Motion capture: conhecendo o trabalho por trás da animação

O GameBlast traz ao seus leitores informações sobre técnica que é muito utilizada no cinema e videogames.

em 31/08/2020
Acredito que muitos de nós já passamos por essa situação: você vai ver um filme ou jogar e se depara com um personagem que tem uma atuação tão incrível que por um momento a gente esquece que está encarando uma história fictícia de tão boa que é a interpretação.



E é surpreendente quando nos damos conta que o personagem que está na tela é feito em computação gráfica ou animação, ou seja, não é alguém de verdade. Mas será que não é alguém de verdade que está ali interpretando?

Um pouco por trás das cenas

Atualmente, atrizes e atores recebem prêmios por personagens que são feitos digitalmente. Oras, o próprio The Game Awards tem uma categoria para melhor atuação! Quem afinal é essa galera que tá no meu jogo, mas não está no meu jogo?
Exceto se o seu jogo for Death Stranding. Aí tem todo o elenco de Hollywood mesmo.


Para trazer vida a personagens, artistas e tecnologia se juntaram em um processo chamado motion capture, que em português significa "captura de movimentos". Esse tipo de tecnologia também tem de abreviação que será usado durante este texto: mocap (de motion capture).

Antes de entendermos o processo de captura de movimentos, vamos conhecer as raízes dele. Ou melhor dizendo, o avô desse processo: a rotoscopia. Essa técnica envolve desenhar um contorno em cima de fotos de forma a facilitar a animação. Ela existe desde 1915 (!) e foi muito usada pelo cinema, principalmente por estúdios de animação, como Walt Disney Animation Studios.

E se tem uma coisa que os jogos gostam de fazer é copiar filmes (né, Kojima?). Esse processo foi usado na história dos videogames, começando pelo primeiro Prince of Persia.

 

Mas Prince of Persia é apenas um dos precursores que usaram essa técnica. A cereja do bolo da rotoscopia nos videogames é o grande, o único, o fabuloso e sangrento: MORTAL KOMBAT (admita, leitor, você leu como o grito da música tema do filme do mesmo nome).

A série MK nasceu em 1992, no ápice dos jogos de luta em arcades, máquinas em que se colocava uma ficha para jogar e que ficavam expostas ao público. No Brasil, tivemos muitas delas em padarias, bares e centros de entretenimento dos shoppings.

E Mortal Kombat foi um sucesso estrondoso. A franquia na década de 90 vendeu milhões de unidades. O que esse jogo fez na época não tá no gibi. Tanto que ele é considerado um dos motivos de terem criado o ESRB, órgão americano que faz a classificação indicativa dos videogames.

Mas por que Mortal Kombat fez esse estardalhaço todo? Oras, meus e minhas colegas. era por causa dos gráficos!
Nem a GeForce RTX faz gráficos tão realistas quanto MK naquela época.

Era óbvio que eram pessoas ali. A NetherRealm Studios trouxe para o cenário dos videogames pessoas atuando e fazendo o que Mortal Kombat sabe fazer de melhor: violência, sangue e gritaria.

 E a forma que eles fizeram foi realmente filmar e tirar fotos de atores atuando para depois colocar eles no jogo, ou seja, uma aplicação da rotoscopia. Tem até vídeos no YouTube sobre como foi feito.

Passou-se um tempo, mais jogos usando técnicas semelhantes ou totalmente filmados (como Night Trap) apareceram no cenário, e finalmente Virtua Fighter 2 estreou no mundo dos games com a captura de movimentos como conhecemos hoje.

Captura de movimento e o mundo dos videogames

Yu Suzuki, criador de Virtua Fighter 2, é um cara bem destemido. Naquela época (1994), a tecnologia de captura de movimentos era exclusividade das forças armadas americanas e do sistema de saúde. E lá foi ele, na cara e na coragem, pedir aos militares para ter acesso e poder usar a técnica em um jogo.

O bom dessa história é que deu certo. Virtua Fighter 2 foi um sucesso e a partir daí o casamento entre videogames e captura de movimento ficou que nem conto de fadas: viveram felizes para sempre.


