A história sempre esteve presente na arte como fonte inspiradora. Acompanhar os fatos que marcaram a trajetória das civilizações em diversas obras é uma forma didática e divertida de aprender. Videogames não estão isentos desse potencial formidável e dado os avanços tecnológicos, temos casos em que jogos são utilizados para reconstruir e tratar o trauma de soldados veteranos. Recentemente, tivemos o trágico incêndio da Catedral de Notre Dame onde o jogo Assassin’s Creed Unity (Multi) foi utilizado como referência na reconstrução do local devido a sua fidelidade aos monumentos da época.
Ghost of Tsushima (PS4) é o jogo do momento que bebe dos fatos históricos para retratar um dos períodos mais notórios da Era Medieval. Passado na ilha de Tsushima do século XIII, atual província de Tsushima, o título da Sucker Punch promete levar os jogadores a uma viagem no tempo e vivenciar o terror das invasões mongóis e a importância que ela teve para história do Japão. Neste especial, iremos expor os fatos históricos e situá-los de modo a analisar ficção e realidade, e como elas se misturam nessa epopéia histórica.
O maior império da história
Antes de entrarmos no ápice da história, é necessário contextualizá-los sobre os fatos que nos levaram aos acontecimentos narrados durante o jogo. O território mongol era originalmente dominado pelas Chinas que se aproveitavam do fracionamento e constante rivalidade das tribos nômades ali presentes. Esse período tem fim com a ascensão de Temudjin (forte como ferro) ou como conhecemos: Gengis Khan (Khan dos Khans). Gengis rapidamente consegue unificar os povos mongóis que passam a tratá-lo como líder supremo. Suas primeiras medidas foram investir contra as Chinas em busca de independência, o que não tardou a acontecer. Para seu povo ele trouxe diversas melhorias como a divisão de espólios entre os familiares das tropas, estruturação do exército, além de reformas tributárias e políticas para acabar de vez com os conflitos entre os mongóis.Estátua de Gengis Khan no território mongol |
No campo de batalha suas hordas traziam devastação por onde passavam e rapidamente ampliaram o domínio do Khan, rendendo-lhe o apelido de Destruidor. Os alvos da Mongólia tinham apenas duas opções: render-se a soberania do Khan, o que implicava em diversas perdas como o pagamento de impostos, ceder tropas e entregar uma mulher da realeza para casamento com um de seus líderes militares. Outra alternativa era resistir, o que a história nos mostra que resultava em destruição da nação, escravidão da população e a perda de preciosos registros culturais. Como exemplo temos a rica civilização Tangut no norte das Chinas que, por quebrar o acordo de lealdade, foi literalmente varrida da face da terra, reduzindo seu vasto acervo literário e cultural a pequenos vestígios atualmente.
O temperamento energético de Gengis Khan ganhava força em sua convicção de ser um escolhido divino e que nenhuma força poderia se opor a ele. Somado a isso, tínhamos sua visão de dominar o mundo e construir uma nova civilização. Esse ímpeto seria transmitido por toda a sua linhagem após a sua morte que, apesar das disputas pela liderança mongol, encontra seu ápice de expansão e domínio durante o período regido por Kublai Khan, neto de Gengis Khan, e principal responsável pelas invasões no Japão.
