"Quando você está perdido na escuridão, procure a luz."
Narrativas poderosas que transbordam emoções
Quando o surto de um fungo chamado Cordyceps dizima boa parte da humanidade, transformando seus hospedeiros em criaturas canibais chamadas de Infectados, Joel e Ellie embarcam em uma jornada perigosa pelos Estados Unidos, a fim de localizar uma milícia rebelde denominada Vaga-Lumes, que diz ter condições de desenvolver uma vacina eficaz para o problema.Utilizando palavras de ordem como "look for the light" e "endure and survive", que significam, respectivamente, "busque a luz" e "resista e sobreviva", os Vaga-Lumes tornaram-se essenciais no desenvolvimento de The Last of Us (PS3/PS4), tornando-o um jogo monumental e com um toque de esperança para as pessoas. Apesar de ser ambientado em um mundo desestabilizado e cruel, essa franquia de jogos que também compreende o sucessor, The Last of Us Part II (PS4), tem uma carga emocional poderosa, e somos expostos a inúmeros sentimentos, tais como amor, ódio, tristeza, empatia e tantos outros.
Jogos bem construídos mostram como todo e qualquer tipo de arte impacta. Se antes somente a leitura de um livro, a visualização de um filme ou a melodia sensível de uma música despertavam as mais complexas emoções, agora os videogames, por meio de decisões que damos aos personagens, também podem fazer isso, estimulando sentimentos significativos e não só uma leve sensação de divertimento. Um estudo publicado em 2015 na Psychology of Popular Media Culture diz que os videogames costumam ser estereotipados apenas como algo divertido e, apesar de existirem produtos superficiais, assim como em todas as outras formas de entretenimento, eles têm potenciais muito mais abrangentes.
O fato é que não se trata de apenas nos proporcionarem sentimentos e ações tão ricas quanto o rir ou o chorar, mas sim de nos encorajar a compartilhar nossas próprias visões e histórias sobre nós mesmos. Artistas e desenvolvedores, por exemplo, têm uma visão criativa de um determinado jogo que é moldado, muitas vezes, por fragmentos de vivências pessoais de cada membro da equipe. Compartilhar essas histórias com outras pessoas torna-se um meio de se autodescobrir perante a sociedade, observando erros e acertos para uma evolução pessoal memorável. Podemos até pensar que o motivo único da existência da indústria dos videogames hoje é pelo efeito capitalista que esse mercado estimula, mas vai muito além disso. Para mim, a capacidade que a arte tem de nos moldar é fascinante e acredito que as narrativas trazidas pelos jogos eletrônicos são meios poderosos para se criar e desenvolver um senso de pertencimento e amor entre as pessoas.
Mexendo com nossa imaginação e criatividade
É durante o período de desenvolvimento crítico do cérebro humano, que ocorre entre o nascimento e a puberdade, que a imaginação e a criatividade devem ser aguçadas. Albert Einstein, visionário físico teórico que desenvolveu a teoria geral da relatividade, dizia que a imaginação é muito mais importante que o conhecimento, pois o conhecimento em si é limitado, enquanto a imaginação circunda o mundo. Nos videogames, por exemplo, esses conceitos se aplicam quando os jogadores são estimulados a reagir de determinadas formas, ao mesmo tempo que também alimentam os jogos com um universo próprio de imagens, significados e desejos. Jogos de simulação de vida e de simulação social como The Sims 4 (Multi) e Animal Crossing: New Horizons (Switch) prezam por essa ideia, tendo a imaginação e a criatividade como seu principal foco de jogabilidade.
As lembranças ainda intactas de um passado não muito distante me levam a jogos de simulação fascinantes em que meu único objetivo era construir algo ou alguma coisa, seja uma cidade grandiosa em SimCity Buildlt (Mobile) com os mais belos pontos turísticos ou ainda modelar um mundo ideal incrível com blocos em jogos como Minecraft (Multi) e Criativerse (PC). Também não posso deixar de citar Super Mario Maker (Wii U/3DS), bem como seu sucessor Super Mario Maker 2 (Switch), que possibilitaram a construção de um mundo colorido e vivo, como só a Nintendo consegue fazer.