Vale a pena também fazer uma menção honrosa ao jogo Rise of Robots, do Mega Drive. Lançado no mesmo ano que o VF2, ele também utilizou motion capture. Entretanto, não foi bem recebido pela crítica por ser “fácil demais”. Além disso, o jogo não tem o efeito “fluido” que Virtua Fighter 2 tinha (bom, mesmo sendo bem poligonal, tinha alguma fluidez).

Agora que já sabemos um pouco do “quando” do motion capture, podemos tratar do “quê”. O que significa exatamente essa técnica, em que se filma o movimento de uma pessoa de forma a transpô-la para o meio digital?
Uma imagem vale mais que mil palavras, né? Então fica aí a ilustração para o que eu quis dizer.

Bom, há várias maneiras e estilos de motion capture. Mas a que a gente pensa em um sentido mais genérico é aquela em que há pessoas vestidas numa roupa de ginástica de um futuro alternativo com um gosto para moda bem duvidoso, cheio de bolas pelo corpo e câmeras presas, em um estúdio amplo, aberto e bem iluminado.

Eu não sou desenvolvedora, muito menos animadora – inclusive, deixo o espaço aberto para quem quiser dar mais detalhes sobre o porquê de ser assim nos comentários –, mas basicamente as bolas servem como referência para os desenvolvedores. Com isso, é feito o modelo 3D (em alguns casos, o modelo é renderizado quase que ao mesmo tempo em que é gravado).

Com as câmeras, a equipe pode capturar a atuação e a expressão dos atores e a partir dela fazer um rascunho. Feito isso, começa o processo de lapidar o que falta, e dar aquele toque para transformar a cena acima nisto aqui embaixo:
Isso sim eu chamo de extreme makeover.

Para dizer o que essa técnica exige, pedi ajuda ao meu amigo, o desenvolvedor Felipe Modesto, que trabalha no mercado de jogos em um estúdio em Montréal como Technical Lead:
 “O motion capture permite pegar algumas nuances, que são difíceis de serem replicadas com animação feita à mão, e torná-las mais orgânicas e realísticas. Mas mocap não é algo trivial, pois, além dos custos para fazer a captura, ainda é necessário tempo para limpar as animações capturadas, já que o mocap gera muitos keyframes, o que torna as animações muitíssimo detalhadas e com várias imperfeições e outros ruídos.
Em relação ao custo do equipamento, ele pode ser caro de alugar, frequentemente inacessível e o resultado final também depende da qualidade da atuação. Inclusive, dependendo do contexto, algumas capturas são feitas só do corpo ou só do rosto, para agilizar o processo. Em suma, motion capture não é necessariamente nem mais conveniente e nem mais barato, mas pode fazer mais sentido para um projeto, dependendo do que a equipe de arte quer apresentar. Jogos que prezam pelo realismo, como os de aventura e de esporte, são exemplos onde frequentemente se usa mocap.” 

Então é isso, só pegar uns atores, colocar em umas roupas, ligar umas câmeras e tá tudo certo? Bom, mais ou menos. Nem sempre essa tecnologia é algo acessível para todos, por uma questão de orçamento e tecnologia. Além disso, há por exemplo atores e atrizes que não conseguem atuar nesse cenário de captura de movimentos.


Um dos motivos de nem todos conseguirem se adaptar é que, para fazer capturas de movimentos para videogames, é preciso se atentar aos mínimos detalhes. Por exemplo: o ator tem que fazer o andar ser igual em passos e forma, para que gere um loop, ou seja, a animação tem início e fim tão perfeitos que não se sabe quando iniciaram e quando terminaram.
Essa é a imagem da capa da página do ator Richard Dorton em que há os dizeres: “Se você já jogou um videogame, provavelmente você já me matou” de tanto que esse cara atua no cenário.

Tanto que nessa indústria de jogos há um cara que é considerado O Mocapman, ou seja, o homem do mocap: Richard Dorton. Ele recebeu essa alcunha por ser alguém que atua nessa indústria há tanto tempo que é considerado um especialista do assunto. Ele já exerceu as funções de ator, diretor, dublê e até consultor de atuação. Atualmente, ele ensina pessoas a atuarem para mocap voltado para videogames.

