The Last of Us Part II (PS4): a desolação foi o real problema

Após um lançamento repleto de polêmicas, que variam desde a bestialidade de alguns usuários às críticas minimamente razoáveis, o jogo expande o conceito de “experiências eletrônicas”, oferecendo um produto único para jogadores de paladares apurados.

em 21/08/2020

Meu primeiro contato com The Last of Us Part II (PS4) ocorreu um pouco após o hype inicial mediante o empréstimo da mídia de um colega de trabalho de minha companheira, imediatamente interrompendo uma divertida partida em Minecraft durante a construção de uma mob trap no PlayStation 4.


Desde que voltei ao mundo do entretenimento eletrônico como jogador — há um bom tempo tão somente estudava e analisava o mercado —, descobri então, novos títulos e experiências além dos típicos jogos de 8 e 16 bits. The Last of Us, como já disse aos leitores, foi o grande responsável por me render de vez à linha PlayStation de consoles.

O primeiro jogo, embora tenha seus elementos impactantes — a morte de Sarah até hoje me emociona quando retorno ao título —, passa a ideia de esperança e recomeços. A sequência, no entanto, foi um dos produtos de entretenimento mais impactantes e afligentes que experimentei nos últimos anos, sendo esse o enfoque do artigo — e uma possível razão por algumas das críticas negativas que o jogo sofreu.
O artigo mencionará eventuais spoilers, logo, sua leitura poderá interferir em sua própria experiência e interpretação dos fatos.

A temática não é nova, sua execução sim

O enredo de The Last of Us Part II é explícito: vingança. De longe, é um dos temas mais recorrentes na literatura (Shakespeare que o diga), no cinema e nos jogos eletrônicos. Embora o script não nosso tema central, é importante mencioná-lo porque leva ao sentimento que causou em muitos dos jogadores com quem conversei e me fez compreender muitas das análises negativas que o título sofreu.

Vingança é um termo também recorrente na Filosofia, na Literatura e na Religião, sendo atribuído ao filósofo Confúcio (embora não conste n’Os Analectos, cuja leitura recomendo) a seguinte frase: antes de embarcar em uma vingança, cave duas covas. Em mesmo sentido, a Bíblia, especificamente no Salmo 7:15 (um poema sobre o desejo de Davi para que deus fizesse justiça pelas palavras proferidas por Cuxe contra o Rei de Israel), afirma que quem cava um buraco e o aprofunda, cairá nessa armadilha que fez.
O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, provavelmente seja uma das mais importantes obras sobre o tema.

Que fique claro, não sou um moralista. Em algum momento da vida de qualquer indivíduo houve situações em que um mínimo desejo de represália surgiu de alguma afronta que sofremos. Sua execução (ou não) acaba sob o jugo de diversas variantes: o apego religioso, o equilíbrio moral, o temor legal. Os Estados de Direito (aqueles que se fundamentam e organizam em normas pré-determinadas) comumente tomam para si, na ideia do Poder Judiciário, o ímpeto de vingança do injustiçado para reequilibrar as relações sociais.

No mundo pós-apocalíptico de The Last of Us, os Estados e as leis como as conhecemos não mais existem. Basicamente, as relações sociais se organizam e se mantém com base na moral, nos costumes e sob as normativas daqueles que optam por viver em comunidades, com suas próprias regras e diretrizes. Logo, atos como homicídio, tortura, sequestro e roubo, por exemplo, são “crimes”, quando muito, nas comunidades que se organizaram. E cada uma delas certamente tem seus meios socialmente aceitos corrigi-los. No entanto, portões afora, a única norma aparentemente aplicável é a selvageria. A série de filmes Mad Max retrata algo parecido, assim como os quadrinhos de The Walking Dead, cada um com suas próprias características.
Mad Max (1979) é o prenúncio de uma sociedade em ruínas plenamente plausível.


