A Trajetória do universo Harry Potter nos games em uma viagem (nem tão) mágica

Conheça a história de uma franquia cujos games começaram com identidade, mas que logo se tornaram simples produtos licenciados genéricos.

em 21/03/2020
Concebido pela escritora britânica J.K. Rowling, o universo fantástico da série Harry Potter explodiu na virada do milênio e se desenvolveu em uma propriedade intelectual que se estendeu para fora dos livros, gerando vários produtos de sucesso. Além dos spin-offs literários (como Animais Fantásticos e Onde Habitam) e os filmes baseados nas obras originais, esse mundo mágico também passou a marcar presença nos videogames.


Segundo uma informação do unseen64, site destinado a reunir informações sobre jogos cancelados, versões beta ou situações similares, a Nintendo, em 1998, chegou a demonstrar interesse no desenvolvimento de games baseados na franquia, que naquele momento começava a explodir em popularidade. A proposta inicial, de acordo com o portal, era que a empresa adquirisse os direitos gerais da marca, o que provavelmente teria impedido qualquer adaptação posterior para o cinema, caso o licenciamento tivesse se tornado realidade.

Artes conceituais originais da proposta da Nintendo.
Ainda conforme as informações do site, a Nintendo concebeu duas propostas de jogo diferentes. Um deles, que demandaria maiores recursos, seria uma aventura em terceira pessoa, enquanto o outro, mais simples, seria focado no Quadribol. A ideia original era que fossem desenvolvidas versões para o Nintendo 64, Game Boy Advance e GameCube.

Aparentemente, o projeto não foi para frente por divergências criativas. Internamente, havia um conflito a respeito de uma imposição da autora, que exigia uma estética que continuasse em um estilo britânico, enquanto alguns superiores do estúdio responsável gostariam que o padrão seguisse por uma orientação próxima à de um anime.

No fim das contas, a proposta da Nintendo foi recusada porque os seus planos se resumiam apenas aos videogames, enquanto empresas como a Disney, a Universal ou a própria Warner — que foi a grande vencedora dos direitos — podiam trabalhar um projeto de mídia mais complexo.

A Trinca de Ferro da KnowWonder

Como a Warner, naquele momento, não tinha uma divisão específica para videogames, ela se aliou à Electronic Arts, que conduziu todos os processos de desenvolvimento em um tempo em que não era conhecida puramente pelas suas políticas predatórias contra o consumidor.

O primeiro título foi lançado em 2001. Harry Potter e a Pedra Filosofal (Multi) foi concebido tendo em vista a estreia do primeiro filme. Ao todo, cinco diferentes versões foram concebidas por estúdios diferentes, visando atingir uma diversidade considerável de plataformas. A que todos utilizam de referência geralmente é a de PC, produzida pela KnowWonder.

Nela, o primeiro ano de Harry por Hogwarts é contado no formato de uma aventura bem linear e recheada de puzzles. A maioria das fases era uma espécie de aula em que o jogador aprendia um novo feitiço e logo depois precisava desbravar seções do castelo cheias de quebra-cabeças a serem resolvidos com o auxílio desse conhecimento que adquirimos. A graça para os entendidos na franquia está na maneira em que a história aqui se apegou muito mais aos livros, trazendo passagens da obra original não presentes no filme.



Em contrapartida, no PlayStation, apesar de ter seguido a mesma ideia de aventura mesclada com puzzles, o produto apresentado é completamente diferente e desenvolvido por um estúdio chamado Argonaut Games. Uma terceira empresa, a Griptonite Games, foi responsável pelos lançamentos de Game Boy Color, um RPG, e de Game Boy Advance, um puzzle game em uma forma mais pura.

Harry Potter e a Câmara Secreta (Multi) chegou no ano seguinte, com mais uma penca de versões. A versão de PC ficou novamente a cargo da KnowWonder. Mantendo a estrutura básica do título anterior, o que houve aqui foi uma expansão de sua ideia, transformando Hogwarts numa espécie de mundo aberto em que o jogador tinha maior liberdade de exploração e tarefas diversificadas e opcionais que podiam ser realizadas, como o clube de duelos.

A versão do PlayStation continuou sob responsabilidade da Argonaut, que estruturou essa sequência em cima do motor de seu antecessor. O jogo também chegou para o GBC, novamente pela Griptonite, no mesmo formato de RPG do anterior.

O PlayStation 2, o GameCube e o Xbox não ficaram de fora. As edições para tais plataformas, juntamente com a de Game Boy Advance, foram produzidas pela Eurocom. A mesma companhia desenvolveu, utilizando a engine de Câmara Secreta, novas leituras de Pedra Filosofal, que foram lançadas em 2003.