E quem são as pessoas que atuam nesse cenário? Vamos conhecê-las um pouco no tópico abaixo.

Quem traz a animação

 É claro que há muita gente atuando no mundo dos videogames, mais ainda considerando todo o processo de captura de movimentos. Mas acho que podemos conhecer umas pérolas que têm uma importância maior nesse cenário.

Troy Baker (ator)

Ele ficou conhecido no cenário por dar vida ao nosso personagem controverso favorito: Joel, de The Last of Us. Mas esse monstro também é responsável por: Higgs (Death Stranding), Ocelot (Metal Gear Solid V: The Phantom Pain), Samuel Drake (Uncharted 4: A Thief’s End e Uncharted: The Lost Legacy) e Magni (God of War). Com um currículo desse jeito, não há erro.

Baker começou como dublador de alguns desenhos famosos até, como One Piece e Fullmetal Alchemist. Depois disso, ainda em voice acting, ele foi parar no jogo BioShock Infinite, com o personagem Booker DeWitt.


Até que chegou o grande momento e Troy Baker fez a audição para Joel e acabou dando vida a um dos personagens mais carismáticos na história dos jogos. Tanto que até hoje há discussão sobre suas atitudes e ações em The Last of Us - e as discussões retomaram fôlego com o lançamento da sequência. (aproveito o gancho para convidar o leitor à leitura da nossa análise sobre o “real problema” da sequência)

E pensar que Neil Druckmann quase não o aceitou por ser “bonitão e novinho”. Hoje, Baker é uma referência, principalmente na área de atuação da captura de movimentos.

Mas, assim como nos filmes, os atores de captura de movimentos também têm dublês!

Dublês

Atuação é uma coisa, agora fazer aqueles golpes maravilhosos que fazem a gente ficar extasiado? Isso é obra dos dublês!

Eles também precisam fazer treinamentos e atuar com equipamentos tão esdrúxulos quanto a roupa que eles usam. E como foi dito anteriormente, os movimentos precisam ser calculados e repetíveis. Então, é comum dublês ficarem fazendo cenas de movimento por horas a fio.



Todo pulo, toda cambalhota, todo movimento que a gente faz nos videogames com um aperto de um botão é graças ao trabalho de profissionais que ficaram fazendo esse movimento repetidas vezes para chegar à perfeição. E no caso de dublês, os movimentos de ação.

MELINA JUERGENS (editora de vídeo / atriz)

Eu sei que falei o tempo todo como não é fácil a interpretação do mocap, que há procedimentos e maneirismos que precisam ser observados e estudados, mas e quando sua editora de vídeo faz um teste de câmera para seu estúdio e você a acha perfeita para o papel?

Isso aconteceu com Melina Juergens, a profissional do estúdio de Hellblade: Senua’s Sacrifice.

Melina acabou fazendo testes para Senua só para a equipe ter uma noção da personagem. Mas os diretores do jogo gostaram tanto de como ela ficou, que perguntaram se ela não queria ser a atriz da personagem. Ela aceitou e sua atuação como guerreira nórdica foi espetacular.

A escolha foi tão certa e a interpretação tão brilhante que Melina acabou ganhando o prêmio de melhor performance no BAFTA de 2018.

A falta de orçamento que o estúdio tinha na época fez com que acabassem usando Melina como atriz. Uma decisão arriscada, mas é como dizem: quanto mais escassos os recursos, mais a criatividade aflora.

Barreiras impostas aos estúdios para a utilização da técnica

O processo de captura de movimento nos estúdios de jogos AAA trouxe comodidade aos desenvolvedores, e isso acabou resultando em títulos mais polidos e com menos problemas técnicos durante o desenvolvimento. No entanto, enquanto a Naughty Dog e a Kojima Productions têm investimentos de grandes corporações como a Sony – o que facilita o acesso a essas técnicas sofisticadas –, estúdios independentes ainda estão à mercê de limitações e precisam desenvolver um jogo totalmente do zero.

