Vagrant Story: intenso e inovador, relembre um dos jogos mais queridos do PlayStation

O título completou 20 anos desde seu lançamento, marcando toda uma geração de fãs do gênero.

em 18/02/2020

Lançado em 10 de fevereiro de 2000 no Japão, no final do ciclo de vida do PlayStation e um mês antes da chegada de seu sucessor, Vagrant Story não foi abalado por sua chegada tardia e a quantidade massiva de outros grandes jogos do gênero, entregando uma história bem elaborada e um sistema de combate único para a época. O resultado foi um sucesso em meio a outros gigantes como Chrono Cross e Final Fantasy IX lançados pela própria Squaresoft. No mês de maio do mesmo ano as vendas já totalizavam o marco de 100.000 unidades vendidas no território nipônico e diversas críticas positivas da mídia especializada, dentre elas a inédita nota máxima dada pelo Famitsu a um jogo de PlayStation.

Aproveitando a data festiva de seu vigésimo aniversário e motivados pela saudade e nostalgia que esse belo jogo nos deixou, elaboramos esse Blast from the Past especial para destrinchar os detalhes dessa maravilha obra.

Fantasia medieval

A cidade de Leá Monde é o palco dos eventos contados aqui. Outrora uma cidade próspera, ela é repleta de inscrições mágicas espalhadas que exalam um poder chamado de Dark, que garantiu sua sobrevivência por incontáveis batalhas. Tanta prosperidade foi devastada por um terremoto massivo que atingiu o local 25 anos antes dos eventos do jogo.

No contexto atual, três forças políticas e militares buscam o domínio absoluto do que sobrou do lugar. O primeiro deles é o Parliament e sua força militar especial chamada de Valendia Knights of the Peace (VPK), responsáveis por manter a ordem e justiça de Leá Monde. Do lado religioso, temos o Cardinal Batistum, que possui sua própria força armada de nome Crimson Blades, também conhecida como a espada de Deus. Um terceiro grupo, criado a 2000 anos atrás e que se encontrava inativo, retoma de forma ameaçadora nas mãos de líderes locais na cidade de Valendia: os Müllenkamp, um culto secreto que pretende tirar proveito da magia remanescente conhecida como Dark que ainda se encontra presente em Leá Monde, corrompendo os vivos e tomando posse do corpo dos mortos.


Justiça deturpada 

Os desfechos do enredo acontecem dentro de 24 horas. Tudo tem início quando o culto secreto Müllenkamp entra no meio da briga entre os Crimson Blades e os VPK por domínio político e militar de Leá Monde. Na frente da seita está Sydney Losstarot, porém, por trás dos bastidores, está o Duke Bardorba, um nobre de imensa influência no Parliament e principal mente por trás dos Müllenkamp.

Ao receber o aviso de uma suposta invasão dos Müllenkamp na residência do Duke, um soldado de elite chamado Ashely é imediatamente enviado para investigar a situação. No local, ele encontra Sydney, líder dos Müllenkamp, e o soldado investe  contra o ele na tentativa de capturá-lo. Após uma intensa luta contra um dragão invocado pelo vilão, descobrimos que nossa presa fugiu, levando consigo o filho do Duke, Joshua. A partir daí se inicia uma perseguição repleta de reviravoltas, como um quebra-cabeças onde lacunas vão sendo preenchidas ao passo que novas peças entram no jogo.



Os Crimson Blades e os VPK, que deveriam proteger aquilo que é certo e justo no mundo, na verdade possuem seus interesses pessoais. As motivações de Sydney podem não ser tão maléficas assim e até mesmo nosso protagonista possui um passado sombrio que o coloca em uma posição muito mais questionável que o de simples herói da história. Os papéis de cada um são tão subjetivos que até hoje não me arrisco a defender a causa de uma das figuras apresentadas no enredo. Tudo isso é ótimo e enaltece ainda mais a qualidade do título ao se aproximar de histórias reais onde vemos que entre essa dualidade de luz versus trevas há um imenso borrão cinza repleto de interesses e segundas intenções. Talvez a única obra que teve um resultado semelhante na época foi Metal Gear Solid ao trazer um trama política repleta de conspirações.