Gengis Khan em marcha durante a conquista das dinastias Jia e Xia em 1211 |
A primeira invasão
Sob o comando de Kublai Khan, o exército mongol rapidamente conquistou a imensidão do que viria a ser o maior império contínuo em terra da história da humanidade. Sua extensão ia desde a Polônia, passando por grande parte do Oriente Médio, o subcontinente indiano e culminando nas recém tomadas Chinas e Coreia. Após essa grande conquista, era hora de expandir seu domínio para além dos mares e o principal alvo era claramente o Japão devido a sua proximidade com o território da Coreia. Inicialmente, Kublai envia cincos missões expedicionárias solicitando vassalagem tributária ao Japão em troca de proteção. Na ocasião o Japão passava pela regência Shikken de Hojô Tokimune que recusou a oferta mongol na primeira vez. Na última missão diplomática ele ordenaria a decapitação dos embaixadores mongóis, representando a gota d'água para Kublai Khan.Infográfico sobre as dimensões do império mongol |
Visando uma invasão de medo, e não de ocupação, Kublai enviou cerca de 36 mil soldados, entre mongóis, chineses e coreanos. Do lado nipônico não há relatos exatos da quantidade das tropas, mas estimativas indicam algo em torno de 4 a 6 mil soldados. Sob o comando do governador japonês So Sukekuni, as ilhas de Tsushima e Kyushu são os primeiros alvos da invasão. Na época, as ilhas eram uma importante rota comercial entre o Japão e a Coreia, sendo moradia de muitos civis, inclusive familiares de samurais. Em 2 de novembro de 1274 os registros apontam um verdadeiro massacre feito por mongóis na ilha de Tsushima onde 80 samurais foram derrotados, mulheres japonesas, com exceção da realeza que cometeram suicídio antes de serem aprisionadas, foram levadas para os navios mongóis para entretenimento do exército.
No dia 13 do mesmo mês a tropa invasora desembarca na ilha Iki, um arquipélago pertencente ao estreito de Tsushima. Da mesma forma que Sukekuni na ilha de Tsushima, aqui eles encontrariam Taira Kageetaka como governador que comandou uma defesa infrutífera contra o exército inimigo, batendo em retirada para o castelo para na manhã seguinte se verem cercados pelas tropas mongóis. Uma última manobra defensiva seria feita, porém, sem sucesso. O que levou o governador e seus familiares a cometerem suicídio antes de caírem nas mãos de seus algozes.
A próxima parada seria na famosa baía de Hakata, na ilha de Kyushu, onde os japoneses tiveram a real dimensão da ameaça eminente marcada pela batalha de Bun-ei. Durante a contenda ficou evidente, diversas fraquezas do exército nipônico, que há mais de seis séculos não enfrentaram tropas estrangeiras, deixando-os acomodados em seu estilo de combate peculiar regido por um código de honra que não existia em exércitos estrangeiros. Se nos numerosos conflitos internos ao longo dos anos os samurais combatiam com armas e vestimentas tradicionais, além de um respeito ao duelo entre dois espadachins, esses conceitos caiam por terra ao encararem mongóis atacando em conjunto, independente da situação.
Os invasores ainda carregavam a vantagem tecnológica adquirida das nações conquistadas. Bombas e foguetes eram utilizados pela primeira vez em um conflito fora das Chinas, enquanto a armadura mongol trazia um reforço maior que dificultava o corte da espada japonesa. Até mesmo o arco utilizado trazia maior potência que os tradicionais arcos longos da terra do sol nascente.
O desfecho da batalha era totalmente favorável para as hordas de Kublai Khan, porém, ao anoitecer a costa japonesa foi acometida por uma tempestade, impedindo a permanência dos navios mongóis. A solução viável era bater em retirada até a Coreia e preparar um novo ataque. O problema é que a tempestade se tornou um perigoso tufão, devastando a frota mongol. Estima-se que 200 navios foram destroçados e cerca de 13.500 guerreiros mortos na catástrofe. Kublai Khan se envolveria em outras campanhas militares, mas jamais esqueceria os acontecimentos da invasão fracassada.
Ilustração da tormenta que destruiu a frota de Kublai Khan |
A segunda invasão
Em setembro de 1276, uma nova comitiva com cinco embaixadores foi enviada para o Japão. Contudo, Tokimune não estava aberto a diplomacia e prontamente ordenou que o grupo fosse decapitado. Os corpos foram enterrados em Kamakura e até hoje seus túmulos podem ser visitados no local.Em 29 de julho de 1279 uma nova tentativa diplomática foi feita, porém, dessa vez não foi permitido que o navio atracasse em território japonês, deixando claro aos mongóis que a única saída seria a guerra. Em 1281, apesar da imprecisão entre as fontes, é dito que mais de 140.000 guerreiros e piratas mongóis, chineses e coreanos compunham a nova investida de Kublai Khan. Para estabelecer um comparativo, no dia D 156.000 soldados desembarcaram nas praias da Normandia.