Nesse ano também chegou o spin-off Harry Potter: Quidditch World Cup (Multi). A ideia era trazer as mecânicas do quadribol e transportá-las para um jogo individual, focado inteiramente no esporte bruxo. A campanha permitia jogar não apenas o campeonato entre as casas de Hogwarts, mas também participar da Copa Mundial no controle de vários países diferentes. A Electronic Arts decidiu conduzir o desenvolvimento do título internamente dessa vez, produzindo-o para o PC, GameCube, PlayStation 2 e Xbox. A exceção foi a de GBA, feita por um estúdio chamado Magic Pockets.

Paralelamente, outros spin-offs licenciados chamados Lego Creator: Harry Potter e Creator: Harry Potter and the Chamber of Secrets chegaram ao mercado em 2001 e 2002, respectivamente. Ambos se tratam de simuladores de construção da marca LEGO referentes às duas primeiras obras da franquia.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (Multi) foi o último jogo cuja versão de PC foi produzida pela KnowWonder. Hogwarts como mundo aberto continuava ditando a gameplay, mas dessa vez, enquanto a jogabilidade dos anteriores era restrita apenas ao Harry, agora era possível controlar Rony e Hermione, sendo que alguns feitiços são exclusivos a cada um.

Nos consoles (GC/PS2/XB), o título seguiu um tom levemente mais orientado para a ação, com batalhas contra chefes e menos puzzles como a edição de PC. O GBA foi plataforma de um RPG no mesmo viés dos anteriores para GBC.

EA assume o desenvolvimento

Harry Potter e o Cálice de Fogo (Multi) marca a Electronic Arts assumindo o desenvolvimento dos games da série principal de forma interna. Enquanto os anteriores tentaram trazer uma atmosfera própria que bebia das obras originais, a preocupação foi, a partir daqui, produzir adaptações próximas às que os fãs assistiriam nos cinemas.

Dessa forma, houve um aprimoramento gráfico considerável que abandonou alguns modelos de baixa qualidade — e que hoje são, inclusive, memes de internet — em detrimento de um visual mais realista e que na época era bem próximo ao dos atores que interpretam os personagens.

A estrutura mudou de forma brusca. Abandonando o sistema de sandbox em Hogwarts, Cálice de Fogo decidiu utilizar uma estrutura de jogo de ação dividido por fases. Nele, a ideia era encontrar os vários escudos tribruxos espalhados pelos estágios e protegidos por diversos desafios. Coletando um número específico deles, a próxima fase se abria. A gameplay, por sua vez, se tornou mais ágil, com botões diferentes que permitiam alternar entre feitiços simples e azarações de combate de forma combinada.



Enquanto as versões de PC, PlayStation 2, PlayStation Portable, GameCube e Xbox eram praticamente idênticas, a de Game Boy precisou se adequar ao hardware menos potente, mas que também foi na onda dessa mudança para um jogo de ação. No Nintendo DS, o título acabou aproveitando para se concentrar no recurso de touchscreen do aparelho. Ambas as versões portáteis foram feitas externamente pela Magic Pockets.

2007 viu o lançamento de Harry Potter e a Ordem da Fênix (Multi) novamente acompanhando o filme original. Observando a reação negativa às mudanças do jogo anterior, o mundo aberto foi implementado mais uma vez na escola de magia graças ao feedback dos fãs. Entretanto, em vez de seguir uma progressão direta, como era anteriormente, aqui a estrutura do game se desenvolvia a partir de quests espalhadas pelo castelo.

No meio do bolo de uma infinidade de versões diferentes, a de Wii se destacou por utilizar o Wii Remote e seu sensor de movimento tal como uma varinha. Apesar disso, foi consenso que o produto final era pouco polido e parecia precisar de mais tempo para ficar pronto.



Como se não bastasse ser considerado por vários fãs como o pior filme da série original, Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Multi) também deixou a desejar nos videogames, pois ele não passava de uma versão retrabalhada do seu antecessor, quase sem quaisquer atrativos reais além da dublagem feita pelo elenco do filme, cuja baixa qualidade de gravação de áudio e as atuações sem vontade acabaram com qualquer boa intenção.

Antes do lançamento derradeiro da primeira parte do final da saga tanto nos cinemas quanto nos games, um belo sopro de frescor para a franquia foi Lego Harry Potter: Years 1–4 (Multi). Assim como outros licenciados, a exemplo de Star Wars, Indiana Jones e Batman, o título fez um belo trabalho ao adaptar aquele universo à jogabilidade LEGO, que naquele momento estava em constante ascensão. A sequência, Lego Harry Potter: Years 5-7 (Multi), veio em 2011, um ano depois.



