Boa parte dos jogos que ganham destaque são títulos desenvolvidos por equipes com muitos funcionários e sediadas em pólos estabelecidos, como Estados Unidos e Japão. Mas com o crescimento do cenário independente, pequenas equipes dos mais diversos locais conseguiram entregar boas experiências. Someday You’ll Return (Multi) é um exemplo disso e reflete, em uma jornada interessante e variada, o esforço de três desenvolvedores da República Tcheca.
Questões do passado
O jogo começa mostrando o seu protagonista Daniel indo atrás de sua filha Stela, que novamente fugiu. Seguindo o rastreamento que ele instalou no celular da garota, descobre-se que ela se escondeu dentro de uma densa floresta que de várias maneiras está ligada com o conturbado passado de ambos. Ao chegar no local, uma senhora idosa para o carro de Daniel e começa a dizer palavras que em um primeiro momento não fazem sentido, e em meio a essa desorientação ele decide prosseguir a pé através da mata em busca de sua filha.
Eu tentei ser o mais vago possível no resumo da história, pois o roteiro é um dos melhores aspectos do título. O jogo vai lentamente apresentando novos mistérios, revelando ligações dos poucos personagens com o local explorado, e o mais importante, trazendo novas camadas e profundidade para a trama. Se de início parece ser um argumento simples que apenas irá flertar com o sobrenatural, ao longo da jornada vemos temas importantes e delicados serem introduzidos de forma natural e sutil, provocando momentos de reflexão no jogador.
A narrativa sabe aproveitar e desenhar os arcos de cada um dos personagens. Aqui todos apresentam uma evolução em comparação ao ponto de partida. A personalidade arrogante e abusiva do protagonista, que cria uma aversão inicial, vai caindo pedaço a pedaço e revelando novos detalhes de um passado que terá influência em suas decisões ao final do jogo.
E não são apenas os personagens que de fato aparecem ao longo do titulo, que são bem desenvolvidos. Por meio de um lore muito bem construído, diversos outros coadjuvantes, que iremos conhecer apenas por meio de textos, se mostram interessantes e têm suas história bem contadas. Vale ressaltar que, dentre as várias páginas que iremos encontrar, também seremos introduzidos a interessantíssimos aspectos culturais.
Algo que é um grande empecilho para o sucesso do jogo por aqui e um ponto negativo é a falta de suporte à língua portuguesa. Como um dos pontos mais legais da experiência é ler os textos e entender todo o contexto, não ter a opção do nosso idioma limita o alcance e tira boa parte da imersão para aqueles que não conhecem a língua inglesa.
Mais do que um walking simulator
Definir um gênero para Someday You’ll Return é uma tarefa difícil, pois ele mescla muitos elementos tirados de diversos outros jogos e varia bastante o seu gameplay. Na grande maioria você vai estar andando pelo mapa e resolvendo os enigmas, o que aproxima ele de obras como Dear Esther e What Remains of Edith Finch. Porém, ele cria vários momentos com outros tipos de jogabilidade que se integram muito bem à narrativa.
De momentos em que devemos fugir desesperadamente através da floresta a outros que demandam passar silenciosamente entre os inimigos, nem todos são bem executados. A seção de stealth, por exemplo, é simplória e muito fácil, com a inteligência artificial não oferecendo nenhum desafio.
Com relação às mecânicas principais que permeiam toda a aventura do jogo, temos um leque variado e bem executado. Primeiro temos as seções de escalada, em que o jogador deve ir escolhendo qual será o próximo ponto de apoio e com qual mão deve segurar. Isso transforma esses momentos em pequenos enigmas, que, apesar de não serem difíceis, têm uma fluidez em sua resolução que os tornam agradáveis de jogar.
Outra mecânica importantíssima é a fabricação de poções. Em determinado segmento, vamos encontrar um kit que irá permitir misturar ervas que encontramos no mapa para criar bebidas com efeitos diversos. O que torna essa parte única é a interatividade envolvida no preparo e o uso em momentos não obrigatórios que levam a descoberta de mais elementos do passado dos personagens.
Uma grande parte do jogo gira em torno da resolução de enigmas. A maioria dos puzzles são tranquilos de resolver, mas teve aqueles que me fizeram empacar e quebrar a cabeça para solucionar. E essas soluções podem envolver algo simples, como explorar e encontrar uma chave no cenário, ou mesmo algo mais complexo que utiliza o sistema de crafting.
Bem no início, vamos encontrar algumas ferramentas, como chave de fenda, martelo, uma faca, entre outras. Elas serão usadas para a construção de itens que serão utilizados no cenário para prosseguir na história, como uma escada a qual é preciso colocar seus degraus de volta. Eu achei que poderia ser um pouco mais aprofundado, mas o desafio de combinar a ferramenta certa com o item correto já serve bem o seu propósito de dar mais variedade ao jogo.
