O jornalismo de games justificado: pode não parecer, mas ele ainda tem o seu valor

Matérias cada vez mais automatizadas, sem-graça e apelativas para o fator nostalgia têm solução? Sim! Mas precisa da compreensão do leitor para que isso seja possível.

em 09/06/2018

O videogame como objeto de cobertura jornalística e, posteriormente, formação de uma editoria própria que conhecemos apenas como “jornalismo de videogame”, não tem um início formalmente delimitado, dividindo-se em dois marcos importantes.


O primeiro deles era a forma como revistas de mecânica eletrônica traziam informações a respeito das máquinas de Arcade ainda na década de 70. O segundo foi o lançamento da PlayMeter em 1974, cuja especialidade eram justamente as máquinas de fliperama e foi a primeira revista completamente focada no gênero.

Aos poucos, as próprias empresas começaram a produzir conteúdo em forma de revista que visava trazer novas informações a respeito de seus produtos, como uma espécie de catálogo. Tais publicações acabaram adquirindo com o tempo certa independência e passaram a ser consideradas publicações individuais e independentes, apesar de carregarem ainda uma certificação oficial, como é o caso da finada Nintendo Power. A ideia de patrocinar certos veículos especializados servia como uma forma de fidelizar o público para com a marca em questão e era como uma publicidade gratuita.

A primeira (1988) e última (2012) edição da Nintendo Power
Surgindo quase ao mesmo tempo dessas publicações, a Electronic Games e a Computer and Video Games passaram a ser produzidas trazendo um conceito de independência ao trabalhar a cultura dos games de forma própria e não comprometida com as empresas atuantes no ramo.

Essa ideia conseguiria se expandir na internet, quando portais como a IGN e a Gamespot surgiram na década de 90. Tais portais, além de produzirem conteúdo com um corpo editorial próprio, também abriram a oportunidade para o próprio jogador, que conseguia não apenas interagir com as análises e notícias, mas também ganharam o espaço para as suas próprias.

Sob esse ponto de vista, o jornalismo de games, aliado ou não às empresas responsáveis pela própria indústria, foi uma espécie de portão por onde as novidades transitavam até chegarem no público. Uma Ubisoft ou Electronic Arts, por exemplo, poderiam enviar press releases para os veículos que reproduziriam a novidade em forma de reportagem e sempre haveriam pautas frescas.
A Nintendo hoje dificilmente divulga uma informação através da imprensa. Todos os anúncios são feitos pela própria nos Directs
A questão é que hoje isso mudou. O jornalismo de games acabou perdendo seu valor. Uma informação oficial hoje, com a internet, passa a ser divulgada pela própria empresa em questão diretamente para o consumidor, enquanto antigamente a imprensa tinha alguma utilidade, porque não era necessário gastar com material publicitário, por exemplo. Além disso, outra função do jornalismo acaba se esvaindo, que é o da importação da informação no sentido de que o mercado de games japonês era isolado do ocidente.

Diante dessa mudança de dinâmica entre as empresas de games e o jornalismo, há outra relação importante a ser considerada e compreendida: a da imprensa com seu próprio público. Para isso, precisamos então esclarecer como é que o jornalismo de games delimitou seu processo de operação e a forma como ele se dá.


Games são cultura? Dentro de um viés jornalístico, sim!

Apesar de formalmente ser uma pauta geralmente coberta pela editoria de tecnologia (em um escopo mais amplificado), a forma de cobertura do jornalismo de games é muito mais próxima do jornalismo cultural.

Segundo Daniel Piza em Jornalismo Cultural (ed. Contexto, 2003), o fluxo do hard news, como são chamadas as notícias quentes e imediatas, acaba sendo menor porque muitos dos acontecimentos seguem uma espécie de agenda. Enquanto no jornalismo cultural isso diz respeito a estreia de shows, filmes e outros eventos com data marcada, o jornalismo de games acaba ficando dependente de uma rotina cíclica que envolve esperar novos anúncios e reproduzi-los.

Dessa forma, o ineditismo de uma informação — o chamado furo — acaba por passar por uma mudança processual. Antigamente, uma relação boa entre um veículo de imprensa e uma empresa poderia render um anúncio exclusivo com antecedência. Hoje, com as próprias empresas assumindo essa função de divulgação, o jornalismo de games acaba se alentando nos rumores ainda não-confirmados, como aconteceu recentemente com Pokémon: Let’s Go, Pikachu! & Pokémon: Let’s Go, Eevee! (Switch).

Considerando um portal que eventualmente publica um rumor, um jogo de roleta russa acaba se iniciando. Caso a notícia se confirme verdadeira, o veículo ostenta os louros e, num futuro, caso um novo rumor seja publicado, ele acaba servindo como uma espécie de guia de confiabilidade, considerando os acertos passados que levam a crer boas fontes de informação. O Serebii, portal especializado em Pokémon, assume muito bem esse papel no fandom da franquia, visto que inclusive deu origem ao meme do Serebii Confirmed.


