Análise: Othercide (Multi) mistura estratégia, roguelike e um estilo artístico impressionante

Expurgue os seres malignos do outro lado e recupere as memórias do passado, formando o quebra-cabeças desse curioso enredo.

em 26/08/2020

Alguns jogos desconhecidos têm o poder de nos cativar no primeiro contato. Independente do gênero ou do seu orçamento, alguma coisa nos chama atenção de tal forma que torna impossível evitá-lo. Foi o meu caso com Othercide ao assistir seu trailer e me ver encantado por seu estilo artístico peculiar e uma jogabilidade desafiadora. Não é para menos, sua principal inspiração vem de eventos reais que só aumentaram meu ímpeto em experimentá-lo. Confira a seguir os detalhes que o tornaram um belo achado em meio a leva de grandes jogos em 2020.

Construindo um pesadelo

A história inicia como se estivéssemos lendo uma graphic novel bem elaborado, nos moldes de V de Vingança ou Sin City. A narrativa nos apresenta a figura da Mãe, uma guerreira milenar altamente treinada com a promessa de proteger a humanidade a todo custo. Logo no começo testemunhamos o que muitos julgavam improvável, sua derrocada ao enfrentar realizar seus últimos esforços contra as forças do outro compostos por seres macabros que procuram devastar a realidade habitada pela raça humana. Mesmo eliminando seus algozes, ela é incapaz de convencer a Criança, o ser que aparenta originar toda a situação caótica. E num único grito, ele devasta a cidade inteira, afirmando ser pouco perto do que ele deseja fazer com aqueles que o fizeram sofrer.


Quando toda a esperança parecia estar perdida, a alma da Mãe se transforma em pura energia, servindo como guia e nos emprestando sua força para formarmos um exército do que fica conhecido como suas Filhas, seres dotados de resquícios de memórias e habilidades de sua progenitora. A partir daí, somos transportados a diferentes eras da vida da Criança na tentativa de reviver suas memórias, enfrentar as criaturas que foram geradas a partir do seu sofrimento e frear de vez a junção das realidades.

A história de Othercide é muito peculiar, chamando minha atenção por mostrar claras inspirações em obras como O Chamado de Cthulhu, Hellraiser, Berserk e Silent Hill. Temos essa realidade obscura chamada apenas de “outro lado”. Dela originam-se criaturas perversas que se inspiram em agentes que tiveram contato em alguma parte da vida da Criança. Cada uma contém suas próprias características, habilidades, mas apenas um objetivo: destruir a nossa realidade, mergulhando-a em trevas profundas.



Tudo passou a ganhar ainda mais importância na minha visão ao assistir uma pequena entrevista com o diretor artístico do jogo, Alexandre Chaudret. Por um longo período de sua vida ele foi acometido por uma rara doença que por pouco causou a paralisia permanente do seu corpo. Nós só podemos imaginar o tamanho da dor de angústia de um jovem de 18 anos que em sua normalidade deveria estar aproveitando uma das melhores fases da vida da forma mais ativa possível, quando na realidade é obrigado a testemunhar a vida da cama de um hospital.

A saída encontrada por Chaudret foi se apegar a arte e de suas dores ele pode criar boa parte dos personagens que vemos em Othercide, especialmente a Criança. Um ser repleto de chagas e com o rosto encoberto por uma terrível máscara que se mescla com os horrores da sua feição. Desde seu nascimento ela demonstrava sofrer de males desconhecidos para a ciência e religião da época. Por conta disso, enquanto como criança ela só buscava por amor e afeto e recebeu apenas rejeição e exploração por parte de pessoas que cruzaram seu caminho.
Destacadas pelo tom escarlate, as Filhas são a última esperança de um mundo tomado pelas trevas

Os chefes que enfrentamos representam com maior precisão esses agentes que tanto agrediram a Criança.  A figura do Cirurgião trajando a característica máscara de corvo dos médicos da era Medieval e longas lâminas de tesouras cirúrgicas. Em sua descrição, é contado o quanto ele colocou seus interesses de aprendizado de uma possível nova doença em primeiro lugar, não medindo esforços para testar toda a gama de métodos nocivos e invasivos sob o pretexto de estar tratando a doença. É impressionante como os desenvolvedores conseguiram extrair um vasto panteão de seres malignos, todos interligados a figura central da Criança. É um rico universo que me prendeu e me deixou cada vez mais por conhecê-lo e entender suas motivações.


