Por isso, quando a criadora de Transistor (Multi) e Pyre (Multi) anunciou que seu próximo projeto seria um roguelike dungeon crawler baseado na mitologia grega, a expectativa dos fãs do gênero e da temática atingiu níveis bem altos. Assim, após um longo período em acesso antecipado, finalmente podemos experimentar Hades (Multi) em toda a sua glória. Mas será que a espera valeu a pena, ou esta é uma aventura fadada ao esquecimento do submundo? Confira a seguir em nossa análise.
Rogue... o quê?
Caso você nunca tenha ouvido falar do gênero roguelike, aqui vai uma breve explicação, que também julgo ser bem-vinda dado o fato desta ser a primeira obra da Supergiant Games com essa distinção. Embora haja certa variação do termo e de suas aplicações, a origem deste subgênero de RPG remonta ao jogo Rogue, criado em 1980 por Michael Toy, Glenn Wichman e Ken Arnold para o sistema operacional Unix.
Dadas as limitações da época, Rogue era extremamente simplório, mas algumas de suas características inovadoras, como o emprego de permadeath (morte permanente) e geração procedural de níveis, bem como o fato de ser um software de domínio público, acabaram por distingui-lo de outras obras contemporâneas e por alavancar sua popularidade entre os entusiastas.
Então, em 2008, a partir da International Roguelike Development Conference, foi criada a Berlin Interpretation, que definiu que, para um jogo ser considerado roguelike, alguns elementos seriam essenciais, como a criação randômica do ambiente, múltiplas possibilidades de atingir um mesmo objetivo e a já citada morte permanente — caso você falhe (o que é extremamente comum em jogos deste tipo), precisa começar do zero novamente.
Particularmente falando, tenho grande apreço por este gênero. Minha primeira experiência com roguelikes foi Enter The Gungeon (Multi), e títulos como Into The Breach (Multi) e Convoy: A Tactical Roguelike (Multi) sempre me cativaram pelas várias possibilidades oferecidas a cada rodada. Por isso, mal pude esperar para mergulhar na aventura de Hades, e, no fim das contas, minha experiência não poderia ter sido mais positiva.
Bem-vindo ao submundo
Neste jogo, você controlará Zagreu, filho do poderoso deus Hades, o responsável pelo mundo inferior — para onde, segundo a mitologia grega, as almas de todos os seres vão para serem julgadas após sua morte. Apesar de ser o herdeiro legítimo do reino de seu pai, Zagreu deseja escapar (por motivos que ficam mais claros à medida em que se progride no jogo) de seu destino no submundo. O problema é que nenhum ser, deus ou não, jamais conseguiu tal feito.
Ainda assim, sob o desdém de seu pai e de todos os habitantes da casa, o jovem príncipe decide dedicar sua vida a essa missão. Então, nasce o pano de fundo para nossa aventura, na qual Zagreu tentará, inúmeras vezes, rodada após rodada, alcançar o impossível: libertar-se do reino no qual nasceu.
Ao iniciar Hades de fato, tive uma surpresa que considero bem agradável: ao invés de forçar um extenso tutorial de suas mecânicas e recursos, a aventura da Supergiant Games já inicia no meio da ação, no melhor estilo “aprenda jogando”. Assim, ao contrário de introduções obtusas, aqui você aprenderá a controlar Zagreu já na sua primeira tentativa de escapatória, o que acaba por relacionar a sensação de descobrimento do jogador à do personagem, que enfrenta os perigos de Tártaro pela primeira vez.
Já no primeiro contato é possível notar algumas das características que tornam este título especial, como os cenários ilustrados que facilmente se adaptam à visão isométrica, e a presença de um narrador que, assim como em Bastion, confere personalidade e carisma à história de Zagreu. Esses e outros elementos são tão interessantes que, quando a primeira derrota acontece (e ela vai acontecer, mais cedo ou mais tarde), muito provavelmente o jogador, assim como o jovem príncipe, não verá a hora de mais uma tentativa.
