Já mencionei isso em outro artigo desta coluna: a série Castlevania tem dois marcos divisores: Symphony of the Night e Lords of Shadow. Ao entregar a franquia para os espanhóis da MercurySteam, a Konami finalmente acerta a mão com um jogo da franquia em três dimensões, além de brindar os jogadores com um enredo fora de série — em todos os sentidos.
Castlevania: Lords of Shadow foi lançado para a geração passada, mantendo-se no PS3, X360 e PC. No entanto, deixa um ar de saudades e expectativas sobre a possibilidade em ser resgatado nas novas gerações.
Um Castlevania em suas origens — de novo
Algo que sempre me incomodou na série Castlevania foi a ausência das razões pelas quais o clã Belmont é o predestinado a derrotar Dracula ao longo dos séculos. Esperar um enredo aprofundado do jogo original de 1986 (ou da maioria dos títulos lançados até a geração 16-bits) é um tanto pretensioso. À época, dava-se ênfase não apenas na jogabilidade como também na dificuldade, a fim de que o consumidor sentisse que sua aquisição valeu a pena, promovendo um período razoável de jogatina.Vinho tinto entre diálogos? Castlevania era pura pancadaria. |
Ainda assim, a fatídica conexão Belmont-Dracula ficou de lado até a chegada de Lament of Innocence que, além de trazer uma experiência razoável em três dimensões, se preocupou em lidar com o conflito entre a família de caçadores de vampiros com o sugador de sangue mor. Não é que o enredo de Lament of Innocence seja ruim, mas a proposta de Lords of Shadow revolucionou ao originar o arqui-inimigo da família Belmont em seu seio — falarei disso adiante.
Lamment of Innocence foi um dos primeiros acertos do Castlevania 3D — assim como no enredo. |
Há um que importante nisso tudo: ao contrário de Lament of Innocence, que pertence à cronologia oficial da franquia Castlevania, Lords of Shadow nada mais é senão uma história paralela, a despeito de ser um reboot. Em outras palavras, os eventos que ocorrem neste não possuem qualquer conexão com a “história tradicional”. Ainda assim, é um grande jogo e merece pertencer à série.
Homens de Deus — até que o Diabo lhes abra os olhos
Em um mundo devastado diante do colapso na relação entre o Céu e a Terra, Gabriel Belmont, protagonista da história, tem que lidar com a alma de sua esposa, Marie, brutalmente assassinada por criaturas das trevas. Não apenas a alma de Marie, como a de todos os outros falecidos; não podem descansar, em razão da presença do poder dos Senhores das Sombras no espaço terreno.Gabriel integra a Irmandade da Luz, criada por Carmilla, Cornell e Zobek para proteger os inocentes dos ataques das criaturas das trevas. Outrora membros devotos de Deus, dois dos criadores se tornaram tão poderosos que ascenderam aos Céus, enquanto sua força negativa permaneceu na Terra, tornando-se, então, os Senhores das Trevas.
Após um encontro com a alma de Marie, Gabriel se aproxima de Zobek, que transmite os segredos envolvendo os Senhores das Trevas, além de um poderoso artefato que foi dividido em três partes — a Máscara de Deus.
Gabriel Belmont, homo sanctus. |
Segundo Zobek, uma profecia dizia que um guerreiro de coração puro poderia unir os fragmentos da Máscara, sendo capaz de reunir o poder dos três Senhores e trazer os mortos de volta à vida. Gabriel se encarrega da missão, com o intuito de colocar um fim no mal que assola o mundo e, ainda, trazer sua amada de volta do mundo dos mortos.
O lado sombrio de Carmilla se tornou a Rainha Negra dos Vampiros, enquanto a de Cornell se tornou o Lorde das Trevas dos Licantropos. O terceiro Senhor das Trevas, referente aos Necromantes, se revelaria no final do jogo como o próprio Zobek. Como um dos Lordes responsáveis por trazer as mazelas pelo mundo, o antagonista revela ter se dirigido ao Inferno após um acordo firmado com os demais Senhores. De mesmo modo, com o declínio na relação entre Céu e Terra, Zobek tinha consigo que sua contraparte boa enviaria a Irmandade, na pessoa de Gabriel, a fim de derrotar o mal iminente.