Uma das maiores barreiras para que estúdios de jogos indies não tenham acesso a essa técnica é o custo. Trajes e luvas inteligentes com sensores faciais e corporais são acessórios extremamente caros, isso porque, assim como qualquer outra tecnologia presente no mercado, o desenvolvimento destes equipamentos requer peças importadas, por exemplo, elevando o custo do produto. Além disso, muitos deles são produzidos em território asiático, o que acarreta o aumento de preços por causa da mão de obra.

Consultei os preços de duas fabricantes de acessórios para captura de movimento, a Rokoko e a OptiTrack; enquanto a primeira oferece produtos a empresas como Sony, Nvidia e 2K Games, a segunda vende para Google, Activision, NASA e outras. A Rokoko possui uma variedade de produtos individuais, mas o equipamento completo está na faixa dos 2000 dólares, o que daria mais de dez mil reais se fosse adquirido. Isso sem contar outros equipamentos como de iluminação e a própria estrutura para realizar o processo. A OptiTrack, por sua vez, também oferece uma variedade de produtos e também ultrapassa a marca de 2000 dólares.

Outra barreira enfrentada pelos estúdios é a estrutura. Para que um processo de captura de movimento seja realizado de maneira adequada, é necessário um local grande, bem fechado e iluminado. A maioria dos estúdios independentes não tem um local assim à disposição, muito menos orçamento para adquirir equipamentos de iluminação como ferramentas de calibração, suportes, tripés e sensores que devem ser acoplados no teto e nas paredes. A maioria dos estúdios de jogos AAA tem sua própria estrutura e, se não tem, empresas-mãe ou apadrinhadas disponibilizam locais para a realização do processo.

É claro que existem muitos outros fatores que impedem a utilização desta técnica em estúdios menores, mas, com a modernização e a chegada da indústria 4.0, o que antes não era possível pode acabar sendo viável em pouco tempo.

 Estúdios de games nacionais utilizam captura de movimento?

A indústria brasileira de desenvolvimento de jogos ainda utiliza a animação por keyframe para animar seus personagens, mas, com a evolução tecnológica, a utilização mais intensa da captura de movimento deve vir de forma mais natural. De acordo com um levantamento da PUC-RS em 2015, existem sistemas robustos de captura de movimento em operação no país, como o da produtora RPM Digital, de São Paulo, da TV Globo e de outras emissoras de televisão. Laboratórios de pesquisa de algumas universidades também possuem os equipamentos à disposição, mas são poucos.

Algumas empresas nacionais, bem como internacionais, e pesquisadores criaram alguns modelos de acessórios de captura de movimento de baixo custo. É o caso de um grupo de estudantes que publicaram um artigo em 2015 em que apresentaram um modelo de desenvolvimento de captura de movimento barato, leve, portátil e didático que recebe auxílio do Microsoft Kinect, que utiliza projeções infravermelhas para adquirir dados tridimensionais e redes neurais para reconhecer corpos humanos.


A tecnologia de captura de movimento deve se tornar muito mais popular na indústria 4.0, principalmente no Brasil. Soluções de baixo custo e até modelo aprimorados dos que já existem trarão uma tendência sem retorno, fornecendo mais realismo a personagens de jogos e diminuindo drasticamente o tempo de trabalho dos profissionais.

E o futuro?

O motion capture é como jogos por assinatura: em constante atualização, adaptação e inovação. Hoje, é um recurso caro que nem todos têm acesso. Mas já há demonstrações de que isso vem mudando, como o caso do Hellblade: Senua’s Sacrifice.

E a própria Unreal Engine já demonstrou como fazer isso funcionar praticamente ao vivo. Vamos continuar acompanhando esse cenário e usufruir em nossos jogos o que essa técnica tem a oferecer.

E você, leitor? Já teve alguma experiência com captura de movimentos? Ou outra técnica mencionada aqui? Compartilhe conosco!

Colaboração: Tiago Herrmann
Revisão: Ives Boitano

Jogadora que gosta de dançar nas horas vagas. Ama gatos, mesmo sendo alérgica a eles. Acha que xinga muito no Twitter, mas só saber da RT de bichinhos. Nas redes sociais é só buscar por @vampirap.
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