O "crunch time" na indústria de jogos e os problemas dele decorrentes

A cada novo título lançado, as grandes desenvolvedoras lucram milhões. No entanto, o "crunch time" prova que o custo humano dela decorrente é praticamente ignorado.

em 15/05/2019



O sonho de toda pessoa é exercer exatamente o ofício que almeja para si. Isso se estende principalmente àqueles profissionais que optam por trabalhos pouco convencionais, como músicos, escritores, esportistas, cineastas e, claro, profissionais voltados ao mercado do entretenimento eletrônico.


Para muitos, estresse, desinteresse, aborrecimento, tédio, dentre outros aspectos negativos, se mitigariam caso trabalhassem no “emprego dos sonhos”. Especialmente em trabalhos que explorem justamente o hobby do profissional. No entanto, a imprensa noticiou uma série de incidentes envolvendo desenvolvedores de games e conflitos trabalhistas entre estes e as empresas que os empregam.

Partindo dessa informação, o que Rockstar Games, NetherRealm Studios, Electronic Arts, Epic Games e Telltale Games têm em comum além de serem empresas que, de tempos em tempos, lançam títulos que recebem diversas premiações e vendem milhões de cópias de seus produtos, quebrando recordes de vendas a cada título lançado? Todas essas empresas (dentre outras) são contumazes ao crunch entre seus desenvolvedores.

O que seria, então, o crunch time e por que o público consumidor, os profissionais da área (atuando diretamente na indústria ou a imprensa especializada) e principalmente as desenvolvedoras devem se preocupar com tal prática?

Crunch time: um dos males da indústria de games

Crunch time (ou simplesmente crunch) é um termo norte-americano utilizado para se referir às extensas horas de trabalho dedicadas pela equipe de desenvolvimento para a conclusão dos trabalhos dentro do prazo pré-estipulado para lançamento (normalmente pelos departamentos de marketing e comercial).

A despeito de soar como recente, problemas com tal prática são registrados há mais de 15 anos, segundo publicação da Business Insider (importante portal de notícias sobre o mercado financeiro e empresarial) em abril deste ano.
Erin Hoffman, a autora da EA Spouse Letter. (Créditos da fotografia a e.delage.)


Tudo começou com uma carta que ficou conhecida como EA Spouse Letter (“Carta da Esposa da EA”, em tradução livre), ainda em 2004, de autoria de Erin Hoffman, à época noiva do desenvolvedor Leander Hasty. Dentre alguns apontamentos, declarou: “ninguém trabalha na indústria de jogos a menos que eles amem o que fazem”. Em outro trecho, afirma que “o amor da minha vida chega em casa tarde da noite, reclamando de uma dor de cabeça que não desaparece e de um desconforto no estômago, e meu sorriso alegre de apoio está se acabando".

Embora não fosse o primeiro documento redigido sobre o tema, foi o primeiro a obter maior atenção. Em razão disso, a EA foi alvo de diversas ações judiciais, culminando no pagamento de milhões de dólares em indenizações.

Outras desenvolvedoras aderem ao crunch

Em 2010, documento equivalente foi redigido, agora direcionado à Rockstar. O Determined Devoted Wives of Rockstar San Diego Employees (“Determinadas e Devotadas Esposas dos Funcionários da Rockstar San Diego”, em tradução livre) trazia informações de que o estúdio estava saturado de má gestão, desorganização e sobrecarga de trabalho. E há informações, inclusive, que antes mesmo da aludida carta vir a público, a Rockstar realizou um acordo multimilionário em um processo judicial em razão de horas extraordinárias que não foram devidamente pagas a alguns de seus funcionários.

Nesse mesmo ritmo, a Telltale mantinha funcionários trabalhando até as três horas da manhã da noite anterior à sua declaração de falência, dispensando mais de 200 funcionários, que não receberam qualquer indenização.
Alguns dos ex-funcionários da Telltale Games
A Epic, por sua vez, obteve real sucesso de seu Fortnite quando foi incluído o modo Battle Royale em setembro de 2017. Segundo informações de funcionários, que preferiram não se identificar, há entre 50 e 100 pessoas que trabalham para a empresa em média 70 horas semanais. Para alguns, a carga horária ultrapassa 100 horas.

