Hellblade: Senua's Sacrifice (PC/PS4) e os seus aspectos psicológicos

A aventura nórdica da Ninja Theory conta a história por trás de um transtorno psicológico. Vamos analisar isso mais de perto?

em 16/09/2017
Hellblade: Senua’s Sacrifice (PC/PS4) foi lançado recentemente e deu o que falar. O jogo desenvolvido pela desenvolvedora do Reino Unido foi ambicioso ao mesmo tempo que conseguiu inovar de várias formas. Autoproclamado um “Indie AAA”, Senua’s Sacrifice retrata com maestria aspectos referentes aos sintomas da esquizofrenia, doença mental que causa alucinações, delírios, fragmentação de pensamentos e diversos outros sintomas.


Mas falando especificamente da esquizofrenia, é interessante analisar passo a passo tudo que o jogo faz para traduzir o máximo possível a experiência de uma pessoa esquizofrênica para o jogador. Vamos então analisar como as experiências de delírio, alucinação e demais sintomas são traduzidos para diversas mecânicas no jogo, incluindo sua narrativa propositalmente fragmentada. Então senta que lá vem a história.

Para falar do enredo do jogo e de seu significado, este texto terá spoilers do início ao fim. Por isso leia por sua conta em risco!


A história por traz de Senua

Antes de mais nada, vamos retomar a história apresentada no jogo. A protagonista da aventura é Senua, uma guerreira celta pertencente ao clã Pict. A personagem é filha do druida de seu povo, o qual sempre a tratou com muito preconceito e interpretações agressivas de seus problemas. Isso por conta da mãe de Senua, que sofria do mesmo mal que a garota. Na história do jogo, que se passa na época dos vikings, os personagens tinham uma visão mística das doenças mentais e encaravam Senua (assim como sua mãe) como aquelas mais próximas da visão do “outro mundo”.

Antes de todo o preconceito e medo da tribo cair sob Senua, ele caiu sobre sua mãe, a qual já apresentava sintomas de esquizofrenia muito antes dela. A mando do seu próprio pai, a aldeia queimou a mãe de Senua viva, como forma de se salvar das ameaças que a mulher via. A garota, mesmo assistindo a toda a brutal execução, conseguiu por muito tempo reprimir aquela imagem, tornando-se completamente inconsciente em relação a ela.



Mesmo com isso, toda a aldeia tinha grandes preconceitos para com Senua. Com exceção de Dillion, um guerreiro celta que a trata com o devido respeito e enxerga na guerreira um potencial e humanidade que ninguém mais via, nem mesmo seu pai. Graças ao apoio de seu amado, Senua começa a crescer e se descobrir como pessoa. Entretanto, uma praga assola sua vila e muitos morrem. Por conta disso, a aldeia decide exilá-la baseando-se na explicação mística de que a praga foi resultado de Senua “mexer com entidades de outros mundos”.

Exilada por muito tempo, Senua decide voltar para sua tribo para reencontrar seu amado Dillion, mas descobre que a aldeia foi atacada por um exército de vikings, que massacrou todo o lugar. Procurando por Dillion, a guerreira celta o encontra não apenas morto, mas executado na punição mais pesada da cultura nórdica: a águia de sangue, ou Blood Eagle. Para quem não sabe, é uma execução própria dos vikings na qual o acusado tem suas costas cortadas e suas costelas quebradas na base da coluna. Logo após serem abertas à força, o executor retirava os pulmões do executado e os deixava pendurados em seus ombros, com a pele das costas e costelas abertas como se fossem asas. Uma morte nada tranquila.



Após encontrar seu amado pendurado nessa posição, Senua de fato entra de vez em um surto psicótico. Em seu delírio, ela precisa levar a cabeça de Dillion até Helheim, o inferno dos vikings, lugar onde a guerreira enfrentaria Hela em troca da alma de seu amado de volta. E assim Senua começa sua jornada em busca da redenção do seu amor. Entretanto, essa jornada se trata de algo muito mais interno do que externo. Mas eu vou chegar lá.