Um ciclo infinito de destruição e sofrimento

A jogabilidade de Othercide é outro fator impressionante. Ela mistura muito bem elementos de estratégia por turno, a característica evolução de personagens e dificuldade altamente punitiva e ao mesmo tempo recompensadora do gênero roguelike. Na tela principal somos apresentados ao menu de gerenciamento onde identificamos as ameaças e gerenciamos nossos recursos, algo mais simplista, porém, semelhante ao que vemos no HUB de XCOM 2. Ao passar dos dias identificamos novas sinapses que são uma espécie de brechas entre as realidades onde criaturas certamente irão surgir. Cada uma delas dividem-se em um tipo de missão:
  • Caçada: elimine todos os alvos que aparecerem;
  • Sobrevivência: mantenha seu time vivo contra hordas infindáveis por um certo número de rodadas até que um ponto de saída seja liberado para evacuação.
  • Resgate: proteja e conduza uma alma perdida em segurança até o ponto de evacuação.
Elas são classificadas em um nível de dificuldade que pode ir do díficil ao impossível. Sim, a dificuldade é algo muito evidenciado no jogo. Para dar conta do recado, acessamos o Vazio Interno, um local onde geramos as Filhas e cuidamos do seu aperfeiçoamento. Elas são catalogadas em três diferentes classes iniciais, cada uma com seus atributos em maior evidência:
  • Escudeira: armada com uma lança e um vistoso escudo, elas são dotadas de grande energia e resistência, além da capacidade de retardar inimigos, proteger suas irmãs e, claro, causar o estrago necessário no fronte inimigo;
  • Pistoleira: portando um par de pistolas, sua importância no time é vital para causar dano aos alvos de uma distância segura. Fora isso, elas possuem habilidades que interceptam o ataque destinado a uma das irmãs, interrompendo o dano e causando um estrago no agressor em troca do sacrifício de seus próprios pontos de vida. Muitos consideram a classe “roubada” por conta dessa habilidade interceptadora;
  • Espadachim: elas possuem o meio termo entre a alta resistência das escudeiras e a agilidade das atiradoras. Em compensação, suas técnicas causam os maiores danos do jogo, tornando-as ótimas escolhas para dar cabo de criaturas com grande quantidades de HP.

Elas ainda podem ser equipadas com memórias recuperadas do passado da Mãe ao custo de Vitae (recurso recebido como recompensa ao fechar as sinapses), cada memória confere melhorias como aumento de dano, proteção extra, entre outras. De acordo com o desempenho de cada uma em combate, ainda é possível desbloquear características individuais. Esses traços podem ser positivos ou negativos. Uma Filha que realiza muitos ataques em uma mesma fase pode ganhar a característica Agressiva que concede um bônus de dano, já aquela que sempre sai ilesa das sinapses pode entrar em uma zona de conforto ao ganhar a característica Convencida que diminuiu o ganho de experiência em 10% e concede um aumento de mesmo valor na proteção.

Ainda no Vazio Interno, podemos consultar na aba Códice as memórias liberadas da Mãe. Elas contam sua transição nas diversas fases de sua vida. É curioso notar que ela também sofreu preconceito, apesar de não se comparar ao sofrimento da Criança, ela foi excluída de muitos grupos devido aos seus dons que a diferenciavam de outras pessoas. O Códice ainda se mostra com um valoroso aliado por conta o submenu Personagens onde encontramos a ficha de cada inimigo descoberto. Nela temos um pequeno histórico de como foi o seu relacionamento com a Criança e como se deu sua transformação. Mais importante, ele também dá detalhes do modus operandi em combate: sua movimentação, preferência de alvo, etc. É vital saber desses detalhes para antecipar seus movimentos.



Tudo culmina no campo de batalha, onde enfrentamos os inimigos em rodadas. Uma linha de tempo serve para organizar a partida e indicar a ordem de cada um e até mesmo habilidades que ativam após um período. Cada agente possui uma média de cem pontos de ação que podem ser utilizados na movimentação pelo mapa, ataques e habilidades. Utilizar apenas metade dessa quantia garante que voltemos para o meio da linha do tempo, em alguns dando vantagem de realizar novas ações na frente dos adversários.

Quando utilizamos além de cinquenta pontos, independente da quantidade excedente, é certo de irmos para o final da fila. Portanto, aqui funciona um grande diferencial estratégico: vale a pena poupar ações para ter uma nova rodada na frente dos inimigos ou vale a pena esgotar todos os pontos para garantir um estrago maior? Tudo vai depender da análise do jogador. Meu estilo de jogo é mais agressivo, contudo, conforme avançamos criaturas mais perigosas vão surgindo, o que me fez abandonar a zona de conforto.