Dan Houser, co-fundador da Rockstar, foi criticado por manifestar que trabalhava mais de 100 horas semanais para que o lançamento de Red Dead Redemption 2 fosse disponibilizado ao público na data prevista. Segundo as críticas, sua manifestação insurgia como uma campanha de marketing, ao passo que os funcionários da empresa mantinham tal ritmo de trabalho porque, afinal, esse é o ofício deles e aquilo que os sustenta, a despeito de todos os problemas físicos e psicológicos decorrentes do trabalho exaustivo.
Chamada da Forbes em novembro de 2018 comparando as vendas de RDR2 em relação ao seu predecessor.
Em 2018, a revista Super Interessante informou que Hollywood faturou no ano de 2016 (com seus 100 títulos mais lucrativos) a quantia de US$ 25,6 bilhões, ao passo que o mercado do entretenimento eletrônico atingiu a marca de US$ 91 bilhões no mesmo período.

Embora tais números sejam extraordinários e muitos dos trabalhos cujo produto final consumimos nos empolguem, há um preço muito alto que se paga além dos bilhões de dólares envolvidos mas que, no final das contas, não é contabilizado e sequer reconhecido, seja pela indústria, seja pelos próprios consumidores.

A maioria dos estúdios de games se concentram nos Estados Unidos, país que, embora possua uma legislação trabalhista própria e fortes sindicatos, se mostra bastante tolerante com práticas abusivas nas relações de emprego, com muitos dos casos denunciados sendo solucionados somente nos tribunais.

Por outro lado, mesmo após 15 anos das primeiras denúncias de crunch, se percebe que a manutenção da prática é cada vez mais comun, embora seja altamente prejudicial para os diretamente envolvidos (no caso, os desenvolvedores). Os recordes de lucros atingidos pelos produtos oriundos das empresas mencionadas (e outras mais que se beneficiam da prática) refletem numa segunda política tão cruel e desumana quanto: os lucros cobrem eventuais indenizações.

James Longstreet, que trabalhou para a NetherRealm em Mortal Kombat 9, publicou em 24 de abril uma thread (sequência de mensagens contínuas sobre determinado assunto) em sua conta no Twitter que "trabalhar na NetherRealm em MK9 quase me matou", além de que não dormiu "mais do que quatro horas por dia durante meses". Esse relato se soma ao de outro ex-funcionário à Business Insider, que não quis se identificar, que afirma ter trabalhado mais de 90 horas semanais em Injustice.
Alguns dos "tuítes" de James relatando sua experiência junto à NetherRealm
Em resposta, a NetherRealm se limitou ao discurso de que aprecia e respeita todos os seus funcionários, "priorizando a criação de uma experiência de trabalho positiva", concluindo que tomam "medidas para reduzir o crunch dos funcionários". Tal arguição é vazia e genérica, considerando o histórico da indústria sobre o tema, onde simples promessas e alegações não se mostram suficientes — em especial quando indenizações milionárias, que deveriam mitigá-las, se mostram insuficientes.

Tais casos não se limitam apenas ao crunch. Há denúncias de abusos de todos os tipos, como a ocorrência envolvendo Scott Gelb (Diretor de Operações da Riot Games), que foi suspenso em 2018 por diversas condutas contra outros funcionários da desenvolvedora, que variam desde humilhações a má conduta sexual e discriminação de gênero. Há denúncias, inclusive, de dispensa de trabalhadores que se recusaram a trabalhar aos finais de semana em situações em que alguns prazos foram perdidos, segundo o sítio na Internet da Game Workers Unite.

Horas excessivas de trabalho violam direitos no mundo todo

Em um momento politizado como o atual, não se deve ignorar alguns conceitos básicos: é inevitável que todos aqueles em idade hábil para o trabalho (sem desconsiderar aspectos como idade e condições de saúde) necessitam de um ofício para se manterem. E dentro de uma economia de mercado, há sempre alguém (ou algo, no caso das empresas) que exploram a mão de obra de pessoas que, em contraprestação, remuneram seus respectivos trabalhos.

Os males decorrem quando a demanda pelo trabalho de um determinado grupo extrapola condições razoáveis e minimamente humanas desse mesmo trabalho. Horas extraordinárias eventuais em situações emergenciais são esperadas e, por tal razão, muitos países, além do Brasil, estipulam um teto para horas comuns de trabalho e, após esse período, todas as demais horas serão reconhecidas como extraordinárias. Outros países, infelizmente, retratam a mera contraprestação financeira como suficientes para reequilibrar a relação trabalhista.

