Análise: ame-o ou odeie-o, killer7 (PC) não é um jogo fácil de se lidar

O remaster do clássico cult de Suda51 chega finalmente ao PC e é uma boa oportunidade para checar se o seu conceito único foi mais uma vítima das implacáveis areias do tempo.

em 03/02/2019

Lançado originalmente em 2005, as versões originais para PlayStation 2 e GameCube de killer7 foram desenvolvidas pela Grasshopper Manufacture sob a tutela da Capcom. O título foi um verdadeiro divisor de águas, visto que ele foi o principal responsável por colocar o estúdio em proeminência de nível mundial pela primeira vez, em vista que, até então, apenas títulos de pouca expressividade haviam sido produzidos, a exemplo de The Silver Case (PS), Michigan: Report from Hell (PS2) e Flower, Sun and Rain (PS2/DS).


Sua proposta, naquele momento, era singular. De maneira crua, é possível descrever que killer7 (PC) conta a história de um assassino com múltiplas personalidades chamado Harman Smith e seu envolvimento no conflito entre os Estados Unidos e dois partidos políticos do Japão — isso num contexto em que um tratado de paz mundial foi assinado entre os países. Qualquer coisa além disso acaba adentrando com muita força no campo da incerteza, do surrealismo — na concepção da palavra relacionada ao movimento artístico — e da psicanálise.

Esse tipo de concepção só foi possível por conta da carta branca dada por Shinji Mikami, criador de Resident Evil, a Suda51, o principal realizador do game, visto que killer7 fugia — e ainda foge — das principais convenções exigidas de um produto mercadológico. Originalmente previsto apenas como um scenario writer, o responsável por determinar a ambientação de um título, Mikami o incentivou a dirigir e coordenar cada linha do game, promovendo uma liberdade criativa que o próprio Suda declarou que nunca mais teve em projetos posteriores.

Pois bem, com uma ambientação noir e jogabilidade em trilhos, killer7 se tornou um verdadeiro clássico cult, colocado num pedestal por um grupo seleto de jogadores que o idolatra justamente por seu caráter experimental.


As sete facetas de Harman Smith

A jogabilidade de killer7 pode ser descrita de forma simplista como um jogo de tiro sobre trilhos. Isto é, apesar de os cenários do game se tratarem de ambientes tridimensionais, o caminho percorrido pelo personagem na tela é pré-determinado, cabendo ao jogador escolher se ele decide seguir em frente, retornar por onde veio ou selecionar entre duas opções de caminhos em uma bifurcação.

Em determinados momentos, alguns inimigos invisíveis aparecerão e andarão na direção do personagem como um zumbi proveniente de outra franquia. Nisso, é necessário entrar na interface de combate — acessada com o apertar de um botão — escanear o ambiente para tornar os alvos visíveis, mirar em seus pontos fracos e atirar. Um toque interessante é que, considerando essa qualidade de translucidez dos oponentes, o jogador percebe a presença deles a partir de um som característico que emitem, obrigando-o a ficar atento enquanto vasculha os corredores das fases.

Tais estágios, por sua vez, seguem um padrão. Cada um conta com uma arquitetura individual distinta, mas o formato é sempre o mesmo: resolva alguns enigmas — que, vale ressaltar, lembram um pouco os da série Resident Evil — e colete as chamadas Souls Shells, que servem como taxa de entrada para os combates contra os chefes. Para isso, alguns poderes específicos das personalidades de Harman precisam ser utilizados a fim de esclarecer alguns dos quebra-cabeças.

Ao todo, cada uma dessas facetas serve como um personagem diferente, com seus próprios atributos e habilidades, incluindo a barra de vida. Kaede Smith, por exemplo, é uma japonesa que, ao cortar os próprios pulsos, absorve o sangue do estágio, revelando certos segredos antes ocultos. Kevin Smith, por sua vez, tem a capacidade de ficar invisível, enquanto Dan Smith utiliza sangue para fortalecer os tiros dados por seu revólver.

Sangue, aliás, é a principal moeda do jogo, conseguido após a derrota dos inimigos espalhados pelo estágio. O chamado thick blood (sangue espesso) pode ser utilizado para melhorar os atributos dos personagens. O thin blood (sangue fino) já é aquele que pode servir para recuperar os pontos de vida, bem como matéria-prima na utilização dos vários ataques especiais das sete personas de Harman. 

“Você não gostou porque não entendeu!”

Tal máxima é constantemente utilizada em discussões do campo da arte e implica que a falta de compreensão do objeto de discussão minou de forma direta a experiência de utilização do produto em sua plenitude. Isso, de certo modo, é aplicável a killer7. Entretanto, cabe ressaltar que ainda assim não serve de justificativa para isentá-lo de seus problemas.

Isso diz respeito especificamente às mecânicas de gameplay. A fim de contextualização, é notável como jogos mais antigos, eram concebidos com jogabilidade simplificada por conta de limitações do próprio hardware, fazendo com que o jogador pudesse aprendê-la de maneira completamente intuitiva e autodidata — o manual, na maioria das vezes, não passava de formalidade.

Atualmente, com os avanços tecnológicos, é comum que muitos desses jogos ou demonstrem uma seção simplificada e imediata de tutorial ao início do título, ou acabem apresentando as diferentes características de jogo ao longo de sua progressão natural, organicamente. O caso de killer7 se aplica na primeira dessas hipóteses. Entretanto, o simplório tutorial não é suficiente para ilustrar as principais habilidades de cada persona, nem ao menos nos moldes de charada para que o próprio jogador tivesse que deduzir por conta própria.