Criar alguma coisa nova e totalmente do zero utilizando nossa própria imaginação e criatividade é totalmente prazeroso. Particularmente acredito que esses dois conceitos estão atrelados às minhas melhores características pessoais, pois me inspiram a mudar a perspectiva da minha própria história, além de me fazer tentar enxergar o mundo de uma forma menos cruel. Afinal, Elisabeth Sobeck, de Horizon Zero Dawn (PS4), afirmou:
"Não adianta ser inteligente se você não tornar o mundo melhor. Você precisa usar seu cérebro para fazer a diferença. Para servir à vida, não à morte."
Uma nova fluoxetina para a ansiedade (com contraindicações, é claro)
Em junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu oficialmente o vício em videogames na classificação internacional de doenças. O diagnóstico do transtorno é feito por meio da análise do padrão de comportamento de uma pessoa, pela qual resulte em prejuízo significativo nas áreas pessoal, familiar, social, educacional, ocupacional e outras. No entanto, na mesma semana, especialistas e profissionais de saúde contrariaram a organização, dizendo que ela estava se precipitando, pois estudos a respeito ainda não são conclusivos.
E de fato, nenhum estudo comprovou tal classificação sobre os videogames, e isso fica ainda mais evidente segundo o resultado de uma pesquisa publicado no Daily Mail em 2017, feita pela Universidade da Pensilvânia, em que foi revelado que sintomas que podem levar a transtornos como depressão e ansiedade podem ser combatidos de forma eficiente com distrações e exercícios mentais como os jogos eletrônicos, que na verdade podem ser grandes amigos do desenvolvimento cognitivo da pessoa. Em 2014 também foi publicado aqui no GameBlast um texto de autoria de Gilson Peres sobre influências dos videogames em nosso cérebro, principalmente no tratamento do Alzheimer, mostrando muitos pontos positivos - com observações, é claro.
Os mesmos jogos eletrônicos que servem como uma espécie de antídoto para a depressão e a ansiedade muitas vezes são aqueles que retratam questões sobre mentalidade de maneira surpreendentemente aberta. Em Hellblade: Senua's Sacrifice (Multi), por exemplo, os jogadores são colocados no controle de Senua, que precisa conviver com sua própria psicose no caminho para resgatar a alma de seu amado. A protagonista também é atormentada pelo trauma de perder seu lar e, para retratar melhor a condição, os desenvolvedores contaram com a ajuda de neurocientistas, especialistas em saúde mental e pessoas que sofrem com depressão e/ou ansiedade.
Um jogo particularmente especial para mim e que retrata a questão de saúde mental com excelência é Celeste (Multi), título independente lançado em 2018 e que foi indicado na categoria de jogo do ano no The Game Awards. A narrativa destaca a protagonista Madeline escalando uma montanha com difíceis desafios. Eu gosto de pensar que ele é, de certa forma, uma analogia da nossa própria história, na qual a montanha é a vida e Madeline é cada um de nós. É difícil escalar uma montanha, e as fases do jogo são extremamente complicadas, fazendo com que a vida seja, dura e imprevisível. No caminho dessa escalada, encontraremos pessoas legais, que vão nos apoiar e ajudar, assim como Madeline conhece alguns personagens. Mas também existirão pessoas que não irão acreditar nos sonhos de Madeline e seus medos e angústias vão tentar pará-la. A história de Madeline aqueceu meu coração de uma forma surpreendente e, a partir dele, pude enxergar como os videogames podem ser uma das melhores e mais poderosas válvulas de escape para a ansiedade.