De posse de conhecimentos místicos oriundos do próprio Satan, Zobek manipulou Gabriel utilizando a Máscara do Diabo, fazendo com que esse assassinasse a própria esposa — quando a ideia que tinha consigo é a de que a mesma fora morta por criaturas das trevas, ocultando-lhe a verdade. Com os poderes do guerreiro, Zobek poderia tomar posse da Máscara de Deus, imaginando que manipulava de todo Gabriel. No entanto, foi o próprio Satan quem elaborou o plano para que o artefato caísse sob seu poder.
Satan. |
Diante do poder amplificado e das habilidades de combate do guerreiro, Satan convida Gabriel para que tome um lugar ao seu lado. O soldado recusa, ciente de que sua sede por poder (diante da chance de ressuscitar Marie) foi a causadora de sua queda. Satan usa a Máscara de Deus e, após um combate brutal, Gabriel sai vitorioso após o auxílio da alma de sua esposa e de diversas outras. No entanto, descobre que a Máscara não possui o poder de trazer os mortos à vida, sendo o artefato recolhido por Marie e levado aos Céus, restando o guerreiro amargurado e arrependido de seus atos.
“I am the Dragon” — os DLCs Reverie e Resurrection
As origens de Gabriel na condição de “Dracul” decorrem do confronto com O Esquecido, uma poderosa entidade cuja origem é desconhecida. O que se sabe, no entanto, é que seu poder é superior ao de Satan e nem mesmo os fundadores da Irmandade da Luz unidos foram capazes de derrotá-lo, limitando-se a aprisioná-lo em sua dimensão de origem, cujo acesso se dá no Castelo Bernhard.A despeito dos problemas decorrentes da presença dos Senhores das Trevas na Terra, a manutenção da Máscara de Deus nesse plano mantinha aprisionada uma das entidades mais poderosas que já pisaram neste plano. Sem o artefato, a entidade estaria livre para voltar seu ódio contra os humanos.
Diante dessa ameaça, Laura (uma das vampiras que atuavam sob o comando de Carmilla) convoca Gabriel para que ele possa enfrentar O Esquecido no Castelo Bernhard. Mesmo com as ameaças e o poderio da entidade, o outrora membro da Irmandade da Luz prevalece em combate pelas habilidades que adquiriu durante sua jornada em busca da Máscara de Deus, assim como pelos poderes das trevas, para os quais se rendeu, além de absorver os poderes do próprio O Esquecido, enquanto este enviava sua própria energia mística para destravar o selo que o aprisionava, enfraquecido pela ausência da Máscara de Deus.
Completamente entregue ao mal que o corrói, somado à culpa em ter assassinado a mulher amada, Gabriel finalmente se torna a criatura cujos descendentes estariam destinados a enfrentar por toda a eternidade. Não à toa, destrói a Vampire Killer (o único objeto que poderia confrontar seu poder) e deixa seus pedaços no plano onde O Esquecido foi derrotado.
God of Shadow
Um dos primeiros pontos que se destacaram quando Lords of Shadow foi apresentado — e também nos primeiros gameplays — foi a similaridade de sua jogabilidade com God of War. A Konami tentava emplacar um jogo Castlevania em 3D desde a geração 32/64-bits e não à toa o Nintendo 64 foi o console escolhido para a empreitada. Super Mario 64 tinha mostrado ao mundo que jogos em três dimensões (mesmo os oriundos de universos em 2D) podiam possuir boa dinâmica e jogabilidade.Concebido apenas como Castlevania, o jogo teve uma recepção morna pela comunidade, sendo logo acompanhado por Legacy of Darkness, que obteve notas razoavelmente menores, já que muitos dos problemas na jogabilidade e na câmera se mantiveram, além do fraco enredo. É compreensível que ambos, por recomendação de Igarashi, tenham sido removidos do cânone da série.