Vamos ao enredo: a morte de Joel pelas mãos de Abigail, num mundo como o acima descrito, seria tecnicamente razoável, já que foi o protagonista quem executou seu pai, Jerry Anderson, o médico responsável pelo procedimento de extração do fungo hospedeiro de Ellie e que a levaria inevitavelmente ao óbito. Não importa para Abby que Joel não o fizesse por crueldade ou sob tortura, mas para proteger sua tutelada. A morte de Jerry foi o suficiente para desencadear o sentimento de vingança na mulher. Ainda que as razões pelas quais Joel o fez fossem reveladas no início da trama, talvez não fizesse qualquer diferença para ela.

Como consequência, embora Ellie ainda mantivesse remorso quanto ao ato de Joel ao lhe revelar a verdade sobre sua extração do centro médico, mantinha sua conexão como o “sujeito que atravessou o país, se arriscando, para protegê-la”. Isso desencadeou o próprio sentimento de vingança da protagonista contra Abigail, se provando ainda mais brutal e implacável do que sua inimiga recém criada.
Ellie e Abigail: duas fortes protagonistas com objetivos em comum.


Esse é um ponto interessante da trama: no primeiro jogo, Ellie estava com 14 anos, mas se propôs a enfrentar perigos e a executar pessoas para auxiliar e proteger Joel. Para aqueles que se recordam quando a garota era auxiliar durante os combates, a forma como ela se engalfinhava às costas de inimigos e estocava seu canivete na garganta deles era uma amostra (sutil e provavelmente não intencional por parte dos desenvolvedores da Naughty Dog) de que a garota se mostraria extremamente selvagem em situações extremas.

No título sequencial, fiquei nem um pouco surpreso com a violência empregada por Ellie porque foi algo captado por mim desde o primeiro jogo. A bem da verdade, as cenas de perseguição, a imposição corporal e a coragem para enfrentar inimigos humanos fisicamente mais fortes, como os Serafitas (membros da seita) me trouxeram um que de satisfação porque a personagem se tornou nada menos do que eu esperaria ver de uma mulher adulta que tinha um potencial, já na juventude, de promover um massacre.
A brutalidade pela sobrevivência (cena do primeiro The Last of Us)...


Abigail, por sua vez, foi outra personagem que gostei muito de controlar, seja por sua força física, seja por suas habilidades — embora alimentasse uma raiva fria contra ela por torturar Joel ao invés de “simplesmente” matá-lo. Por um tempo considerável no jogo a vemos como um indivíduo forte, capaz de se defender e a seus amigos, disposta a enfrentar os mais diversos perigos e a condoer-se pela culpa, como quando “abandonou” as duas crianças Serafitas à própria sorte e voltou para resgatá-las. Por um bom tempo torci para que ela se visse em maus lençóis,  Vê-la no final do jogo, física e mentalmente destruída após sua captura pelos Cascavéis desabou meu coração. Era perceptível a perda de massa corporal e o envelhecimento facial pelo sabe-se lá o que passou sob o tratamento do grupo.
... e um dos menores preços cobrados (cena de Ellie em The Last of Us Part II).


A essa altura, ainda que no controle de Ellie, se houvesse no jogo a opção de simplesmente libertá-la e seguir por outro caminho, eu o faria. E é justamente essa amálgama de sentimentos que quero discutir com os leitores.

Não foi do jogo que não gostamos, mas dos sentimentos que evocou

Particularmente, gostei muito de The Last of Us Part II. O enredo é fechado em si, quase não há pontas soltas (as motivações pela seita dos Serafitas não me convenceram com suas “tradições” de poucos anos), os gráficos são simplesmente absurdos, de longe os mais bonitos já vistos no PS4, a IA inimiga melhorou consideravelmente e os novos movimentos apenas aprimoraram a experiência.

Após concluí-lo, decidi ler as análises negativas de muitos portais e percebi algo: o maior choque dos jogadores teve as mesmas conclusões que mencionei acima, mas reclamaram sobre um tema comum, o desenvolvimento e fechamento do script. E não me refiro a eventuais “furos” ou ausência de motivação das personagens, mas o fato de que ele foge à proposta do primeiro jogo.
Abigail Anderson, em uma das cenas mais icônicas de Part II.