Lidar com esses transtornos é um processo delicado, lento e muitas vezes desafiador. É difícil encontrar pessoas que te dão a mão e é mais difícil ainda você se abrir perante a situação, simplesmente por ter vergonha de estar passando por dificuldades. Não sei bem dizer como, mas os videogames fizeram me sentir extremamente confortável em compartilhar meus medos e minhas preocupações. Fazendo outra analogia, posso dizer que eles são como a fluoxetina (medicamento antidepressivo), que igualmente apresenta contraindicações, principalmente a respeito de limites, pois tudo que é demais é prejudicial.
Lidar com esses transtornos é um processo delicado, lento e muitas vezes desafiador. É difícil encontrar pessoas que te dão a mão e é mais difícil ainda você se abrir perante a situação, simplesmente por ter vergonha de estar passando por dificuldades. Não sei bem dizer como, mas os videogames fizeram me sentir extremamente confortável em compartilhar meus medos e minhas preocupações. Fazendo outra analogia, posso dizer que eles são como a fluoxetina (medicamento antidepressivo), que igualmente apresenta contraindicações, principalmente a respeito de limites, pois tudo que é demais é prejudicial.
Uma doce música para amargas sensações
Música é a combinação harmoniosa e expressiva de sons e por muitos autores é classificada como uma prática cultural e humana. Em seu vasto catálogo de gêneros, encontram-se o pop, o rock, o indie, o reggae, entre tantos outros que exaltam leveza e ressignificação dos mais variados modos. Quase toda representação artística contém estruturas musicais, sejam elas até mesmo pequenas trilhas ou efeitos sonoros. Nos videogames, a representação da música é tocante, é a parte de toda uma estrutura que transforma determinado jogo em uma obra-prima, tornando as imersões muito mais profundas aos jogadores.
A verdade é que trilhas sonoras vêm ganhando cada vez mais importância e destaque no mundo dos jogos, sendo que compositores e artistas têm se dedicado a produzir materiais tão preciosos quanto as trilhas sonoras para grandes obras do cinema internacional. Títulos como Ori and the Blind Forest (Multi) e Monument Valley (Mobile) trazem consigo álbuns sensíveis e místicos tornando as sensações muito mais fabulosas dentro de sua própria narrativa.
Mas, para muito além de apenas jogar e ouvir, as trilhas sonoras dos videogames, também moldaram a minha visão de como e quando consumir uma música. Hoje, a música instrumental se tornou uma forma de repouso neural, de aliviar o estresse cotidiano e até de acalmar minha própria ansiedade. Ao escrever este texto, por exemplo, estive ouvindo Ori and the Will of the Wisps (XBO/PC), um álbum que me mantém preso às minhas ideias. Para mim, música é vida, é o pulsar do nosso coração, nos mostrando uma extensa calmaria para dias de completa turbulência.
Ecos de liberdade e solidão
De acordo com a filosofia, liberdade significa autonomia, é o direito de agir segundo o livre-arbítrio, é viver sem amarras. Nos videogames este conceito está atrelado a aspectos relacionados à exploração e à tomada de decisão, já que são os jogadores que deliberam para onde personagens vão e o que devem fazer.
Jogos em mundo aberto produzidos com detalhes mínimos, focados mais em questões como ambientação, tornam esse tipo de experiência ainda mais abundante e libertador. A sensação de satisfação em se balançar com teias entre gigantes prédios da cidade de Nova Iorque em Marvel's Spider-Man (PS4) ou em explorar imensas regiões dominadas por máquinas em Horizon Zero Dawn (PS4) e até mesmo em descobrir dungeons secretas em The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Wii U/Switch) demonstra como a imersão dos videogames está possibilidade a construção de um mundo real utópico em nossas cabeças. Embora saibamos que utopias são irrealizáveis, encher nosso coração e nossa mente com essas ideias certamente torna a vida mais bonita e mais leve, nos levando a refletir sobre os próprios conceitos de liberdade apresentados até hoje fora das telas.