Mesmo os Estados Unidos, com toda sua cultura empresarial, possuem um teto de carga de trabalho horária semanal em média de 40 horas, sendo acompanhados pela China e Rússia, a título de exemplo. Irlanda e França, por sua vez, estipulam um teto de 30 horas.
Eleanor Roosevelt segura um cartaz contendo a DUDH. O artigo XXIII, "1", determina que "todo ser humano tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho".
Como mencionado, há uma cultura da sindicalização de várias categorias profissionais nos Estados Unidos mas, infelizmente, aquelas que compõem o mercado do entretenimento eletrônico não é uma delas. Com o intuito em unir tais trabalhadoras, foi criada a Game Workers Unite que, embora não seja um sindicato propriamente dito, é uma organização voltada justamente para sua sindicalização.

O excesso de carga de trabalho afeta diretamente o bem estar principalmente dos desenvolvedores (cuja pressão sobre prazos oriunda principalmente dos setores de gestão e marketing), sendo recorrentes casos de estresse, desenvolvimento de depressão e exaustão que, por fim, culminará na ruína da vida pessoal de cada um destes profissionais cujos trabalhos tanto admiramos e que nos entretém.

É necessário que algo seja feito

Considerando tais fatores, cabe uma reflexão importante: quais são as medidas necessárias para que situações como essas não mais ocorram? Em um mundo ideal, a indústria deveria se conscientizar e assumir sua total responsabilidade sobre a prática, no entanto, isso está longe de se observar.

O segundo aspecto decorre da tentativa dos trabalhadores no ramo do entretenimento eletrônico em se sindicalizarem, que é algo que já ocorre. Com representação de classe, há maior força para pressionar as desenvolvedoras a alterarem suas políticas e melhorarem as condições de trabalho de seus funcionários.
Capa da página no Facebook da GWU
Algo equivalente ocorreu com a greve dos roteiristas entre 2007 e 2008 nos Estados Unidos, suspendendo ou interrompendo a produção de diversos longas-metragens e seriados de televisão, forçando a indústria do entretenimento de rádio, TV e cinema a reverem as condições de trabalho destes profissionais.

O terceiro passo envolve o público alvo do entretenimento eletrônico: os jogadores. Todos nos empolgamos e adoramos os novos anúncios e lançamentos. Mas, por trás de sorrisos e satisfação com o produto final, há centenas de pessoas que sofreram para que tais chegassem aos nossos consoles e computadores. A indústria não sobreviverá sem estes dois grupos: o desenvolvedor e, consequentemente, o consumidor.

Cobrar que as empresas de quem consumimos oportunizem melhores condições de trabalho a seus funcionários é algo de suma importância para a saúde de todos aqueles diretamente envolvidos e, a despeito de eventuais alegações de que a desenvolvedora se atenta a tais ocorrências (como ocorreu à NetherRealm), caso a desenvolvedora insista em tais práticas, o boicote é a melhor forma de punirmos, como consumidores, os estúdios que não mantém qualquer respeito por seus trabalhadores.

Enquanto houver lucro indiscriminado, tais práticas se tornam vantajosas diante da diferença entre aquele e eventuais indenizações. Sem vendas, sem lucro — e sem este, será o capital direto da desenvolvedora a arcar com custos trabalhistas, exigindo que repensem suas políticas.
Roteiristas durante a greve de 2007-2008 ocorrida nos Estados Unidos.
Muitos dos desenvolvedores se situam nos grupos que destacamos no início do artigo: trabalham em algo que amam. Contudo, se aqueles que lhes empregam induzem práticas que fazem com que o “emprego dos sonhos” contribua com a destruição de suas expectativas pessoais, de suas vidas, de sua própria saúde e sanidade, competirá a nós mantermos a consciência e privilegiarmos os responsáveis para que a mesma se mantenha (no caso, os desenvolvedores).

No momento em que levarmos isso em consideração, somado ao sindicalismo dos profissionais da área, as desenvolvedoras não terão outra opção senão lidarem com seus funcionários não como máquinas que geram lucros, mas exatamente como são: seres humanos.

Revisão: Francisco Camilo 

Mineiro, apaixonado por livros, música, filmes, discussões, Magic: The Gathering e, claro, jogos eletrônicos.
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