Esquizofrenia Paranoide

Muitas são as nomenclaturas utilizadas para designar o transtorno do qual Senua sofre. Diversos textos na internet assumem que ela possui “ansiedade e depressão”, mas sinto dizer que eles estão errados. Senua sofre de uma doença chamada especificamente de Esquizofrenia Paranoide, de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, também conhecido como DSM-IV.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), este é um transtorno psicológico presente em cerca de 1% da população mundial e que possui seus primeiros surtos ou demais sintomas entre os 15 e os 35 anos da pessoa. Dentro do grupo de esquizofrenias, diversas são suas subcategorias, como a hebefrênica, catatônica e a paranoide. A distinção entre elas é principalmente relacionada aos seus sintomas, mesmo que uma base sintomática seja comum a todas. É importante citar que o DSM, em sua quinta edição, abandonou essa divisão do transtorno em subcategorias, mas muitos profissionais de saúde mental ainda consideram a divisão.

No geral, a esquizofrenia é uma doença mental grave e crônica que possui como principal característica o desligamento da pessoa com a realidade. No caso de Senua, ela apresenta um grupo de sintomas conhecido como “sintomas produtivos”, os quais giram em torno de pensamentos fragmentados, delírios e alucinações tanto visuais como auditivas. É muito comum nesse grupo de sintomas a presença de vozes que dão comandos ao portador da doença. Vozes essas que não são reconhecidas como da própria pessoa. Ligado a isso, é como se seus pensamentos surgissem como vozes de outras pessoas, que não dela mesma.

Os delírios como mecânicas de jogo

Dentro de todo esse contexto da personagem e de sua doença, Hellblade coloca o jogador em uma posição muito interessante. No início do game, entre diversas vozes que vão e vêm na cabeça de Senua, somos reconhecidos como mais uma delas. Ao mesmo tempo em que somos convidados a fazer parte da jornada de Senua, assistindo a tudo que acontece com a personagem e ajudando quando for necessário.



Aqui já temos um aspecto interessantíssimo da tradução da esquizofrenia para o jogo. As alucinações auditivas na doença, como já citamos, surgem como vozes externas à pessoa, geralmente com teor de ordens a serem seguidas. Devido à confusão do estado mental da pessoa, é muito comum que essas vozes tenham comandos contraditórios, representando a dualidade presente no enfermo.

Em Hellblade, as vozes seguem exatamente essa lógica. Entretanto, elas possuem uma função característica no jogo: elas lhe dão dicas do que fazer. Entre diversas ordem de “corra”, “fuja”, “saia daí” ou “volte, você não vai conseguir”, existem também comandos práticos para o contexto da jogatina como “cuidado!” ou “atrás de você”. Outros podem não ser percebidos tão rapidamente, mas também estão muito bem contextualizados, como “mantenha seu foco nele”.



Além das alucinações auditivas, as visuais também são bastante características. Geralmente essas alucinações incluem distorções da sensibilidade à luz, reconhecimento de padrões compulsivos e criação de imagens que não existem de fato ali, como cobras ou seres ameaçadores. Em Hellblade, tanto a sensibilidade à luz como o reconhecimento de padrões são utilizados diversas vezes como puzzles, bem como mudanças repentinas de ambiente.

O interessante é a mescla de alucinações úteis e outras não tão úteis assim para o objetivo do jogo. Com isso, o jogador começa realmente a se questionar se está de fato enxergando uma ou outra coisa. Pensamentos como “aquele caminho já estava ali antes?” ou “eu vi alguma coisa se mexendo” são questionamentos que, por boa parte da jornada de Senua, são bem frequentes no jogador. Esse era o objetivo maior da Ninja Theory e eles conseguiram com bastante eficácia: fazer com que os jogadores tivessem a experiência de entrar na pele de uma pessoa com transtornos mentais graves.



