Análise: RAD (Multi) é um roguelike charmoso e radioativamente divertido

Lançamento da Double Fine traz uma jornada mutante em um futuro pós-apocalíptico.

em 28/08/2019

Entrada da Double Fine Productions no gênero roguelike, RAD (Multi) é um título que parte de uma proposta inventiva que promete trazer as principais marcas dos sucessos da produtora: um conceito carismático, foco na ambientação e jogabilidade bem polida em um pacote sem grandes excessos.

A pedida da vez é uma aventura por paisagens pós-apocalípticas coloridas e cartunescas, onde controlamos um jovem disposto a usar os próprios genes como arma para fazer o caos radioativo voltar-se contra si mesmo. Parece uma boa, mas será que é, mesmo? Confira conosco!

O (terceiro) fim está próximo!

Pois é, o apocalipse. O dia tão temido chegou e, surpreendentemente, a humanidade conseguiu lidar até que bem com a situação, dadas as devidas proporções. O que "quebrou as pernas" mesmo foi o segundo armageddon — esse, sim, pegou todos de surpresa e transformou a superfície da Terra em uma galeria de horrores irreconhecível.

É nesse clima que RAD transpõe o humor inventivo característico de algumas das produções da Double Fine para o ramo da ficção científica pós-apocalíptica, apresentando um cenário bastante carismático, regado a pura psicodelia vaporwave.

A ambientação é, sem dúvida, um dos grandes pontos fortes do game. Os cenários coloridos me fizeram lembrar das paisagens alienígenas de Ratchet & Clank, e a trilha sonora é embalada por faixas sensacionais — incluindo até mesmo paródias retrowave de canções como "Rio", do Duran Duran, e "Take on Me", do a-ha.

Em meio a esse embalo inspirado, nossa aventura narra a jornada de um corajoso jovem que se candidata a ajudar os misteriosos Menders, seres cósmicos detentores de tecnologia pra lá de avançada que tentam ajudar nosso planeta a se recuperar de suas duas hecatombes recentes.



Após sofrer um revés terrível em sua tentativa de curar o planeta, os Menders recorreram a uma gambiarra genética experimental para tentar resolver o problema: você! Somente com condições muito especiais é possível para um ser vivo desbravar as terras caóticas do Fallow e reativar os Breathers, maquinários poderosos de terraformação danificados no segundo apocalipse.

Reconstruído pelo seu maquinário cósmico e equipado com um taco de beisebol imbuído do coração de um Mender, nosso herói torna-se capaz de absorver a radiação mortal que impregna a atmosfera e convertê-la em mutações super úteis para combater os monstros que infestam as terras perdidas do Fallow.



De quebra, caso o pior aconteça, a tecnologia Mender consegue reconstruir nosso jovem corajoso para tentar novamente  —  ao custo de iniciar essa jornada dolorosa do zero, é claro. Assim é que as aventuras atípicas de nosso herói mutagênico adquirem os contornos de um carismático roguelike onde nosso próprio DNA é o campo de batalha.

Trocando os pontos de experiência pela radiação, ao invés de equipamentos que podem ser descartados e trocados por versões mais poderosas, a progressão de poderes em RAD está atrelada à transformação irreversível de nosso personagem.

Esse é um dos problemas com a genética: ela é tão implacável quanto é imprevisível! Cabeça de cobra, braço destacável, asas e chifres fazem parte das opções de poderes que podem ser sorteados aleatoriamente a cada subida de nível. Cabe a nós descobrir a melhor maneira de colocar tais talentos a serviço do futuro continuado do planeta.


Aventura em constante mutação

Assim, a dinâmica de RAD se organiza em torno das tentativas repetidas de superação, em uma tacada só, de um percurso principal de seis níveis. Ao final de cada nível, é possível retornar à cidadela que serve como hub entre as missões e dar uma pausa temporária na run, ou prosseguir direto para o próximo setor.

Como um título de ação roguelike, o foco da experiência se concentra no desafio elevado, atrelado a fatores aleatórios. Morrer em qualquer ponto do percurso significa voltar à estaca zero (na primeira fase, com todos os upgrades perdidos), com pouquíssimos elementos de progressão fixados entre uma run e outra. Nada de loads ou segundas tentativas: é o bom e velho permadeath.



Me parece seguro afirmar que os pilares de um bom roguelike são o fator de novidade e variedade de cada run e o equilíbrio entre aleatoriedade e habilidade na determinação do sucesso do jogador. Quando bem alinhados, esses fatores garantem que o loop de tentativas se mantenha incentivador e cativante, balanceando a frustração do permadeath com o charme irresistível da próxima tentativa. Felizmente, RAD consegue implementar ambos fatores de forma mais do que suficiente, ainda que com alguns escorregões.