As habilidades no geral possuem animações bem elaboradas, atingindo um ou múltiplos alvos em uma certa área. Algumas contam com acrobacias ou pequenas cutscenes que empolgam ainda mais o jogador. É possível até combiná-las, pois algumas delas são ativadas mediante alguma ação: o Projétil Umbralino da Pistoleira causa dano ao alvo sempre que ele sofrer um ataque. O mesmo vale para os monstros que farão de tudo para eliminar as Filhas da maneira mais brutal possível. As lutas contra os chefes apresentam um elevado grau de dificuldade. São criaturas gigantes com demasiada agilidade, alto poder destrutivo e muitos pontos de vida. Você precisa ter uma estratégia de contra-ataque e defesa muito bem montadas, do contrário, dificilmente conseguirá eliminá-los na primeira tentativa.

Prepare-se para morrer

A parte do dano é onde entramos no aspecto roguelike. Em Othercide não há itens de cura ou checkpoints durante as sinapse. Movimentos impensados serão devidamente punidos e a única maneira de recuperar a vida de uma Filha é no término da missão ao sacrificar outra de nível igual ou superior. Embora tenha essa possibilidade, você verá que ela nem sempre será uma saída viável. É difícil não se apegar com essas personagens, sendo difícil aceitar o fato de que cedo ou tarde elas poderão morrer. Isso acaba fazendo parte do contexto do jogo, pois tudo se trata de lembranças passadas sendo revividas e, em caso de morte total de suas caçadoras ou de insatisfação com o seu progresso, é possível reiniciar as lembranças para o Dia 1.



O diferencial é que ao agir dessa forma, o título permite que você utilize Fragmentos, uma segunda moeda do jogo, na compra de Recordações que nada mais são do que vantagens desbloqueáveis sob algumas condições. Mate cinquenta inimigos do tipo cultistas para liberar o Coração Preservado que garante 15% de aumento de dano a cultistas ao custo de 30 fragmentos. Dentre essas Recordações ainda estão algumas que nos permitem ressuscitar uma Filha do cemitério (viu, nem tudo está perdido) e até mesmo pular algumas eras finalizadas anteriormente, incluindo seus chefes.

É o tipo de coisa que só agrega ao valor tático do combate de Othercide, levanto o gênero estratégia a outro patamar. No meu caso, demorei para me acostumar com a ideia de perder minhas guerreiras, contudo, fiz questão de ir o mais longe possível já na primeira tentativa a fim de liberar o máximo de Recordações para que ao reiniciar meu progresso na Próxima Lembrança, eu estaria bem amparado por muitas vantagens e a possibilidade de ressuscitar as Filhas mais poderosas que eu tinha em minha última jogada.
Como não me apegar a minha Arlequina caçadora?


Tudo o que eu sou, deixo a você…

É parafraseando uma das falas da Mãe Vermelha que concluímos a análise desse incrível jogo. Jogos indies muitas das vezes sofrem com baixo orçamento, isso acaba exigindo um nível de criatividade e ousadia muito maior por parte do time de desenvolvimento. E é justamente a sensação que tive com Othercide. Fica claro que a equipe da Lightbulb Crew deu tudo de si para apresentar um universo rico em seus tons de preto e branco, repleto de criaturas ensandecidas, um vilão curioso e volátil, além de heroínas estilosas, repletas de habilidades impressionantes. Tudo fica ainda mais profundo graças a uma trilha sonora original de ótima qualidade que sabe dar os tons de drama, suspense e ação nos momentos certos.



Todo o acervo presente na obra só me deixou com vontade de experimentá-lo ainda mais: livros, HQ’s, animações e, se possível, uma sequência para nos contar mais sobre a Mãe Vermelha e sua caçada interminável. Se você gosta de jogos de estratégias e um bom desafio, temos aqui uma das grandes surpresas de 2020 e, na minha opinião, um dos melhores títulos do gênero de todos os tempos.

Prós

  • Atmosfera macabra que coloca o jogador no clima proposto;
  • Personagens bem construídos;
  • Enredo misterioso e envolvente;
  • Trilha sonora muito bem orquestrada;
  • Alto grau de desafio, principalmente nas lutas contra os chefes.

Contra

  • Poderia ter mais missões ou eventos surpresas dentro de uma mesma sinapse.
Othercide — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 9.5

Versão utilizada para análise: PS4
Análise produzida com cópia digital cedida pela Focus Home Interactive
Revisão: Emanoelly Rozas


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