No início, achei as considerações esdrúxulas, afinal, o título inaugural tinha por cerne um mundo (quase) recém devastado, as novas organizações sociais e mesmo a esperança. The Last of Us Part II foi objetivo em sua temática e o fez da forma mais brutal e explícita possível num mundo em que esse tipo de violência é plenamente possível, não num universo em que jovens adultos infantilizados assistem filmes gore comendo pipoca com seus televisores conectados à Internet.

No jogo, o tema “vingança” foi projetado de forma tão minuciosa que a matança promovida tanto por Abby quanto por Ellie chegava a lugar nenhum — entenda algo como “isso só vai piorar as coisas” — em situações que faria Paul Kersey (personagem de Charles Bronson em “Duro de Matar”) se sentir um “covarde”.


O leitor talvez compreenda isso como algo “forçado”, a “violência pela violência”. Nesse caso, pediria encarecidamente que retome alguns parágrafos e releia sobre o mundo em que o jogo se passa. Em uma situação real, considerando os eventos que observamos não apenas no Brasil, mas também no restante do mundo na última década, não esperem algo melhor do que o retratado em The Last of Us.

“Mas o que isso tem a ver com os sentimentos evocados pelo jogo?”, alguém perguntaria. Absolutamente tudo, afinal, seja no controle de Ellie ou de Abigail, todos os atos de violência praticados por ambas as personagens apenas reforçam o ciclo de brutalidade. Mesmo nos momentos chave de paz das mulheres — Ellie casada, vivendo com seu filho adotivo em um lugar isolado e pacífico com a mulher que ama e Abigail, com seu garoto recém “adotado” e que busca um novo meio de felicidade e razões para viver ao lado dos Vagalumes remanescentes —, o ciclo continua.

A batalha final entre as duas personagens, ambas feridas e fisicamente desgastadas respinga no moral do jogador. Pessoalmente, como disse, teria aberto a mão da vingança tão logo libertasse a assassina de Joel. O jogo “forçar” um ataque final contra Abby quando a mesma se arrasta à beira da praia como um cão acuado pedindo para não ser mais atacada foi o máximo para que meu cérebro dissesse “para mim já deu”, considerando o estresse psicológico que sofri ao longo de quatro dias de jogatina diante de uma catástrofe seguida de outra.
Ver o impacto da violência física e psicológica contra Abby me desarmou.


Em uma visão rasteira, são apenas pixels numa tela. Quase ninguém se importa se algum anti-herói de Grand Theft Auto executa alguém a sangue-frio ou se Kratos estraçalha crânios de inimigos com as próprias mãos. Mas o que talvez cause tanta comoção em jogos como The Last of Us ou mesmo na série de jogos The Walking Dead da Telltale seja o fato de que nos vemos na pele daqueles personagens. Em um mundo como aquele, tomaríamos decisões delicadas e responderíamos a agressões de forma brutal quando, no mundo atual, o fazemos no conforto de nossas casas apenas com um controle nas mãos.

O prego final no caixão desse amontoado de sentimentos provavelmente decorre do final atribuído à Ellie: abandonada por Dina e agora parcialmente incapacitada por perder parte de seus dedos, órgãos importantes para que pudesse tocar seu violão — uma das últimas conexões que ainda possuía com Joel —, nenhum futuro glorioso ou pacífico foi premeditado à personagem, mesmo que a última visão que tivesse de seu mentor durante o último embate contra Abigail fosse positiva, contrariando todas as demais, sempre ferido e prestes a ser executado.
Nos foi prometido uma história, ninguém garantiu um final feliz.


No final das contas, muitos não gostaram do que viram e do que jogaram porque não querem o sentimento e a sensação de terem de decidir isso no mundo real, num “tudo ou nada” pela vida, seja a própria ou de outrem. É emocionalmente desgastante e, ironicamente, um dos méritos de The Last of Us Part II. Se era essa a intenção de Druckmann e de sua equipe, parabéns, vocês conseguiram destrambelhar meus sentimentos. E os de milhares de jogadores mundo afora.

Revisão: Emanoelly Rozas

Mineiro, apaixonado por livros, música, filmes, discussões, Magic: The Gathering e, claro, jogos eletrônicos.
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