No decorrer do meu desenvolvimento pessoal pude usar os majestosos mundos abertos dos jogos eletrônicos como embasamento para aprender e aprofundar ainda mais certos conhecimentos sobre mim e o que estava ao meu entorno. Fora o anseio por liberdade de um ambiente ou uma situação tóxica, até conceitos mais divergentes como a própria solidão que me ocorria.
Confesso que era ótimo me sentir livre durante essas experiências significativas dos videogames, principalmente porque no mundo real me sentia preso. Mas, ao estar no meio daquele vasto clamor de liberdade, ainda que me sentisse perfeitamente bem, também existia um eco de solidão, pois, muitas vezes, não havia nada, nem ninguém para interagir. O fato é que comecei a gostar da minha própria companhia durante as longas sessões de exploração, porque, na verdade, eu não estava de certa forma sozinho; estava desenvolvendo um processo para uma realização pessoal memorável. Em Red Dead Redemption 2 (Multi), por exemplo, viajava por vastas regiões com meu cavalo, enquanto a natureza e toda sua glória, bem como suas paisagens surreais, esquentavam meu coração, e, apensar de estar sozinho naquele ambiente, havia um propósito de estar ali. Sentia o doce aroma da liberdade, ainda que a solidão espreitasse, mas estava fazendo tudo aquilo a fim de realizar determinadas tarefas e ajudar meu acampamento a prosperar.
A vida muitas vezes vai nos empurrar para o lado e não vai permitir que sejamos livres, diferente do que acontece em jogos de mundo aberto nos videogames. Isso vai lhe causar uma breve sensação de desconforto, mas, enquanto continua lutando para descobrir as belezas do mundo, seja como for, verá que existe esperança e que, em algum momento, toda a insistência sobre ela valerá a pena. A questão principal que aprendi com Horizon Zero Dawn (PS4) e tantos outros jogos de mundo aberto é que, apesar das dificuldades que encontramos durante a exploração da nossa própria identidade, seja pela falta de liberdade ou pelo medo de explorar, é somente desafiando essas próprias imperfeições que vamos florescer.
Resolvendo o puzzle da identidade e ressignificando minha história
Quando Charlie (protagonista de As Vantagens de Ser Invisível, livro de Stephen Chbosky, publicado em 1999), diz no prefácio que se sentia infinito, logo me chamou a atenção pelo fato de que também me sinto dessa forma ao consumir um produto do entretenimento. São anos e anos em que videogames fazem meus dias melhores, seja pelas suas narrativas, trilhas sonoras ou ambientações. No final das contas, aprendi que não existe um conceito aplicado de mundo ideal, mas podemos colorir a vida do nosso jeito. Enquanto colorimos, vamos pintar uma tela de preto em determinados dias e esse preto vai simbolizar solidão. O que temos que refletir é que nem todos os dias serão dessa coloração. Haverá dias nos quais vamos passar um branco por cima do preto, outros em que vamos utilizar as cores do arco-íris para pintar a tela. A vida é um quadro e esse quadro é definido como o pintamos e não importa a cor ou a técnica que utilizamos.
Por fim, sempre digo que todo e qualquer produto do entretenimento, mesmo sendo massacrado pela crítica, pode de alguma forma mudar nossas perspectivas. Foi isso que os videogames me proporcionaram ao longo dos anos. Foram aprendizados e inspirações tanto de jogos perfeitos, quanto de títulos chamuscados por problemas técnicos. Narrativas, trilhas sonoras e ambientações que tocaram meu coração, como The Last of Us, Ori and the Blind Forest, Horizon Zero Dawn, Life Is Strange, Celeste, Rayman 2: The Great Escape e tantos outros títulos, me transformam o tempo todo. É como se ao entrar naqueles universos e realizar aquelas ações, eu possa, de alguma forma, mudar minha vida, obstruir minhas preocupações, meus medos e angústias.
Revisão: Ives Boitano