Durante uma das conversas mais interessantes que tive na feira, a dupla da Game Arte falou bastante sobre a representatividade nos games, a importância dos jogos eletrônicos como mídia de conscientização e muitas outras coisas que vocês conferem agora nessa entrevista exclusiva!
GameBlast — De onde surgiu a ideia de adaptar um conto da literatura brasileira para um jogo?
Jaderson Souza — Cara, fazem quatro anos que nós estamos desenvolvendo e desde o início muitas ideias rolaram. Não sei se eu tenho uma pedra filosofal de “ah, nasceu disso”, mas nosso trabalho sempre teve a intenção de mexer com alguma coisa que fosse significativa culturalmente falando. Desde a época em que nós organizamos uma ONG chamada Jogos pela Educação, cuja principal ideia era fomentar uma produção de conhecimento a partir do jogo. Então desde essa época que já tínhamos uma ideia dessas, onde usávamos jogos já existentes como forma de educação, mas sentíamos falta de algo autoral. Na verdade foi meio que o conto que nos escolheu. Não é nada utópico, mas é porque nós nos identificamos muito com a história, um conto sobre ganância de 1910 de uma página e meia que nós transformamos em 80 páginas!
Tainá Felix — Acho que a história falava muito do momento em que a gente estava, sob o ponto de vista do lugar de onde a gente fala, sabe? A gente tá no Brasil, somos dois desenvolvedores negros, que olham e sempre olharam para o social e encaram o trabalho como algo que precisa ser significativo para quem usufrui dos nossos serviços. Então eu acho que escolher o conto da literatura brasileira é também um ato de colocar aquilo que a gente acredita que deva ser matéria prima dos desenvolvedores por aqui: falar do seu povo, das histórias legais, dos personagens interessantes que temos aqui ou daqueles que podem surgir a partir da brasilidade, das histórias, da literatura.
Jaderson e Tainá no stand do A Nova Califórnia na SBGames |
GameBlast — Como que vocês encontraram um balanço entre transmitir a informação sobre o conto e os aspectos lúdicos do jogo?
Jaderson Souza — Você tocou num ponto central da ideia. Nós gostamos dos dois lados da moeda: o acadêmico e o da comunidade de jogadores. Agora é muito curioso ver que rola um estigma com jogos que tragam algum tipo de conteúdo diferente. Para jogadores a gente nem sequer cita a palavra literatura, para não assustá-los. Basicamente nós não ligamos para a ideia de transmitir informações, mas sim a ideia de simplesmente criar uma experiência.
Tainá Felix — Ou seja, a gente entende que o jogo é uma experiência estética. Assim como um quadro, uma peça de teatro, assim como qualquer experiência que seja efetivamente significativa, o jogo tem potencial para ser uma experiência estética. Por isso a gente queria que o nosso jogo fosse uma experiência estética da brasilidade, que trouxesse parte da nossa linguagem, do nosso jeitinho, da nossa história. Por exemplo, tem momentos em que você fala com personagens negros e você vai ser colocado numa situação ética daquilo à luz do que você acredita hoje ou daquilo que o jogo está pedindo para você ser. Mas é legal a gente trabalhar isso de uma forma estética, através das sensações.
GameBlast — Como foi o processo de transformar uma página e meia de texto em 80 páginas de roteiro do jogo?
Jaderson Souza — Tudo é sempre uma visão diferente, colocada em cima do jogo. A ideia principal sempre foi tentar trazer a narrativa para a experiência. Tirar o narrador onipresente e transformar tudo numa coisa vivencial, tirar aquele cara lá das nuvens e colocar o jogador no corpo de uma das personagens principais da história. Nós então escolhemos focar no personagem Boticário Bastos, pois ele é uma das personagens que aparecem no conto do início ao fim.
Tainá Felix — Esse foi inclusive um dos critérios que a gente usou para transformar a narrativa em experiência, ou seja, qual é o personagem que passa pela a história do narrador do começo ao fim? Este então será o personagem que acompanhará o jogador em suas decisões.
Jaderson Souza — Transformar uma página e meia em 80 é trabalho? É trabalho, mas a gente tá fazendo o que a gente gosta, então é mais tranquilo. O problema central foi mesmo a quantidade de texto que entraria no jogo. A gente sabe que a maioria dos jogos tem muitos textos que acabam sendo pulados pelos jogadores e isso é normal. Pensando em evitar isso nós demos uma enxugada boa no roteiro revisando-o muitas vezes, mas muitas vezes mesmo!
Tainá Felix — A gente percebeu que muito texto era desperdiçado pelo jogador. Como então que a gente poderia criar um tipo de mecânica de encruzilhamento entre os textos para que aquilo se tornasse necessariamente importante para o jogador? A gente então deu significado para cada fala para que o jogador precisasse daquela informação. Em fases de aventura que a gente tem textos e conversas com outros personagens para adquirir informações e passar de fases, o jogador precisa falar com X pessoas, então uma informação leva a outra e, se aquilo passar, o jogador vai ter que voltar e achar a informação certa para passar de fase.
GameBlast — Pra vocês, qual a importância de se ter conteúdo de conscientização das pessoas nos jogos eletrônicos?
Tainá Felix — Primeiramente precisamos falar da diversidade nos jogos. Não só na representação de personagens diferentes e mais humanizados, mas principalmente da gente ter representatividade, que é diferente de representação. Temos vários exemplos de personagens negros representados nos games, mas é importante questionar se aquele personagem é representativo para a comunidade negra, ou seja, ele traz outras questões que deixam mais profunda a presença do personagem ali ou mais significante? E outra, o quanto é importante os desenvolvedores e desenvolvedoras abrirem o leque para a diversidade para que consigam justamente que públicos diferentes participem mais do encontro com o jogo. Para que o jogo seja significativo e tenha algum tipo de impacto.
