“Isso é algo muito japonês” ou “isso é Japão demais” são formas discutivelmente preconceituosas de nos referirmos a um produto que carrega características culturais essencialmente por muitas vezes se tratarem de estereótipos ou sátiras exageradas. O principal problema é que essa ainda é a maneira mais fácil de resumir todas as características principais de Judgment (PS4), spin-off da série Yakuza, de uma maneira imediatamente compreensível para o público.
Passando-se no mesmo universo, aqui não estamos no controle de um integrante da conhecida máfia japonesa, mas de um ex-advogado que, após certos acontecimentos traumáticos, passou a ganhar a vida como um investigador particular, geralmente a serviço de firmas de advocacia que precisam de provas para provar a inocência de seus clientes.
Assim, Takayuki Yagami acaba se sendo o responsável por coletar provas para inocentar um Yakuza de um crime específico de assassinato que ele não cometeu — mesmo que ele claramente tenha ligação — e que logo vai se desenrolando para algo maior que acaba envolvendo um assassino misterioso cujo modus operandi é remover os olhos de suas vítimas. É claro que nem só de peixes grandes vive Yagami, visto que ele precisa pagar o aluguel de sua casa-escritório, fazendo com que o cotidiano dele acabe sendo composto também por casos de infidelidade, gatos perdidos e outras banalidades mundanas.
Esses serviços do dia a dia foram reproduzidos na forma de missões paralelas à principal. Apesar de não terem o mesmo esmero da história central, elas são individuais o bastante para terem seu charme e marcarem o jogador à sua própria forma, como é o caso do editor de livros que precisa do protagonista para resolver uma charada em uma gincana e vencer uma espécie de competição promovida por um autor de mistério para decidir quem irá publicar seu próximo best-seller — afinal, detetives, mistérios e charadas têm tudo a ver.
Vários desses casos introduzem novos personagens que se tornam recorrentes na vida de Yagami, aumentando um medidor de influência na região de Kamurocho, região fictícia baseada em Kabukichou, distrito do bairro de Shinjuku, em Tóquio. Assim, é interessante observar como o mundo aberto retratado no game parece ter vida própria. É possível fazer amizades com alguns transeuntes e com funcionários do comércio local, além de eventualmente conhecer uma ou outra garota com quem o personagem pode se relacionar romanticamente.
Conhecendo as moças, chama atenção como o jogo acaba pontualmente virando um dating sim, cabendo ao jogador realizar escolhas certas nas linhas de diálogos possíveis de se ter com as pretendentes em potencial e comprar presentes a elas a cada novo encontro. Esse é um dos exemplos factuais que mostram como o game é diverso.
Além do gameplay corrente de open world que em determinados momentos acaba entrando em modo de combate, Judgment se utiliza de vários formatos de jogabilidade para ilustrar as atividades de um detetive, como missões de seguir o investigado sem ser percebido, a utilização de um drone para espionagem em locais onde os olhos humanos acabam não alcançando, um modo de observação que serve para identificar pistas ou até mesmo perseguições em alta velocidade pelas ruas de Kamurocho.
Apesar de todas essas possibilidades, o verdadeiro bife do nosso prato feito é o sistema de luta. Assim como muita coisa de todo o resto do jogo, ele é completamente reciclado de Yakuza 6: The Song of Life (PS4), com a diferença de que é possível alternar entre dois estilos distintos para cada situação — brigas generalizadas ou combates individuais. É nesse instante que Yagami acaba mostrando que faz jus ao fato de sua aparência e vestimentas agirem como um pseudo-cosplay de Kyo Kusanagi, com seu estilo de luta é feroz e acrobático.
Outro detalhe que chama atenção (também provindo de Yakuza) é a possibilidade de utilizar o próprio ambiente como armas. Assim, é possível pegar itens que vão desde tacos de beisebol a bicicletas e cones jogados na rua para fazer nossos oponentes beijarem o chão. Como se não bastasse, há um medidor de especial que, dependendo da posição do inimigo, pode ser utilizado para finalizá-lo instantaneamente com um quicktime event.
A forma mais fácil de se recuperar esse EX-Gauge é enchendo a cara de birita, só que isso tem um custo: quando o personagem fica bêbado, o movimento dele acaba ficando mais errático. Por sorte, combos especiais que só funcionam com Yagami bêbado podem ser desbloqueados com pontos de experiência, assim como outras qualidades e habilidades que vão aprimorando as capacidades do personagem, como maior tolerância ao álcool ou a possibilidade de comer nos restaurantes mesmo com a vida completamente cheia, por exemplo.
Assim, Judgment é um jogo diverso, desses que você perde mais tempo se preocupando em fechar as missões paralelas do que seguir com a sua história, que também não deixa de ser envolvente. Contudo, é importante ressaltar alguns pontos que acabam minando a experiência como um todo. Por exemplo, chega a ser incompreensível como um game, em pleno ano de 2019, ainda precisa recorrer a paredes invisíveis para delimitar onde o jogador pode e não pode seguir com o personagem. Outros incômodos reais é a forma como acontece uma travada de leve antes de cada cutscene ou ainda as constantes telas de loading.