Oh... here we go again
Ao falhar pela primeira vez (e nas subsequentes também), o jogador retorna à casa de Hades, onde é possível interagir com diversos personagens da mitologia grega, como Nix, Aquiles e o cão Cérbero. Para além das belas representações de cada um desses ícones (créditos à direção de arte da talentosíssima Jen Zee), cabe mencionar aquele que é, de longe, talvez o ponto mais positivo do título: a Supergiant Games fez desse grande hub um ambiente vivo, reagente ao que acontece nas tentativas de Zagreu.
Isso quer dizer que dependendo da forma como você falhar, por exemplo, Hipnos te cumprimentará de uma forma diferente, ou o próprio Hades tecerá comentários sarcásticos. Similarmente, algum personagem poderá te entregar um item, ou um chefe derrotado poderá aparecer na área de lazer da casa. Esses acontecimentos, e as interações que derivam deles, nunca ocorrem fora de contexto, e a maneira como a desenvolvedora capturou a essência de cada um dos seres mitológicos (destaque para a dublagem, em inglês) é muito positiva.
Com tempo de jogo, é possível ver que esses e outros recursos dos quais falaremos em breve existem para minar a sensação de repetição que muitas vezes assola o gênero roguelike, mesmo em suas obras mais populares. Infelizmente, é comum muitos jogadores desanimarem desse estilo por sentirem que não estão realizando progresso, ou simplesmente por não serem incentivados a jogar novamente. Mas, quando os próprios personagens de Hades fazem menção aos fracassos de maneira natural, a impressão que fica é que mesmo os tropeços fazem parte de uma narrativa maior, protagonizada por Zagreu e na qual o jogador está inserido.
Como exemplo desse recurso, em minhas partidas iniciais, tive muitos problemas com a primeira chefe, a carismática Megaera. Em cada um dos confrontos, houve uma menção diferente à minha persistência e meus fracassos; o próprio príncipe citou em uma ocasião antes do combate que “talvez fosse agora”. No fim, esta realmente acabou sendo minha primeira vitória sobre a Meg, o que tornou toda a situação ainda mais especial, mesmo eu fracassando posteriormente em outro chefe (ah, Asterius!).
A arte da guerra
Por mais que a narrativa e as interações sejam destaque em Hades, de quase nada estas adiantariam no fim se as partes de exploração e principalmente de combate do título não fornecessem a liga necessária, com momentos de qualidade entre esses acontecimentos.
Felizmente, aqui estão pontos nos quais a Supergiant Games também está de parabéns. O combate em Hades ocorre em tempo real, de modo que reflexos rápidos e percepção aguçada são extremamente bem-vindos, especialmente em pontos mais avançados e contra inimigos mais durões. Não é raro os confrontos se tornarem espetáculos velozes, onde será preciso atenção e coordenação entre esquiva e ataque para eliminar as ameaças e poder prosseguir com o mínimo de dano possível. Há até um pequeno slowdown quando o último adversário de cada espaço é derrotado, como que em um suspiro de alívio.
Ainda sobre o combate, Zagreu inicia sua aventura com a Espada Estígia, mas é possível desbloquear novos artefatos com Chaves Ctônicas, adquiridas naturalmente ao longo do jogo. Cada uma das armas disponíveis para aquisição possibilita essencialmente novas formas de jogar (me adaptei muito bem com o Escudo do Caos), trazendo consigo versões particulares do ataque especial e do ataque padrão além do rápido, que é realizado junto com a esquiva. O próprio jogo incentiva o jogador a testar novas alternativas, não raro fornecendo um bônus de escuridão com uma determinada arma para a próxima tentativa.
Já a progressão ocorre por meio de salas, onde é preciso vencer todos os obstáculos em um espaço para poder prosseguir, avançando por regiões mitológicas como os Campos Elísios e os Campos de Asfódelos. Como é de praxe do gênero, as áreas e seus conteúdos serão geradas aleatoriamente, garantindo que nenhuma partida seja exatamente igual à outra. Frequentemente, também será possível ao jogador escolher qual caminho seguir, com pequenas indicações visuais nas portas fornecendo uma prévia do que lhe aguarda, como uma batalha contra subchefes ou um encontro com o mercador Caronte, comerciante de benefícios temporários (ou não).