Então, sim, nós acreditamos fortemente que é super importante para os desenvolvedores e para a comunidade gamer que a gente tenha a representatividade e principalmente a diversidade. Isso entre temas, entre personagens, entre propostas de gameplay diferentes… e assim, quanto mais diversidade, mais interessantes os jogo vão ficar e mais possibilidades de conhecimento a gente tem. A diversidade é um exercício diário e para todas as coisas que a gente consome, que a gente cria, as pessoas que a gente se relaciona, é muito vasto. Isso no mundo do desenvolvimento é mega importante, pois se isso forma as novas gerações e mantém a geração anterior ativa e pensante, isso é muito importante principalmente como mídia.
GameBlast — Como que a representatividade funciona no A Nova Califórnia?
Tainá Felix — A representatividade pode ser sobre uma porção de coisas, sobre questões socioeconômicas, culturais, étnicas... Então que tipo de representatividade o jogador encontra no nosso jogo? Eu acho que ele encontra primeiramente a representatividade do povo brasileiro e da cultura que ele vive, mas que ele não consome como mídia. A Nova Califórnia é um jogo brasileiro que fala do Brasil, mas não é folclórico. Ele não trata a cultura como algo exótico, ele fala da cultura como ela é, como parte da nossa construção como um povo. A representatividade já começa então com a própria escolha do conto como matriz do nosso jogo. Tem também uma questão racial que está presente na obra do Lima Barreto e que de certa forma também está presente na relação entre o personagem principal e os personagens negros que temos no jogo.
Jaderson Souza — O próprio meio entra como a mensagem no caso. Não é necessário explicar para o jogador ou jogadora que isso é assim e está aqui. Simplesmente está. Aquilo foi colocado ali por alguém que tem um ponto de vista, que no caso é o nosso, que tem uma leitura sobre o trabalho original. É uma leitura, podem existir várias. Justamente por isso é importante a gente pensar no como isso é colocado pra quem joga. Depois da experiência primeira de jogar, eu preciso pensar também no momento que o jogador saia da experiência e pense no que aconteceu. Nós não falamos isso com ninguém ainda, mas vamos lançar uma DLC do jogo ano que vem, ainda não sei em que formato, mas para provocar mais ainda as reflexões que estão colocadas no jogo.
GameBlast — Para vocês, os estudos acadêmicos sobre games, cultura pop e derivados somam em alguma coisa para o surgimento de novas óticas no desenvolvimento de jogos?
Jaderson Souza — Eu acredito piamente nisso. Não vou citar a área da indústria, pois puxa muito para questões técnicas ou de marketing. Mas sim o pessoal que trabalha mais na parte de cultura, de humanas ou no design de jogos. Nós encontramos estudos e propostas de experimentos implantadas nos jogos.Tem jogos incríveis que exploram, por exemplo, a questão do belo e a importância dele dentro do jogo. Estudos que trabalham questões filosóficas dentro do jogo associadas aos recursos motores dentro do jogo. Então você encontra propostas muito legais de estudos nessas áreas.
Tainá Felix — O que mais cresce são os cursos sobre games nas universidades. A molecada está querendo realmente estudar jogos mesmo, ir pra universidade, fazer projetos e trabalhar de fato com isso. Aqui na SBGames mesmo tem projetos de jogos de tabuleiro de alunos do primeiro semestre da graduação, alunos que acabaram de entrar na faculdade e já tem projetos de jogos que estão sendo apresentado em feiras! Isso é muito legal! Com certeza essa molecada que hoje tá estudando os conceitos do jogo, suas potencialidade, seus impactos, vão produzir jogos melhores, quando saírem da faculdade daqui há três anos, com um impacto interessante e pensando em diversidade. Eu fiquei muito espantada hoje com as apresentações do setor de Cultura da SBGames! Você tinha ali 60 pessoas com trabalhos acadêmicos que discutiam as potencialidades dos jogos, da cultura pop e do entretenimento aliados a coisas que não são só o entretenimento por si só, mas também outros usos diversos. Isso é muito legal! Que esses projetos saiam da academia e tomem os desenvolvedores!
GameBlast — Qual é a principal mensagem que vocês querem transmitir para os jogadores através do A Nova Califórnia?
Jaderson Souza — Descubra a sua mensagem. Se descubra a partir dessa proposta e jogue livremente do jeito que você quiser. Sem nenhuma necessidade de ganhar ou perder, simplesmente jogue e, se possível, pense sobre o que você está jogando depois.
Tainá Felix — A gente não tem a pretensão de que o jogador saia com uma X mensagem. Porque a gente estaria sendo completamente avesso a tudo aquilo que a gente acredita que o jogo pode ser. Cada um vai tirar da sua experiência uma mensagem, pois cada um tem um repertório diferente e vai olhar para essa história e dizer “nossa, que coisa legal!” ou então “nossa, eu não acho que sou tão ganancioso assim” ou “meu deus! Como esse personagem é ganancioso” e vai colocar a culpa no personagem e não nele mesmo… Então eu acho que todas as possibilidades vão ser legais pra gente. Fazer com que as pessoas joguem e reflitam sobre si mesmas dentro dessa temática da ganância.
A Nova Califórnia (PC) estará disponível no Steam no dia da consciência negra, 20 de Novembro. Lima Barreto, foi um dos primeiros escritores da literatura brasileira a se auto declararem negros publicamente.
A pergunta que fica do jogo é: "até onde você iria para ficar rico?"
E entao leitores? o que acharam do A Nova Califórnia?