabilidade.

Prós

  • Linda direção artística;
  • Trilha sonora melancólica;
  • Controles responsivos e fluidos;
  • Dinâmica de gameplay extremamente satisfatória com transições de jogabilidade entre o 2D e o 3D;
  • Quebra-cabeças inteligentes e criativos;
  • Abordagem relevante de temas como a depressão e a ansiedade.

Contras

  • O desenvolvimento da narrativa é um pouco vago e confuso;
  • Curta duração e baixo fator de rejogabilidade;
  • Ausência de um modo cooperativo.
Shady Part of Me  PC/PS4/XBO/Switch  Nota: 8.0
Versão utilizada para análise: PS4

Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator

é entusiasta e apreciador de jogos com conceito artístico minimalista e narrativas de significado profundo. Acredita na potencialidade de cada experiência interativa e tenta extrair delas sentimentos humanos e existenciais. No GameBlast também escreve notícias, análises e especiais; no tempo livre produz roteiros autorais de séries e filmes. Criatividade, imaginação e curiosidade são algumas de suas características marcantes.
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