Isso acontece paralelamente ao fato de o jogo dar a resposta de bandeja de muitos dos enigmas que normalmente exigiriam um tempo maior de processamento intelectual para serem resolvidos. Ou seja, há um desequilíbrio dos momentos em que o jogo precisa assumir as rédeas e guiar o jogador em relação aos que o próprio deveria pensar por conta própria.

Nesse aspecto, é completamente plausível que certos pontos de história permaneçam abstratos e ambíguos na finalização da campanha. Na parte de gameplay, por outro lado, essa característica não passa de uma falha evidente que acaba prejudicando a experiência que essa mesma narrativa assumidamente surreal possa oferecer.


Remasterização (quase) no capricho

Há algum tempo que é do desejo do Suda relançar killer7. Embora o jogo seja uma propriedade intelectual da Capcom, a responsável pelo serviço no lançamento para PC foi a NIS America. A questão é que, no anúncio dessa versão da Steam, alguns problemas imediatos já colocavam em xeque o produto final que seria lançado meses depois, visto que a jogabilidade do trailer apresentado correspondia a, na verdade, uma versão emulada do game.

Por sorte, a performance do produto final no computador não deixa nem um pouco a desejar. Os gráficos, em cel shaded, são incrivelmente polidos e as animações são fluidas. Nesse aspecto técnico, killer7 é um exemplo como poucos de transição e remasterização. O problema, contudo, são algumas decisões práticas da própria equipe da NIS America que tiveram consequências negativas na jogabilidade prática.

A principal delas, cuja existência resulta em todos os problemas posteriores, é a decisão de deixar o bruto do jogo completamente intocado. Na teoria, isso pode parecer interessante por manter a integridade da obra. Entretanto, na prática, isso só passou a impressão de que essa remasterização em questão não teve a devida atenção que merecia. Por exemplo, o menu de configurações é uma janela acessada fora da aplicação, com ela fechada, antes da inicialização do game.

Outro ponto que merece ser considerado e que pesou negativamente foi no mapeamento dos controles no teclado. Muito longe de questionar qualquer combinação de botões realmente esquisita que eles possam ter feito, a preguiça em mudar o texto do jogo que teoricamente deveria indicar os botões de alguma ação acabou causando confusão. Pois bem, se estou utilizando o controle e o mouse para jogar, por que o game na tela indica comandos do Dualshock do PlayStation, como bola e quadrado? Afinal, não é como se a jogabilidade já não fosse elaborada e confusa por si só.


killer7 é um gato de Schrödinger

Na física, há uma conhecida teoria a respeito que ilustra, de uma forma hipotética, um gato dentro de uma caixa. Tal felino pode ou não ter sofrido os efeitos da radiação e/ou do veneno presentes no mesmo compartimento. Para todos os efeitos, o gato está, ao mesmo tempo, vivo e morto. A verdade só virá à tona caso a caixa seja aberta e o veredicto a respeito de sua condição possa ser dado.

O caso de killer7 é similar. Por conta de seu caráter experimental e pouco mercadológico, chega a ser difícil cravar que se trate de um jogo universal que vá agradar a qualquer um que o jogue. Não é algo cuja intencionalidade seja possível de direcionar para um público casual ou hardcore, por exemplo. Isso só vai depender do indivíduo em questão, que vai descobrir a sua chamada compatibilidade com o título de um único jeito: jogando.

Chega a ser interessante como killer7 não envelheceu nem um pouco desde seu primeiro lançamento. A sua concepção original mostrou-se completamente atemporal. Assim, estendendo um pouco mais o raciocínio anterior, se você não gostou do título na primeira tentativa anos atrás, ele não irá se tornar aprazível hoje — a não ser que o próprio jogador tenha passado por uma mudança de pensamento que o tornou tolerante para esse tipo de narrativa multiforme. O game em si não pode ser considerado datado, visto que a integridade dele se manteria exatamente a mesma, com suas qualidades e seus defeitos, caso fosse produzido hoje.

Independentemente disso, esse port, ao contrário de tantos outros games que passam pelo tratamento do relançamento, é crucial. Além de ser um jogo virtualmente esgotado e de difícil aquisição no mercado de usados, não há maneiras modernas de rodá-lo em sua condição original, visto que o PlayStation 4 não tem retrocompatibilidade com os games do PlayStation 2 e o último aparelho da Nintendo a oferecer suporte de GameCube foi o Wii. Só é uma pena que algumas decisões específicas da NIS America não tenham tornado esta remasterização um produto impecável — embora ainda seja bem competente.

Prós:

  • Produto abstrato que coloca o jogador para pensar;
  • Proposta e ambientação únicas e instigantes;
  • Performance exemplar da remasterização;
  • Não é sobre envelhecer bem ou mal — ele simplesmente não envelheceu. 

Contras

  • Poderiam ter aproveitado para corrigir certos defeitos do original de forma pontual;
  • A não-correspondência do remapeamento dos comandos na tela;
  • Menu de configurações externo que não foi incorporado no próprio jogo.
Killer7 — PC — Nota: 8.5
Revisão: Raphael Barbosa.
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo redator.

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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