Crises a serem superadas

Como já falamos, o enredo de Hellblade: Senua’s Sacrifice é completamente fragmentado, fazendo com que a confusão inerente à protagonista passe para o jogador e este sinta a falta de norte que Senua possui. Dentro disso, duas partes específicas da história merecem a devida atenção em nosso texto: quando Senua junta os fragmentos da espada assassina de deuses e seus dois encontros com Hela.

Após vencer os deuses da ilusão e do fogo, Senua finalmente consegue caminhar até os portões de Hellheim, mas uma voz tenebrosa diz: “você não está preparada para isso, você não conseguirá enfrentá-la! Fuja! Você é uma vergonha para todos nós!”. Com isso, Senua é facilmente derrotada por Hela e tem sua espada destruída, além de quase morrer no processo. Assim, ela precisa empunhar a espada que mata deuses pra finalmente ter chances contra a rainha de Hellheim. Entretanto, esta espada está quebrada em quatro pedaços e Senua precisa juntar todos eles.



No processo, Senua é transportada para quatro lugares distintos, onde ela acaba revivendo momentos traumáticos de seu passado: quando seu pai a mantinha presa dentro de casa por conta do seu “contato com as trevas”, quando ela foi exilada da aldeia por conta da praga da qual levou a culpa por existir, quando ela finalmente encontra seu marido morto e quando ela lembra que viu a mãe morrer queimada na fogueira. Estes quatro traumas possuem puzzles próprios e bem característicos, como fugir do fogo e enfrentar a total escuridão.

Para que o último encontro de Senua com Hela faça sentido, é preciso primeiro esmiuçar esses dois episódios e seus significados. Ora, toda ou pelo menos boa parte da jornada de Senua durante o jogo não passa de delírios e alucinações da personagem. Isso é facilmente notado no início do jogo, quando os primeiros soldados vikings surgem do nada e começa a primeira luta. No final do embate, Senua cai morta e nos vemos sem saber o que fazer, pois nos foi indicado que era possível matar todos os inimigos. No final da cena, na verdade Senua está de pé ao fundo assistindo a toda a luta desde o início.



Para enfrentar a terrível Hela, da qual ela não dava conta em seu primeiro encontro, Senua precisou não de uma espada nova, mas sim de superar seus traumas do passado. Superar a opressão do pai, superar o preconceito de seu povo, encarar que realmente seu amado não voltará mais e relembrar o episódio que deu início a todos os seus complexos: a fatídica morte de sua mãe. Com esses desafios superados e os ensinamentos aprendidos, Senua recebe uma espada nova e vai novamente atrás de Hela.
 
Antes de enfrentar a deusa do inferno viking, Senua tem um diálogo interessantíssimo com seu reflexo no espelho, no qual sua imagem, cheia de medo, implora para que ela não siga em frente. E ela, esbanjando confiança e coragem, avança para o espelho deixando seu reflexo do passado para trás. Assim, ela passa a ter uma postura totalmente diferente.



Desprendida de seus medos e anseios do passado, a guerreira celta solta toda sua fúria em Hela, tornando-se mais forte a cada golpe e potencialmente imbatível. A energia que sentimos ao controlar Senua nesse momento é impactante e revigorante, todos os controles pesados e movimentação lenta se perdem e tudo se torna fluido e claro. Até que finalmente enfrentamos Hela, mas ela acaba nos vencendo.

As ligações diretas com o luto

Muitos deram o diagnóstico de depressão para Senua. Quando na verdade ela é uma pessoa esquizofrênica que está passando por um processo terrível de luto pela perda de seu marido de uma forma tão cruel. Hela, no final do jogo, desfere um golpe mortal em Senua, que simplesmente diz para que Hela a leve no lugar de Dillian, pois ela não tem mais nada a perder. Senua então morre e a câmera passa para Hela, que pega a cabeça enfaixada de Dillian e caminha em direção ao abismo, soltando-a lentamente. A câmera acompanha a queda da cabeça e, quando retorna para Hela, é na verdade Senua quem está ali.