As peças do tabuleiro

Durante a trama encontraremos diversos personagens com personalidades bem distintas e complexas, ficando complicado distinguir aliados de inimigos. A cada momento temos uma reviravolta trazendo novos inimigos e forjando novas alianças.

  • Ashley Riot: protagonista e Riskbreaker – soldado de elite do grupo militar VKP. Seu passado é marcado pelo assassinato de sua esposa e filho por bandidos, e tais eventos o deixaram traumatizado, causando uma amnésia parcial. Seu sangue possui propriedades especiais que o permitem se conectar com a mente de outras pessoas, e esse poder passa a ser amplificado conforme ele adentra na cidade de Leá Monde.
  • Sydney Losstarot: o líder por trás do culto secreto conhecido como Müllenkamp. Misterioso e poderoso, ele possui grande habilidade no controle da energia emanada pela cidade, podendo controlar e criar ilusões a todos momento. É taxado como principal vilão da história, entretanto, conforme desvendamos mais sobre sua motivação, descobrimos que há muito mais além do rótulo de antagonista.
  • Callo Merlose: a jovem faz parte dos VPK e é enviada para a mesma missão de Ashely a fim de auxiliá-lo. Contudo, sua inexperiência, somada a personalidade solitária de nosso herói, faz com que a guerreira seja ignorada. Ela acaba se tornando mais um refém nas mãos de Sydney.
  • John Hardir: membro do Müllenkamp e amigo próximo de Sydney. Ele teve uma infância marcada pelo assassinato do pai nas mãos do governo, o que o faz ingressar nos Müllenkamp em busca de vingança.
  • Jan Rosencrantz: antigo companheiro de Ashely e que hoje procura tirar proveito do conflito para benefício próprio. Ele traz um imenso conhecimento de toda a sujeira presente nos bastidores dos VKP e do conselho Cardeal acerca das trevas que infestam os escombros da cidade. Por conta disso, ele foi expulso dos Riskbreakers. Na trama ele faz um papel de agente duplo fornecendo informações ao Crimson Blades e ajudando Sydney a brincar com as memórias de Ashley. 
  • Romeo Guildenstern: líder dos Crimson Blades, a espada do grupo religioso comandado pelo Cardinal Batistum. Sua missão principal é extinguir a escuridão do mundo e unificar todas as forças políticas. Misteriosamente, sua afinidade com a Dark se equipara ao nível de Sydney. Dentre seus seguidores, está sua amante Samantha. Embora tenha um objetivo justo, sua real intenção reside em tomar o controle de tudo para si, extinguindo todos os poderes que corrompem a sociedade.
O conceito de cada personagem enaltecia sua personalidade ao mesmo tempo que criava uma identidade única

Combate além de sua época

Vagrant Story apresentava esmero na construção de seu roteiro e ambientação, e o mesmo foi feito em sua jogabilidade. É possível enxergar uma leve referência a Parasite Eve, pois ao apertar o círculo no controle, uma esfera surgia ao redor do personagem representando a área de alcance. Todo o inimigo que estivesse nessa esfera poderia ser atingido no local desejado: cabeça, corpo, braços e pernas. Saber se posicionar e escolher o membro certo para atingir era fundamental, pois cada parte continha fraquezas em relação às demais. Alternar as armas também era importante para otimizar o dano, já que além das especificações, todo o equipamento trazia suas vantagens e desvantagens contra cada tipo de oponente: humano, fera, morto-vivo, entre outros. Isso era algo que incomodava pela constante necessidade de acessar o menu para trocar os equipamentos.



E por falar em armas, no decorrer do jogo existiam algumas forjas muito úteis na criação de novos armamentos por meio de materiais deixadas por adversários derrotados ou encontradas em baús. Eram diversas opções de customização que, inclusive, permitem aprimorar equipamentos já existentes, aumentando seus atributos e vantagens. Eu lembro de passar bons momentos aqui tentando criar a arma perfeita e batizá-la com o nome de Bahamut (eu tinha obsessão com o GF de FFVIII).