Castlevania 64 foi.. peculiar. |
Já na era 128-bits, junto ao PS2, Lament of Innocence e Curse of Darkness deram amostras de melhorias na jogabilidade, sem ignorar o aspecto RPG inserido em Symphony of the Night. A despeito de serem títulos que pegaram entre os fãs da série, faltava um elemento que estava bem diante dos olhos da Konami: a dinamicidade em um trabalho desenvolvido pelo Santa Monica Studio chamado God of War.
É claro que é mera especulação qualquer inspiração de Lords of Shadow sobre a jogabilidade de God of War, em especial de um estúdio como a MercurySteam, que possuía em seu catálogo três jogos questionáveis — um deles mobile.
Curse of Darkness deu um passo além de Lament of Innocence |
Talvez a maior inspiração que os espanhóis tiveram ao assumir a empreitada foi a de que seria possível executá-lo de modo apropriado, tornando um jogo da franquia em 3D não apenas possível e acessível como dinâmico e com um grande enredo, sem perder os elementos clássicos com inequívocas homenagens a nomes e personagens da série.
Como os leitores perceberam, Carmila e Cornell, dois nomes com vinculações características da série (vampiros e licantropos) estão presentes. E, dada a natureza e conduta de Zobek, em especial por sua atuação em Lords of Shadow 2, pode-se atribuir ao mesmo o papel clássico da Morte.
O Espelho do Destino que tudo e todos conecta
Mirror of Fate já foi mencionado nesta coluna, logo, traçarei brevemente os aspectos mais interessantes do mesmo. Contada a origem de Dracula e sua real conexão com os Belmont em Lords of Shadow (considerando inclusive os DLCs), Mirror of Fate foi ainda mais incisivo por oferecer não apenas uma prequela (ainda que curtíssima) da condição de Gabriel quando este ainda integrava a Irmandade da Luz, como também das origem de Alucard e a maldição que ronda a família Belmont.Uma batalha familiar: Alucard contra Dracula. |
Originalmente lançado para 3DS, Mirror of Fate poderia facilmente ser o ponto final da saga Lords of Shadow, trazendo quatro personagens, um enredo fantástico e a inserção dos puzzles como no primeiro jogo. Com uma jogabilidade que se assemelha mais aos Castlevania originais — jogabilidade em 2.5D, lineariedade e pouquíssimos itens de apoio, em que a vitória dependerá mais das habilidades do jogador do que de inúmeros upgrades e equipamentos —, Mirror of Fate é obrigatório para aqueles que gostaram do formato de Lords of Shadow.
Lá se vão dez anos: Ainda vale a pena?
É assustador perceber que Lords of Shadow completará dez anos no próximo dia 5 de outubro — em outras palavras, o tempo voa. Dizer que os gráficos envelheceram bem para o jogo é simplesmente insultá-lo, afinal, falamos de um produto lançado originalmente para PS3 e X360.Os trabalhos de dublagem de Patrick Stewart (como Zobek), Robert Carlyle (Gabriel Belmont), Sally Knyvette (Carmilla) e Jason Isaacs (Satan) estão muito bons e incrementam muito a experiência. A trilha sonora, apesar de presente durante todo o jogo, só se destaca em momentos-chave, ao contrário do visto nos demais títulos da franquia.
Em outras palavras, se o leitor é um fã da franquia Castlevania, não há razões para deixar Lords of Shadow de lado apenas por não ser um título “típico”. Se Lament of Innocence e Curse of Darkness repousaram em seus consoles, Lords merece uma chance. Por outro lado, caso apenas busque um bom jogo de ação com ótimo enredo, a diversão será garantida. E que venham mais dez anos (preferencialmente com novos jogos)!
Revisão: José Carlos Alves