Harry Potter e as Relíquias da Morte veio com muita controvérsia por culpa da polêmica ideia de dividir o livro base em dois longas diferentes, que seriam lançados com um ano de discrepância. Dessa forma, enquanto as partes 1 e 2 ainda são, até hoje, objeto de discussão por conta de várias dessas decisões questionáveis por parte de roteiro e direção, ambos os jogos baseados nelas são criticados de forma unânime.

Para se ter uma ideia, no intuito de surfar na popularidade do momento que eram os games de tiro, como Call of Duty, a jogabilidade para ambos os títulos foi adaptada para se assemelhar a tais shooters, com um botão para lançar feitiços que podiam ser escolhidos da mesma maneira que jogos do gênero permitem que armas sejam alternadas.


No fim, o que havia começado como uma promissora franquia de aventura com puzzles acabou se reduzindo a um jogo de tiro genérico com skin de Harry Potter.

Wonderbook e o clone de Pokémon Go

Com um universo vasto em mãos e potencial de lucro ainda existente, seria um erro corporativo deixar a propriedade intelectual morrer. 2012 foi o ano de lançamento de Harry Potter Kinect (X360), que serviu apenas para aproveitar a popularidade momentânea do periférico e que, na prática, não oferecia nada de positivo a qualquer tipo de jogador, do gamer que gostaria de experimentar algo novo ao fã assíduo, uma vez que ele se resumia à releitura de alguns momentos icônicos da saga principal.

Por outro lado, algo que veio para expandir de verdade a franquia foi Book of Spells (PS3). Utilizando o Wonderbook, conjunto de realidade aumentada do PlayStation 3, a Sony produziu, juntamente com a autora, uma espécie de livro interativo que trazia histórias que ilustram a origem dos feitiços que se tornaram populares no universo de Harry Potter. Uma sequência, intitulada Book of Potions (PS3), veio no ano seguinte, e tinha a mesma intenção de seu antecessor, agora com as poções.

Ainda que elogiados por conta do material referente à série como um todo e à sua capacidade de interação, vieram críticas a respeito de como ambas são experiências curtas, com pouquíssimo fator replay. O fato do Wonderbook ter fracassado em vendas também mostra que o público não comprou a ideia tão bem assim, mesmo recebendo uma divulgação considerável por parte da Sony durante a sua conferência na E3 2012.



Após o fracasso comercial de Book of Spells e Book of Potions, a propriedade intelectual entrou em hibernação, fazendo uma rápida aparição em Lego Dimensions (Multi), o equivalente de Skylanders para a Lego. Apesar de se manter ativa com os filmes referentes a Animais Fantásticos e Onde Habitam, a franquia só voltou a aparecer nos videogames em 2018, com Harry Potter: Hogwarts Mystery, um jogo mobile em que o jogador pode criar seu próprio personagem em um RPG que o coloca no papel de um estudante da escola de magia.

Embora tenha sido recebido positivamente como um retorno da série aos games, é notável que o produto em si não foi nem um pouco elogiado, principalmente pela existência das microtransações que, como de costume, dificultavam a progressão daqueles que queriam se aventurar pela história de forma gratuita.

O lançamento mais recente que carrega o nome Harry Potter é Wizards Unite, também para dispositivos móveis, que, na verdade, não passa de um clone de Pokémon Go, trocando apenas os pokémon por criaturas mágicas do universo do bruxinho.


Há esperanças para o futuro?

A forma como a franquia foi decaindo em relação à sua presença nos videogames é notória, sendo um exemplo claro de uma propriedade que só se manteve nesse nicho pela força da marca e por estratégias de negócio, hoje ultrapassadas, que insistiam no desenvolvimento de um jogo como uma forma de expandir o alcance do marketing referente ao objeto principal, no caso, os filmes. Harry Potter, então, deixou de receber títulos individuais com luz própria para estampar caça-níqueis baratos feitos para arrecadar alguns trocados extras de fãs desavisados.

Apesar disso, há muito potencial na franquia, sendo que o melhor modelo a ser seguido talvez seja Star Wars. Por muito tempo, a criação de George Lucas produziu jogos tanto bons quanto ruins, mas que, na maioria das vezes, tratavam de inovar e expandir o universo do qual fazem parte (até a Disney decidir que nada daquilo tinha validade, só lembrando).

Harry Potter poderia seguir na mesma linha — e os títulos do Wonderbook estavam nesse caminho, embora a baixa aderência ao periférico para o qual foram concebidos tenha mais prejudicado do que colaborado para uma consolidação. A Warner Bros. tem uma divisão própria para videogames, então não seria uma boa oportunidade aproveitar, já que não há necessidade de repassar os direitos para, sei lá, uma EA?

Revisão: Davi Sousa

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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