Túmulo dos cinco emissários mongóis em Hakata |
A primeira parada novamente seria na ilha de Tsushima que agora contava com reforços sob o comando de Shoni Suketoki e Ryuzoji Suetoki que lideraram milhares de samurais na defesa contra a ofensiva inimiga. Para o azar dos nobres guerreiros, o infortúnio se repetiria e mais de 300 homens seriam mortos, estendendo o massacre novamente para mulheres e crianças. Contrariando as ordens de aguardarem reforços de navios vindo das Chinas, a comitiva seguiu em duas frentes: uma em direção a baía de Hakato e a outra atacaria simultaneamente a provîncia de Nagato.
Os japoneses demonstraram ter aprendido com a primeira contenda. Entre as invasões, o Shogunato ordenou a construção de fortes e muralhas em possíveis locais de atracagem. Na baía de Hakato uma muralha de pedras (Sekirui) com 20 metros de comprimento foi construída para retardar o avanço mongol e criar pontos estratégicos para os arqueiros japoneses.
As medidas defensivas se mostraram bem sucedidas visto que os navios mongóis não conseguiam se aproximar com segurança das costas muradas da baía sem serem recebidos por uma saraivada de flechas. A horda se viu obrigada a contentar-se em conquistar as ilhas de Shiga e Noko enquanto se preparavam para um novo ataque em direção a Hakato. Ao anoitecer, mais uma vez os japoneses mostrariam o resultado do seu treinamento, indo ao encontro dos mongóis de maneira furtiva em pequenas embarcações, ateando fogo em navios e eliminando vários guerreiros inimigos.
O sucesso da tática levou os invasores a recuarem até a ilha de Iki e posteriormente para a ilha de Hirado, atual prefeitura de Nagasaki, onde juntaram esforços com novas embarcações vindas do norte do império do Khan. Tudo estava pronto para uma nova revanche, mas curiosamente a história se repetiria por meio de um novo e impiedoso tufão que destruiu parte da esquadra recém-reforçada. O efeito foi mais forte na moral do exército que ao verem os navios sendo destruídos fugiram às pressas, dividindo toda a frota e facilitando o trabalho dos japoneses em eliminar seus remanescentes.
Japoneses realizando uma emboscada em um navio mongol |
O segundo fracasso seria suficiente para Kublai Khan acreditar que o segundo desastre seria um sinal mostrando a vontade dos deuses de que o Japão não deveria integrar seu império. Para os japoneses, os dois tufões seriam uma providência divina deixando claro que o Japão era uma terra protegida pelos deuses, elevando a moral e o ímpeto característico desse povo guerreiro. Curiosamente, às duas manifestações naturais receberam o nome de Vento Divino ou no original: kamikaze e que mais tarde voltaria a ser utilizado em outros conflitos, prova do quanto os eventos aqui contados marcaram a cultura japonesa de forma permanente.
Onde a arte encontra a realidade
Em Ghost of Tsushima, controlamos um samurai chamado Jin Sakai, um sobrevivente da invasão mongol na ilha de Tsushima que teve toda a população dizimada pelas hordas destruidoras inimigas. O fato é, não é novidade que uma certa dose de romantismo é adicionada para incrementar a história. Vemos isso acontecendo a todo momento e não apenas na ficção, visto que até hoje alguns historiadores questionam a precisão e os números de cada lado no conflito.A história teria sido diferente com a presença de Jin contra os mongóis |
Os relatos nos contam que a passagem por Tsushima nas duas invasões mongóis se deram de forma breve e totalmente favorável ao Khan. Porém, o título da Sucker Punch pretende recontar a história e mostrar de forma fidedigna muitos aspectos importantes. Por exemplo: a mudança na filosofia de combate do protagonista que assume a alcunha de Fantasma, moldando seu modo de combater o inimigo. A proposta é muito promissora e tem tudo para brilhar ao colocar o jogador na pele de um sobrevivente durante o conflito, nos dando a oportunidade de experimentar o choque cultural e bélico de duas incríveis civilizações. Una-se a Jin e prepare-se para uma intensa batalha em busca da liberdade de Tsushima!
Revisão: Emanoelly Rozas