Quando a notícia é falsa, a credibilidade do veículo acaba sendo minada e ele se torna pouco confiável, não apenas em relação a informações, mas os próprios textos autorais acabam perdendo força. Um veículo de pouca credibilidade a nível informativo vai ter sua imagem manchada e mesmo textos posteriores forjados de maneira confiável também acabam sendo alvo de dúvidas.

Essas mesmas matérias mais trabalhadas, no caso do jornalismo de videogame, acabam, no entanto, sempre caindo num lugar comum. Ou é uma matéria de análise simples de um jogo, ou matérias de efeméride, as famosas reportagens de aniversário em tom descritivo de maneira saudosista sobre, por exemplo, os trinta anos de Super Mario Bros. 3 (NES) em 2018 ou ainda às vezes sem nem mesmo esse gancho determinado pelo momento vigente, resumindo-se simplesmente a um “Conheça a franquia X”.

Ainda, há a concepção de um tipo de reportagem cultura em escassez na imprensa cultural — e também na de videogame, a fim de se aplicar ao nosso contexto — sobre matérias que envolvem uma interpretação maior dos fatos. Uma das poucas vezes em que houve uma tentativa interessante de trazer um texto desse cunho foi quando a IGN Brasil trabalhou a vastidão silenciosa do mundo aberto de The Legend of Zelda: Breath of the Wild (Wii U/Switch) de uma maneira quase filosófica.

O principal problema é que o texto, na verdade, foi plagiado de um youtuber estrangeiro — e aí fica difícil trabalhar porque isso acaba ferindo não o império da IGN, mas a confiança acerca do próprio jornalismo de games, que parece incapaz de pensar em pautas próprias de maneira inteligente ou diversa.

A questão das críticas e sua relação com o leitor

É possível dizer até que as análises dos jogos são o carro-chefe do jornalismo de videogame. Em 2007, um grupo de editores de games norte-americanos se juntou e desenvolveram o The Video Game Style Guide and Reference Manual

A ideia era que ele servisse com uma espécie de guia para a prática jornalística especializada no assunto, com diretrizes a serem seguidas, como padronizações de certos nomes (mais da metade desse manual de estilo é uma espécie de dicionário que indica a forma correta de se referir a determinados nomes), definição do que é um gênero para um jogo de videogame e, principalmente, sugestões a respeito de como lidar com um review. O objetivo é que, ao se falar de videogames na imprensa, o discurso siga normas de fácil compreensão para um público geral, padronização e precisão.

Dentro do jornalismo cultural, de acordo com Daniel Piza, há quatro características de resenha crítica possíveis: 
  • as rotineiras, de obras recém-lançadas definidas por adjetivos positivos e negativos no intuito de fomentar uma opinião imediata sobre o assunto; 
  • a técnica, que analisa um objeto dentro de suas próprias características dentro de um padrão estabelecido, como qualidade gráfica ou sonora, referente a execução de um trabalho de forma metodológica; 
  • a autoral, que visa trazer uma contextualização do que está sendo analisado, aplicando o seu valor dentro de uma conjuntura em que se encontra, dando importância o autor da mesma, por exemplo; 
  • e ainda uma filosófica em que o objeto é analisado dentro de uma espécie de problematização social — que, ressalta-se, não diz necessariamente a pautas como “Esse jogo que tem uma protagonista feminina e negra é o máximo” ou “esse jogo é machista”, mas também se refere a jogos que conseguem introduzir certos conceitos da área da psicologia e usá-los como alegorias dentro da narrativa, como pode ser feito com Silent Hill, por exemplo.
A questão é que tais críticas, embora no passado tivessem uma função de estímulo no sentido de convencer o leitor a comprar ou não um determinado game, hoje elas assumem uma relação diferente com o público. Considerando que o jogador comum atualmente tem meios suficientes para se tornar um criador de conteúdo e que ele mesmo consegue produzir suas próprias análises opinativas e talvez conseguir uma influência ainda maior do que a imprensa por serem iguais aos seus próprios pares — vide os youtubers

Apesar de a imagem parecer nonsense, lembre-se de que críticas também são contextuais e não podem ser comparadas diretamente, visto que são critérios de análises diferentes e pertinentes para cada objeto. 
Isso além do fato de que o próprio consumidor consegue desenvolver sua opinião através de trailers e outros conteúdos disponibilizados pelas próprias empresas que vendem o game. O papel do review como um motor influenciador acaba perdendo um pouco de força nesse aspecto.

Dessa forma, muitas dessas análises acabam servindo para comparação póstuma à experiência de jogo, no sentido de “olha só, esse analista concorda comigo”. O problema central é que esse novo mecanismo acabou desenvolvendo uma nova forma prática que acabou minando a ousadia de certos textos. 

Em uma era onde a quantidade de visualizações de página conta, os analistas acabam criando reviews cada vez mais genéricos, mesmo que inconscientemente, no sentido de dar uma opinião sobre o objeto de uma forma que seja alinhada ao suposto consenso sobre o jogo. Assim, se uma análise segue na contramão do hype, o veículo acaba perdendo seguidores fiéis.

Que se abram os portões!