Os fatores randômicos determinam praticamente todos os aspectos de cada run. Do design de cada nível aos poderes adquiridos, passando pelos itens encontrados e até mesmo os chefes ao final de cada setor, tudo é formatado aleatoriamente entre uma jornada e outra. Isso significa que grande parte das dificuldades a serem enfrentadas é determinada de forma totalmente circunstancial: há tentativas que deslancham rapidamente, enquanto outras parecem desde o início destinadas ao fracasso.

Na minha experiência, ambos os casos foram bastante divertidos, cada qual com seu próprio charme: tanto a deslanchada faz aumentar a tensão e o suspense em torno de se superar o jogo, quanto o aspecto sofrido de ter de se virar com poderes meia-boca e mal combinados, poucos drops de itens ou um desenho especialmente infeliz do mapa acabam tendo sua graça própria.

A geração procedural dos níveis é realizada com bastante elegância. Tanto o belo acabamento visual quanto o level design das fases em si garantem que a primeira impressão do jogador dificilmente será a de que se trata de uma dungeon procedural, dado o nível de detalhes e o aspecto orgânico com que as peças do cenário se montam.



O jogo aproveita muito bem o aspecto básico de sua jogabilidade, engatando de maneira estratégica labirintos simples e setores de exploração lenta com aspectos bem básicos de plataformagem. Pela maior parte do tempo, o jogador estará explorando os quatro cantos do mapa da superfície ou os túneis subterrâneos que conectam seus diferentes setores em busca de encontrar e ativar os Breathers necessários para abrir o caminho para o próximo setor.

Cada nível possui sua configuração própria de desafios, que mudam de lugar mas permanecem sempre os mesmos de acordo com a fase. Tudo é bastante intuitivo, ao melhor estilo "pegar e jogar". Alguns dos obstáculos mais perniciosos como armadilhas e alguns dos elementos prejudiciais relacionados à progressão das mutações são introduzidos às cegas e de forma propositalmente sacana, nos fazendo "sentir na pele" o quão árdua é a jornada por esse mundo (pós-)pós-apocalítpico.



Cada Breather ativado potencializa o processo de terraformação do planeta, fazendo nascer uma cobertura verde em torno de si. Além disso, ao correr pelas terras do Fallow, nosso herói também espalha um pouco da energia concedida pelos Menders, criando uma trilha de vegetação que vai se expandido com o tempo: um efeito visual maneiríssimo que, de quebra, serve como marcador visual prático para nos orientarmos a respeito das áreas já percorridas da fase.

E o que seria de uma aventura roguelike sem nenhum tipo de loot? Os itens também cumprem um papel central na experiência. Os dois coletáveis principais são as fitas cassete (Tapes), que servem como moeda de troca principal, e os disquetes (Floppies), que servem como chaves para desbloquear baús e portas.


Nos intervalos entre as fases, os Tapes podem ser depositados em uma conta bancária, o que faz com que sejam um dos poucos aspectos acumuláveis entre uma run e outra. Conforme os investimentos do jogador aumentarem, novas funções vão sendo adicionadas à conta, sendo que é possível sacar a grana sem custo adicional no hub, ou a partir de taxas variadas em terminais espalhados pelo Fallow.

As mercadorias que podem ser compradas (ou encontradas pelo mapa, em baús ou matando monstros) são os itens consumíveis que, em circunstâncias normais, só podem ser armazenados um de cada vez pelo jogador; além dos acessórios equipáveis, igualmente restritos a apenas um por vez. Sua caça e uso bem planejado são aconselhados —  um bom acessório, em especial, pode ser capaz de compensar por uma situação genética mais azarada, por exemplo.

Abrindo alas para o Homo Superior (?)

Por falar em genética, como não poderia deixar de ser, o grande destaque da experiência fica por conta das mutações sofridas por nosso herói, que ao longo de sua jornada vai se transformando de um jovem ordinário a um verdadeiro "X-Men de Chernobyl".

Essas mutações dividem-se em dois tipos básicos: Exomutations, transformações principais que mudam o aspecto físico externo do personagem e adicionam uma nova habilidade ao seu arsenal; e as Endomutations, mutações secundárias que atuam como habilidades passivas, concedendo pequenos benefícios cumulativos.



As Exomutations são as mais importantes e determinantes para o desenvolvimento do personagem, uma vez que determinam suas habilidades básicas (e muito necessárias) de ataque e defesa para além do limitado taco de beisebol. Assim sendo, elas só são adquiridas com o acúmulo de radiação — ou seja, subindo de nível.