Não é como se a equipe de desenvolvimento não tivesse tido tempo de sanar esses problemas de otimização, visto que o produto chegou a ser lançado por um período muito breve no Japão, mas acabou sofrendo um recall e retirado das lojas por conta do problema que Kyohei Himura, ator que deu voz e cuja imagem foi utilizada para modelar um dos personagens, teve com o uso de cocaína que o fez inclusive ser preso pela polícia. Desde o ocorrido, seis meses se passaram até que Judgment fosse relançado (agora internacionalmente) com o ator completamente substituído — igual fizeram com o Kevin Spacey em All The Money In the World.
Outro ponto que pesa negativamente acaba sendo o da repetição. Os combates, por mais fluidos e divertidos que sejam, acabam sempre aparecendo em horas incômodas enquanto percorremos o mundo aberto. É notável também como as missões de seguir um alvo sem ser percebido são tranquilamente as mais recorrentes do game, mas também acabam prejudicando a experiência por serem longas e chatas. Mais do que isso, também são lentas e isso acaba quebrando o ritmo intenso que o título acaba tendo no geral.
Esse revés também acaba ocorrendo com as cutscenes. Por melhor que seja a intenção de replicar a aparência dos atores originais japoneses nos próprios personagens e tentando trazer um clima de seriado de TV para o game, muitas dessas cinemáticas são extensivamente longas atoladas de diálogo, algo que não condiz com a velocidade da jogabilidade prática e deixando o jogador sempre com aquela ansiedade de querer assumir o controle de volta, mesmo que uma opção de acelerar os diálogos com o apertar de um botão esteja disponível.
Nesse aspecto, ele acaba afastando muito o jogador que está atrás de uma experiência mais ativa de bagunçar no mundo aberto e menos contemplativa ou ainda que esteja preocupado com a história em si — afinal, o próprio Yakuza é falsamente tachado como “GTA Japonês”, mesmo que tragam ideias completamente diferentes. É claro que isso acaba sendo uma pena, pois poucos são os games que contam com atuações de tanta qualidade como as dos atores japoneses originais ou mesmo dos dubladores ocidentais da versão em inglês.
E aí retomamos novamente à questão de descrever produtos provindos da terra do sol nascente simplesmente como “muito japoneses”. A série Yakuza e, consequentemente, Judgment, não foram feitos tendo em vista os ocidentais como público-alvo de uma forma abrangente, visto que são gostos diferentes e uma compreensão própria e diferenciada que temos de produtos midiáticos. Judgment, portanto, foi feito tendo em vista seu consumidor local e, eventualmente, um nicho específico ocidental — muito provavelmente aquele popularmente denominado de weaboo, o entusiasta da cultura japonesa.
Ainda assim, isso não desqualifica o game de maneira alguma. O seu exagero ao lidar com as situações presentes no jogo — por que um título sem pretensões de entrar em um campo realmente fantástico ou sobrenatural faria o personagem principal ter uma aura azul enquanto desfere seus golpes de arte marcial, por exemplo? — torna-se algo intrínseco ao que o produto final oferecido realmente é, como uma característica própria.
Bom, sob esse ponto de vista, isso é ótimo, uma vez que Monster Hunter: World (Multi), por exemplo, precisou passar por uma repaginada para se tornar palatável aos gostos ocidentais, mas ao custo de perder certas identidades consolidadas da franquia — que já a fazia vender milhões e milhões de cópias em solo japonês — ao vesti-la com uma roupagem genérica de caçador contra dinossauro em ambientes amplos e combate simplificado de dificuldade nula, se comparado com seus antecessores.
Portanto, a pergunta que fica é: Judgment (PS4) seria o jogo interessante que é se fosse produzido tendo em vista os vícios do mercado ocidental? Ou, comercialmente falando, vale mais a pena ser localizado para o ocidente e ser vendido como um exótico produto japonês, mesmo que ele acabe distorcendo completamente a nossa visão em relação ao que oriente é? É de se pensar.
Prós
- Muita diversidade em termos de gameplay;
- Sistema de combate fluido e dinâmico;
- Kamurocho é um distrito que vive — e você nota isso;
- História envolvente com mais de trinta horas de duração;
- Missões paralelas verdadeiramente interessantes;
- Atuação de primeira linha.
Contras
- Paredes invisíveis em pleno 2019;
- Certos problemas de otimização, como muitos loadings e travamentos antes das cinemáticas;
- Cutscenes muito longas;
- Missões de seguir o investigado muito tediosas;
- Torna-se repetitivo após uma ou duas dezenas de horas jogadas.
Judgment — PS4 — Nota: 8,5
Análise produzida com cópia digital cedida pela SEGA.