A cena confundiu a cabeça de muitos jogadores, mas é relativamente fácil de interpretar, principalmente se você interpreta toda a jornada como o processo de uma pessoa esquizofrênica de superar seu luto. No caso, todos os desafios do jogo (ilusões, fogo, escuridão, aprisionamento, vikings e a própria Hela) são artifícios originados dentro da mente de Senua, todos frutos de seus medos do passado, do presente e de si mesma.

O fato é que Hela é, o tempo todo, a própria Senua, mais precisamente, seu luto. Da mesma forma, a escuridão, da qual ela foge o tempo todo, é a completa loucura que a assombra a todo momento. Durante todo o jogo, Senua na verdade está perseguindo seu luto para tentar vencê-lo, ao mesmo tempo que foge constantemente do risco de não superá-lo e acabar enlouquecendo permanentemente. Num primeiro momento, a personagem não tinha condições de encarar o próprio luto, pois não havia superado seus traumas do passado. Mas ao final de sua jornada, já com seus traumas e medos resolvidos e superados, a guerreira conseguiu força o bastante para enfrentar a si mesma, livrando-se assim da dor e do peso da perda de Dillian.



As vozes, mesmo assim, não cessam da cabeça de Senua. Esquizofrenia não tem cura, apenas tratamento. Entretanto, a personagem se mostra muito mais serena e leve depois de tudo. Com bem poucas vozes falando em tons igualmente serenos com ela, somos convidados a ir com ela, pois “há muito para se ver ainda”. E assim o jogo termina, não com uma mulher curada de sua doença psíquica, mas sim com uma mulher portadora de um transtorno permanente em sua vida, mas que, mesmo assim, consegue superar a dor e o sofrimento do luto. 

Uma das melhores experiências do jogar

Como crítico de games há mais de três anos, bacharel em psicologia e pesquisador da interseção de processos lúdicos e comunicacionais com os aspectos psicológicos, preciso dizer que Hellblade: Senua’s Sacrifice é um dos jogos mais impecáveis e geniais que já tive a honra de experimentar e analisar. A forma honesta e competente que a equipe de menos de vinte pessoas da Ninja Theory tratou o projeto merece todos os aplausos possíveis.



Hellblade pode não ser um dos melhores jogos da história, nem com as mecânicas mais originais, nem muito menos é o primeiro a tratar da temática de doenças mentais nos jogos. Mas me arrisco a dizer que ele é, até então, o jogo que com maior maestria e genialidade conseguiu utilizar de todos os seus artifícios, dos mais óbvios até os mínimos detalhes, para usar e abusar da percepção do jogador, sempre com um objetivo em mente: educar a respeito de uma doença.

As capturas de movimento, a interpretação dos atores, as consultas a profissionais e portadores da doença, as saídas muito bem costuradas de enredo, as mecânicas desenvolvidas como puzzles e demais desafios, a fotografia que contrasta beleza e medo, a narrativa fragmentada e os detalhes, ah, os detalhes. Tudo isso segue uma única linha muito bem costurada que transforma Hellblade numa obra-prima da percepção.



A esquizofrenia, mesmo que relativamente rara, é uma doença real e assola muitas pessoas ao redor do mundo. Além disso, o luto e a depressão consequente ou não dele são males ainda maiores que cada vez impactam mais pessoas por todo o mundo. Tratar de assuntos tão delicados de uma forma lúdica sem que se perca o respeito e o senso de importância deles é algo muito difícil de se alcançar e Hellblade merece toda a glória por ter conseguido isso. 

Espero que este texto, assim como o próprio Hellblade: Senua’s Sacrifice, sirva para mostrar como videogames podem ser uma mídia educativa e geradora de questionamentos, tal como livros, filmes e o teatro. 

Revisão: Vitor Tibério

Gilson Peres é Psicólogo e Mestre em Comunicação pela UFJF. Está no Blast desde 2014 e começou sua vida gamer bem cedo no NES. Atualmente divide seu tempo entre games de sobrevivência e a realidade virtual.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.