A cada barra de experiência preenchida, é possível tanto receber um novo poder quanto evoluir um poder já adquirido anteriormente. Também há transformações exclusivas para cada poder, que dependem de certos requisitos especiais para serem habilitadas

Já as Endomutations são mais comuns e numerosas, e podem ser adquiridas interagindo com maquinários Mender escondidos aleatoriamente pelo mapa, ou através de injeções consumíveis específicas. A maioria delas garante buffs como invulnerabilidade a determinado elemento ou maior velocidade de corrida — as mais interessantes, no entanto, são aquelas que interagem com os poderes principais, beneficiando sinergicamente as Exomutations.



Assim como o aspecto da terraformação, a mecânica de mutações traz uma excelente complementariedade entre o visual e a jogabilidade. Ao mesmo tempo em que é muito bacana (e um pouco aterrorizante) acompanhar a transformação gradual de nosso herói em uma completa aberração da natureza, essa mutação visual sem volta vai se refletindo diretamente em sua jogabilidade, de modo igualmente irreversível.

Enquanto a primeira etapa de cada run traz sempre a mesma movimentação restrita de saltos e ataques com o bastão, cada mutação traz transformações consideráveis que devem ser sempre levadas em conta, já que o nível do desafio nos força a mobilizar toda e qualquer arma que tivermos em nossa vantagem da forma mais eficiente possível.



Algumas mutações mudam profundamente a controlabilidade do personagem — afinal de contas, você não achou que ia continuar a correr e saltar da mesma forma depois de adquirir um balão inflável embutido na cabeça ou evoluir sua constituição física de forma semelhante a de um centauro, certo?

Por sua vez, a utilidade de cada poder é sempre relativa à circunstância em questão, o que faz com que o fator randomizante garanta a tensão mesmo nas runs mais sortudas. Por exemplo, desenvolver asas pode ser a salvação em um mapa especialmente fragmentado, mas não resolverá muita coisa caso se trate de um continente mais uniforme e em plena escuridão.

De forma semelhante, determinado poder pode se apresentar como a sorte grande ao pintar logo nas primeiras transformações — apenas para sermos surpreendidos por um chefe especialmente resistente a ele, o que nos deixa novamente a depender do bom e velho taco de beisebol.


Adaptar ou morrer

Essa necessidade de se adaptar constantemente e dar uma chance a todas as possibilidades e combinações possíveis é um elemento bem bacana, que manteve a experiência com fôlego sempre renovado mesmo nos trechos mais potencialmente frustrantes. O fator de imprevisbilidade é trabalhado de forma simples e eficiente ao longo dos níveis da história — a sensação de não saber o que está por vir é constante.

Claro que alguns padrões vão sendo assimilados pelo jogador conforme o número de tentativas feitas cresce. Sendo forçado a experimentar os poderes, itens e acessórios conforme a ocasião, o jogador vai se habituando ao catálogo de possibilidades do game. Porém, conforme o fator de surpresa cai, a visão panorâmica do jogo aumenta, nos deixando mais inteirados sobre o que exatamente será necessário para superar o desafio.



Foi muito divertido perceber que, após algumas sessões de confusão (e considerável apavoro) inicial, passei a me sair bem em cada run com bastante consistência, inclusive já "torcendo" para obter determinada mutação que seria especialmente eficiente em combinação com a que eu já tinha recebido.

Aliás, para quem deseja dar um tempo nos guias e se aventurar às escuras em uma experiência de complexidade média, porém totalmente auto-explicativa, o título acaba sendo uma excelente pedida. Todas as informações sobre os poderes e itens atuais se encontram catalogadas in-game na opção Notebook, e a experiência compartilhada desses cadernos vai sendo toda transcrita no Tome of the Ancients, inventário e bestiário geral que traz as informações essenciais (e outras nem tanto) sobre o mundo de RAD.


O mesmo pode ser dito sobre os diferentes níveis do jogo: cada fase traz seu ritmo próprio, e a exploração das estratégias que melhor funcionam é um dos elementos mais divertidos da experiência. Com a interface de usuário bem otimizada e um utilíssimo mini-mapa bem detalhado, a aventura pelas paisagens hostis torna-se um tantinho menos assustadora — embora cada visita inicial a uma fase inédita tenha me causado um belo apavoro.

Os inimigos são espalhados de forma estratégica pelo mapa, e apresentam padrões de ataque e defesa fixos e bem assimiláveis. Embora teoricamente seja possível dar conta de tudo e de todos apenas com o uso do fiel taco de beisebol (que pode ser trocado por versões com truques especiais), na prática as mutações adquiridas determinam fraquezas e vantagens específicas contra essas monstruosidades. É muito satisfatório descobrir determinada combinação de poderes e, dai em diante, testar a estratégia em diferentes contextos.

Isoladamente, os combates acabam dependendo principalmente do cuidado do jogador. Quando os mutóides se unem em grupos maiores, no entanto, é que a coisa pega: além do cuidado, muita habilidade (e, por que não, sorte!) passam a contar para que a situação não desvirtue rapidamente em um desastre.