Nessa geração contínua de níveis, também mora uma das melhores qualidades de Hades. Ao iniciar e prosseguir em sua jornada, o jovem Zagreu frequentemente encontrará mensagens dos deuses do Olimpo, e estas concederão, além da possibilidade de interação com personalidades como Zeus e Afrodite, bênçãos e bônus ao príncipe, como forma de auxiliá-lo em sua jornada.
Assim, é possível que em uma partida você obtenha a capacidade de gerar raios com seus ataques, graças à ajuda de Zeus, e em outra, você possa causar lentidão aos seus inimigos com seus tiros, devido ao vinho de Dionísio. Com um pouco de sorte e uma ou outra escolha correta em bifurcações, é possível montar combinações bem interessantes e úteis, ativando um sistema de risco e recompensa e fazendo com que, novamente, nenhuma partida seja igual à outra.
Além da particularidade de cada gameplay e da diversão proporcionada pelo combate, há outro (mais um!) fator considerável aqui: em Hades, todas as tentativas, mesmo as fracassadas, acabam por valer a pena, devido à vivacidade de seu universo e um número robusto de colecionáveis. Além das chaves, é possível juntar néctar, joias e escuridão em cada partida, por exemplo, e cada um destes elementos possui um uso na casa de Hades, seja o fortalecimento de Zagreu ou o desbloqueio de novas interações e decorações.
Fica claro que a Supergiant Games quis recompensar os jogadores por seu esforço, fazendo com que, mesmo em pequenas doses, haja certo progresso. O resultado é um título viciante e acessível, e que mesmo depois dos créditos finais continua rendendo novas possibilidades. Jogadores que queiram focar na história, por sua vez, podem usar o recurso do God Mode, que pode ser ativado e desativado livremente a qualquer momento. Com esta ferramenta, as coisas vão progressivamente ficar mais fáceis, mas não a ponto de minar completamente o desafio.
O fim da jornada
Hades é um título realmente especial. Conforme se joga, a impressão que fica é que a Supergiant Games estudou o gênero e buscou entregar o melhor roguelike já feito, minando justamente os pontos fracos característicos do estilo ao mesmo tempo em que fornece uma experiência singular.
Ao terminar esta análise, fiquei pensando em que pontos negativos encontrei em minha jornada, e honestamente não consigo lembrar de nada que seja significativo. Seu elenco de personagens é carismático e faz jus à matéria-prima; sua direção de arte, com animações características e trilha sonora vibrante, é primorosa; o casting de dubladores é impecável… e tudo isso está envolto em um pacote completo, com um sistema de combate preciso e divertido, e uma proposta de progressão que respeita e recompensa o jogador.
Se você é fã do gênero, aqui está uma obra que precisa ser jogada o quanto antes, e que certamente influenciará as produções futuras do estilo. Mesmo que não seja o caso, há grandes chances de passar a ser após a aventura de Zagreu. Hades é um dos meus jogos do ano e não temo em afirmar que já merece ser mencionado como um dos melhores desta geração. Indispensável.
Prós
- História envolvente, onde até mesmo o fracasso torna-se parte da narrativa;
- Elenco de personagens carismático, com destaque para as interações;
- Sistema de combate ágil e divertido;
- O grande número de colecionáveis ajuda a amenizar o impacto das derrotas;
- Incentivo ao progresso do jogador;
- O God Mode promove acessibilidade a jogadores que não queiram tanto desafio;
- Direção de arte destacada;
- Trilha sonora envolvente e dublagem fantástica;
- Otimização;
- Recurso de cross-save com Nintendo Switch;
Contras
- Não há dublagem em português (somente legendas).
Hades - PC/Switch - Nota: 10.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital gentilmente cedida pela Supergiant Games
Análise produzida com cópia digital gentilmente cedida pela Supergiant Games