A experiência ficava ainda melhor por meio da adição de combos chamados de Chain Abilities (ofensivas) e Defense Abilities (utilizadas quando recebemos dano). O processo era iniciado através de uma exclamação que aparecia no ato do ataque, sendo o gatilho para outro ataque e assim sucessivamente enquanto durasse o nosso medidor de Risk (barra que definia o nosso nível de concentração e que aumentava ao passo que mais ataques eram conectados). Quanto menor era seu nível, maior a porcentagem de acerto. O oposto a isso causava o efeito reverso, mas em compensação aumentava a chance de um ataque crítico ocorrer. Gerenciar essa barra era uma tarefa complexa e exigia uma estratégia além de simplesmente atacar de forma desenfreada.



Ashley não estaria completo sem suas habilidades mágicas. Aqui elas se dividiam em quatro categorias:
  • Shaman - cura e remoção de efeitos negativos;
  • Sorcerer - causam efeitos negativo no inimigo ou aumento nos seus atributos;
  • Enchanter - melhoram sua afinidade com elementos e adicionam propriedades elementais em seus ataques;
  • Warlocks - magias de dano direto no oponente.
Algumas delas eram úteis para revelar a presença de armadilhas mágicas presentes nos cenários e que causavam dano mágico ou infligiam efeitos negativos no seu protagonista ou em inimigos desavisados.Temos ainda a adição dos Break Arts, golpes especiais executados por Ashley que lembravam os Limit Breaks de Final Fantasy.



Elementos que envolviam quebra-cabeças e plataforma eram comuns no jogo através de caixas que deveriam ser empilhadas ou destruídas na ordem certa a fim de alcançar locais elevados ou pedaços de pedra flutuantes movidos pela energia do local, muito úteis para atravessar precipícios.

Mais com menos

A equipe por trás do desenvolvimento de Vagrant Story era liderada por Yasumi Matsuno e o time de Final Fantasy Tactics. O empenho do grupo resultou em uma belíssima experiência visual que deixou para trás gigantes como Metal Gear Solid nesse aspecto. E o mais impressionante de tudo é que o trabalho foi feito por pessoas que não tinha absolutamente nenhuma experiência com modelos 3D.



O curioso é que aquilo que poderia ser sua fraqueza tornou-se um excelente diferencial, já que, embora o PlayStation fosse a melhor plataforma para esse tipo de gráfico, havia limitações. O trabalho artístico exigido nas ilustrações 2D foram essencial para fazer uma compensação no desenvolvimento de personagens, que contou com texturas cuidadosamente desenhadas. Para se ter uma ideia, Vagrant Story conta com 320 polígonos, menos da metade dos 700 vistos em Final Fantasy VII e VIII, mas olhos, bocas e expressões faciais muito bem evidenciados trazem detalhamento único aos personagens. O artista talentoso por trás dessa parte foi Eichiro Nakatsu (diretor de arte de Dragon Quest XI) que trouxe toda a sua bagagem no trabalho com pixels para possibilitar esse feito.



Os ambientes refletiam o mesmo capricho através de cenários bem elaborados que remetem a cidades europeias da época medieval, mais precisamente do sul da França onde parte da equipe de Matsuno pode viajar e colher informações precisas sobre a estrutura do lugar. O desafio de trabalhar com recursos limitados extraiu ao máximo da capacidade técnica de cada integrante do time de desenvolvedores. Um trabalho com cores primoroso dava o tom necessário para dar vida aos cenários através de um efeito de iluminação e sombreamento praticamente artesanal, deixando de lado o recurso de engines gráficas. As passagens subterrâneas traziam um clima soturno e eram repletas de desníveis possibilitando estratégias diferenciadas no combate.



Tamanho capricho ficaria ainda mais evidenciado por meio da contribuição de Jun Akiyama, responsável pelas cutscenes. Sua técnica consistia em um jogo de câmeras que tirava o melhor proveito ao variar ângulos e enfoques de cada acontecimento, evidenciando qualidades gráficas e ajudando a minimizar possíveis imperfeições. A introdução da história é o seu maior momento onde vemos uma série de técnicas de transição, close-in e close out.