Tipos diferentes de inimigos se tornam especialmente mortais quando combinados entre si, coisa que vai se tornando cada vez mais comum conforme o jogo progride e os corredores estreitos vão dando lugar a verdadeiras arenas de batalha caótica e explosiva — as quais, mais uma vez, não estariam fora de lugar em um game de Ratchet.



Ainda que o desafio gradual vá dando uma chance para o jogador reagir com habilidade à chuva de randomização que o aguarda pelo Fallow, o grande brilho de RAD sem dúvida se encontra no aspecto de imprevisibilidade.

Neste sentido, o jogo inesperadamente me evocou um pouco do espírito de aleatoriedade (tragi)cômica de ToeJam & Earl: Back in The Groove (Multi), embora a dificuldade de RAD seja mais equivalente à do implacável jogo de estreia da franquia do que a de sua versão mais recente, que ao menos brinda o jogador iniciante com opções gradativas de dificuldade.




Com isso em mente, as duas principais ressalvas com que eu saí da experiência no geral muito satisfatória de RAD tiveram justamente a ver com o ritmo de exploração do jogo. A primeira — mais simples e talvez fruto de uma comparação um tantinho injusta com ToeJam — diz respeito à ausência de um modo multiplayer local.

A fórmula era absolutamente perfeita para isso: se simplesmente assistir a alguém jogando esse jogo pode ser em si algo super divertido, o que dizer de uma aventura cooperativa em dupla, com o nível de dificuldade devidamente elevado para receber os desafiantes de forma implacável?


A outra, um tanto mais significativa, diz respeito ao ritmo do loop de tentativas no jogo. O fato é que a etapa inicial de cada partida — em geral antecedendo o ganho da primeira mutação, mas podendo se estender um pouquinho além disso caso a sorte não nos sorria o suficiente — pode ser considerada um tantinho lenta e repetitiva em comparação ao restante da experiência.

Como efeito, especialmente enquanto ainda tenta pegar o jeito da coisa, o jogador pode se ver possivelmente desmotivado em atravessar a mesma etapa inicial novamente. Trata-se de uma sequência onde muito pouco acontece e, destoando do restante da aventura, tem-se uma impressão de "encheção de linguiça" entre o vai-e-vem para habilitar os primeiros Breathers.

Conforme a partida se desenvolve, felizmente a coisa muda de figura e todo o real potencial do game se revela. Porém, essa etapa inicial provavelmente carece de um "tchans" a mais que garanta que o novo começo não sofra de uma queda completa e total de incentivo em relação à run anterior. Que os tempos de loading sejam um tantinho pesados não ajuda muito, já que isso faz com que a impressão de estagnação dessa etapa inicial se acentue ainda mais.



Assim, não se deixe enganar pela etapa inicial um tanto truncada: RAD traz um equilíbrio muito bem alinhado entre desafio e recompensa, o qual é capaz de incentivar o jogador a se dedicar por horas e mais horas em busca de um resultado melhor, em meio a uma tempestade de randomização que nos mantém empolgados (e um tantinho apreensivos) a respeito dos rumos que a nossa jornada mutante tomará a seguir.

O progresso acumulado é estimulante e acompanha gradualmente a acomodação do jogador ao sistema de jogo. Aqueles em busca de um desafio mais elevado encontrarão até mesmo opções ainda mais cruéis de jogo — uma delas, inclusive, propõe que se termine uma run utilizando apenas o taco de beisebol. A ideia, por si só, já foi capaz de me dar pesadelos. Muito obrigado, mas ao menos por enquanto, eu prefiro arriscar os meus genes, mesmo!

Prós

  • Experiência em constante mutação: cada run é uma jornada diferente;
  • Ambientação inventiva e bem-humorada;
  • Desafio empolgante, imprevisível e bem balanceado;
  • Visual carismático, com cenários belíssimos;
  • Trilha sonora sensacional.

Contras

  • Tempos de loading longos;
  • Ausência de um modo multiplayer;
  • Começo lento e um tanto truncado de cada nova run pode cortar um pouco a imersão.
RAD — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 8.5
Versão utilizada para análise: PS4
Análise produzida com cópia digital cedida pela Bandai Namco

é gamer pra todo jogo, mas tem predileção por títulos retrô e um bom e velho JRPG. Sonic, Donkey Kong Country, Ratchet & Clank, Final Fantasy e Disgaea são algumas das séries que formaram a paixão pelos games, desde que ganhou seu Mega Drive, muitos (nem tantos!) anos atrás. Além de escrever para o Nintendo Blast e Game Blast, pode ser encontrado tagarelando no Plano Crítico.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.