Quando não estamos usando algumas das mecânicas descritas acima, a exploração dos cenários vira a protagonista do gameplay. Apesar de não ser um mundo aberto, as locações são conectadas entre si e bastante amplas, com vários coletáveis para encontrar. Alguns são apenas para saciar o complecionismo, mas a maior parte traz mais detalhes sobre a trama.
O que fica evidente é o esforço empregado pelos desenvolvedores em criar situações variadas e transformar cada aspecto da aventura em um novo desafio. A variedade e a imprevisibilidade em sua jogabilidade tornam o progresso muito recompensador. Esse estilo me lembra, mesmo que vagamente, Shadowgate 64, antigo título de aventura lançado no Nintendo 64.
Se o progresso é recompensador, os bugs encontrados pelo caminho são as pedras que atrapalham essa recompensa. Logo de início, enfrentei um bug que me fez ter que iniciar novamente o jogo, e mais para frente algo parecido aconteceu mais uma vez. Outro problema é a adaptação dos controles para um gamepad, que de tão ruim foi retirada momentaneamente da descrição do título na loja.
O título tem uma boa duração, podendo chegar a até 20 horas de conteúdo, caso o jogador vá atrás das side-quests e dos colecionáveis espalhados pelo mapa. Para os que realmente se apegarem ao jogo, existe mais de um final para alcançar e cada um deles realmente conta com um desfecho diferente e não apenas pequenas modificações.
Densa floresta na República Tcheca
O visual do jogo não apela para o fotorrealismo e aposta em um estilo mais colorido e vivo. Os cenários até que contrariam um pouco essa afirmação, com muitos detalhes e uma ótima iluminação, mas basta interagir com qualquer outro personagem que o aspecto um pouco mais caricato fica evidente. Isso de maneira nenhuma é um demérito, e sim algo que marca um estilo próprio.
A ambientação em geral não é tão tensa e assustadora, como, por exemplo, é em Blair Witch (Multi). Com cenários ensolarados e amplos, aqui temos uma mistura de medo e convite à exploração muito bem executada. Não são raros os momentos de admiração, a partir de um ponto mais alto, de toda a floresta abaixo de nós, que parece viver um eterno outono.
Assim como na jogabilidade, essa admiração é quebrada pelos problemas técnicos. Quando estamos em ambientes com pouca luz, temos cenários tão escuros que não conseguimos enxergar nada e todos os detalhes ficam escondidos sob a penumbra. As animações têm queda na taxa de frames e muitas delas parecem ser sem peso, o que cria um tom de artificialidade.
Embalando esse pacote temos a trilha sonora, que não conseguiu me agradar. Não me entenda mal; existem boas músicas, algumas com vocais e cordas que me chamaram a atenção, mas não me lembro de nenhum momento em que elas foram bem inseridas. Era como se as canções conseguissem pontuar o sentimento, mas começavam a tocar na hora errada.
A construção da ambientação por meio dos efeitos sonoros é outro ponto negativo, principalmente porque não conseguimos escutá-los. Em alguns o volume é simplesmente muito baixo e, em outros, parece não existir. É muito estranho realizar uma ação que claramente resulta em algum tipo de barulho e a cena permanecer silenciosa.
Com relação à dublagem, ela cumpre o seu papel, sem maiores destaques, mas também não apresenta nenhum problema. De início, eu até achei o protagonista meio canastrão na forma de falar, mas com o desenrolar da trama isso se torna muito bem justificado.
Eu preciso falar do esforço dos desenvolvedores em corrigir todos esses problemas técnicos que apresentei. Ao longo dos meus testes, não foram poucas as vezes que tive que baixar algum tipo de patch de correção. Não iria estranhar que daqui a pouco tempo todos os defeitos aqui relatados estejam corrigidos.
Um jogo esforçado
Apresentando uma boa variedade em seu gameplay, mesmo que nem sempre com sucesso, e uma história que aborda temas importantes e delicados, o jogo esbarra em problemas técnicos e limitações de uma equipe pequena. De toda forma, a jornada de Daniel guarda uma originalidade, em sua ambição, em seus cenários, seu folclore e até mesmo no esforço da equipe de desenvolvimento, que pode proporcionar algo diferente do que estamos acostumados em grandes produções.
Prós
- Gameplay muito variado;
- Bom arco narrativo dos personagens;
- Trama que toca em assuntos delicados e importantes;
- Cenários amplos e detalhados;
- Progresso ao longo do jogo recompensador.
Contras
- Problemas técnicos que impedem o progresso;
- Animações com queda na taxa de frames;
- Trechos de jogabilidade sem desafio algum;
- Alguns efeitos sonoros ausentes;
- O jogo se perde um pouco na quantidade de mecânicas apresentadas.
Someday You’ll Return — PC/PS4/XBO — Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela CBE Software.