A trilha sonora ampliava a emoção através de aspectos simples, como o barulho do metal das armas chocando contra o inimigo, indo até composições que ditavam o ritmo de luta contra os chefes. Sua música original, feita de forma pouco convencional, traz a assinatura de Hitoshi Sakamoto. A princípio sua ideia era trazer o mesmo trabalho orquestral visto em Final Fantasy Tactics, contudo, Matsuno orientou que a música deveria ser mais profunda e pesada, levando Sakamoto a buscar inspiração em obras como Arquivo-X e de trabalhos de mestres consagrados como Hans Zimmer e James Horner.



O compositor ainda se mostrou impressionado com o esforço da equipe de desenvolvimento, usando o exemplo para motivar ainda mais seu trabalho. Não obstante da meta do grupo de poupar recursos, Sakamoto tinha em mente que utilizar amostras de áudio, algo extremamente difundido no trabalho de edição sonora, tomava exigia muito da capacidade de processamento. Afim de minimizar esse gasto e otimizar seu trabalho, o compositor fez uso de sons rústicos, alterando suas frequências e ondas para criar cada efeito sonoro que escutamos no jogo. As melodias resultantes deram vida a uma coletânea de 57 faixas muito elogiadas e que até hoje integram as playlists de muitos jogadores.

O jogo passou por algumas alterações entre a sua concepção e a versão final, reveladas pelos produtores em algumas entrevistas: a princípio, a proposta do título era de trazer uma experiência cooperativa na campanha e com os clássicos NPCs para interação, talvez teríamos Callo como a segunda opção controlável. Contudo, o diretor optou pela experiência solo e que enfatizava o clima de cidade devastada, eliminando a presença de transeuntes e comerciantes. Fora isso, a presença constante de um segundo agente comprometeria o desempenho no resultado final.;
Devido à capacidade técnica limitada do console e o prazo de entrega, estima-se que 50% do roteiro original precisou ser removido da versão final que conhecemos;

A cidade de Valendia integra o mundo de Ivalice, um dos muitos mundos abordados na série Final Fantasy, mais precisamente em Final Fantasy Tactics e Final Fantasy XII. Entretanto, não há nenhum envolvimento ou menção dos personagens aqui presente em alguma dessas obras.

FF XII carregava não só o mesmo universo, como também o excelente gosto artístico de Vagrant Story

Experiência inesquecível

Jogar Vagrant Story foi algo marcante na minha vida. Além de representar uma curva de aprendizado tremenda no aperfeiçoamento do meu inglês que na época, não só eu, como muitos de vocês engatinhava no idioma e fazia de tudo para compreender ao máximo da história. Somado a isso, ele tinha jogabilidade complexa que trazia sua dificuldade, mas ao mesmo tempo sabia recompensar nosso esforço. Na ocasião em que finalizei a campanha, não tive maturidade o suficiente para reconhecer e apreciar a qualidade excepcional presente nesse título. Ao relembrar diversos momentos para realizar esse trabalho, fui dominado por um misto de admiração, surpresa por não ter notado tantos detalhes e uma extrema vontade de mergulhar mais uma vez nessa aventura.



Infelizmente o jogo foi abafado pela febre Final Fantasy que na época era uma franquia mais popular e rentável do que um estreante no mercado. Embora o título tenha recebido boas vendas nos primeiros meses, elas não foram suficientes para convencer a Squaresoft de que deveria investir em uma sequência.

Atualmente Yasumi Matsuno encontra-se fora da Square e trabalhando em um projeto financiado por fundos no Kickstarter chamado de Unsung Story e com toda a empolgação do público acerca do lançamento de Final Fantasy VII Remake, a chance de algo envolvendo Vagrant Story são mínimas. Nos resta apenas a lembrança de uma das mais belas experiências da era PlayStation e a forte recomendação para os apaixonados pelo gênero que não puderam jogá-lo.

Revisão: Farley Santos
Referências: Eurogamer e Final Fantasy Fandom


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