O principal revés dessa prática mecanizada e pouco ousada, no entanto, acaba indo justamente contra os valores jornalísticos como um todo. Vamos lá, o jornalista, teoricamente, tem uma função denominada gatekeeping, no sentido de que ele tem uma visão especializada sobre o mundo diferente do seu público. No passado, o gatekeeper servia primariamente no sentido de filtrar o que podia ser ou não considerada uma notícia relevante para o público, como um porteiro de um prédio que deixa as pessoas entrarem ou as barram ainda na entrada.

Hoje, o guardião do portão assume uma função de curadoria e consegue selecionar não apenas conteúdo, mas pontos de vista diferentes que podem ser trazidos para um leitor e que deveriam ir contra essa maré do hype, justamente no sentido de mostrar aquele que é chamado “o outro lado da história”.

Sobre essa capacidade, Pierre Bourdieu, estudioso de mídia, define em sua obra On Television (The New Press, 1998), que “Os jornalistas têm ‘lentes’ especiais através das quais veem certas coisas e não veem outras, e através das quais veem as coisas que veem da forma especial por que as veem”. Ou seja, é da função jornalística utilizar dessa visão na execução do seu trabalho. 

Assim, deveria ser papel do jornalista trazer pontos de vista controversos ou até mesmo radicais que contrariem o senso comum num sentido de trazer uma nova discussão a respeito do assunto, algo que acontece pouco por conta do backlash, da repercussão negativa do público. Uma pauta interessante que se aplica nesse sentido foi quando Tim Rogers, um editor do Kotaku, decidiu questionar o motivo de Okami (PS2/Wii) ser universalmente aclamado em seu hipertexto “Desculpe-me, eu não gosto de Okami”. 


O título, de fato, não argumenta e serve justamente para causar choque através da fomentação de um conflito. No entanto, o texto e, principalmente, o vídeo que o acompanha, trabalham argumentando com bom humor que o jogo é essencialmente monótono pelo excesso de texto e demora demais para apresentar mecânicas, especialmente a de combate.

No entanto, em uma era de fake news, quando as chamadas “notícias falsas” são criadas de acordo com o capital emocional do público, é muito mais fácil desqualificar um indivíduo dentro de suas capacidades do que simplesmente tentar pelo menos entender, sem necessariamente concordar, seu ponto de vista argumentativo. Lembra-se? Um jornalista tem lentes próprias que enxergam o mundo da sua forma. Ele, em teoria, tem uma capacidade analítica diferenciada e isso deveria bastar, considerando uma espécie de acordo informal entre imprensa e público de confiabilidade.

Tim Rogers é desenvolvedor de jogos e essa competência é um adicional que expande sua visão trabalhando como imprensa para além de um leitor amador a respeito do assunto. Por mais que exista gente realmente incompetente no mundo, esse tipo de qualificação deveria ser levado em conta e o público não deveria reagir de maneira hostil, mas, ao menos, pensar a respeito dessa formação singular que propiciou um ponto de vista diversificado.

Portanto, a culpa da produção de conteúdo acerca dos games recai tanto no leitor quanto no próprio jornalista. No leitor pelo fato de não ceder à essa especialização que se formou e se modificou ao longo dos anos, menosprezando a técnica por trás da produção de conteúdo feito por um veículo jornalístico — discordar é uma coisa, desqualificar e menosprezar chega a ser outra.  

Há problemas reais tanto na imprensa quanto no público. A questão é o comodismo de ambos. Fonte: Reddit.
Na imprensa é pelo fato de recair numa prática cheia de ostracismo e repetitiva que deixou os próprios leitores mal-acostumados, criando um círculo vicioso e retroalimentável em que qualquer discussão trazida à tona e fora da curva acaba sendo rechaçada pelo público acostumado e acomodado a uma opinião singular e uníssona.

Com medo de perder sua credibilidade e visualizações revertidas em lucro, a prática jornalística sente-se acuada a expor uma ideia controversa, permanecendo em uma agenda previsível e pautas descritivas sem-graça que geralmente acertam o sentimento nostálgico do leitor (isso sem isentar as histórias de análises compradas e uma série de outros problemas que ficam para outro dia).

O jornalismo de games não precisa necessariamente de informações imediatas e exclusivas para se consolidar. Ele pode encontrar uma forma de sobrevivência e, principalmente, uma função ao trabalhar novas ideias diversificadas a partir dessas pautas hard news replicadas em exaustão por todo e qualquer portal de maneira quase automática.

O público só se beneficiaria se observasse e ao menos compreendesse opiniões diferenciadas, às vezes mais do que apenas uma e até opostas, mesmo que expressas por um mesmo veículo de forma contraditória. Dessa forma, conseguiremos uma comunidade gamer muito mais plural e menos homogênea.

Em tempo: a capa desse artigo é um recorte da capa de um livro chamado Up Up Down Down Left WRITE: The Freelance Guide to Video Game Journalism, escrito por Nathan Meunier. Ou seja, há uma técnica a ser desenvolvida para a prática. O problema é ser levada a sério. 

Revisão: Link Beoulve

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.