Imagine um cenário no qual você é um designer de jogos dos anos 1980 e a empresa para a qual trabalha pede por um título cheio de ação, tiros, explosões e tudo mais que permeia o cinema norte-americano da época. Passados alguns meses, você apresenta um projeto bem diferente do solicitado, priorizando mecânicas que evitam o confronto direto e fazem o jogador ser mais cauteloso em sua movimentação, como se fosse um espião, assim como um foco grande nos diálogos e contextos históricos.
Ninguém o leva a sério até o título ser lançado e vender mais de um milhão de cópias. Foi exatamente isso o que aconteceu com Hideo Kojima e seu projeto na Konami intitulado Metal Gear, jogo que se tornou a franquia consagrada que temos hoje, após 30 anos.
Qualquer jogador, mesmo aquele que não simpatiza muito com o gênero stealth, provavelmente já ouviu falar ou viu os amigos jogarem algum título da série. A força que a franquia possui na cultura gamer mostra não só a importância das aventuras de Big Boss e Solid Snake para os fãs, mas também a maneira como este estilo de jogo cresceu e tornou-se a base para diversos outros títulos ao longo dos anos. Passadas três décadas do primeiro Metal Gear, prestamos aqui nossa homenagem ao legado da franquia e de seu criador, que confirmou presença na BGS 2017, logo mais em outubro.
De desacreditado à renomado: Kojima foi contra o padrão dos jogos de ação dos anos 1980 para criar seu próprio conceito em Metal Gear |
Uma visão além
Falar de Metal Gear é falar de Hideo Kojima. Toda a estrutura criada está intimamente ligada à mente inovadora do designer, que vislumbrou um novo rumo para os jogos de ação e aventura em terceira pessoa, totalmente voltado às mecânicas de espionagem, infiltrações, conspirações militares, confrontos políticos, questões filosóficas e uma gama incrível de recursos disponíveis ao jogador, algo tão diferente para a época que muitos o consideraram à frente de seu próprio tempo.Kojima sempre foi um aficionado por filmes e passou muito tempo de sua infância e adolescência assistindo aos grandes clássicos de ação da época, como Máquina Mortífera, Exterminador do Futuro, Rambo, os filmes da série James Bond 007 e muitos outros que influenciaram suas ideias durante a criação de Metal Gear. Tanto que vários deles são referências diretas nos jogos, principalmente os mais antigos.
O cinema inspirou Kojima a aplicar no primeiro Metal Gear mecânicas de espionagem que estavam além do que a tecnologia 8-bits havia visto até então |
Como o MSX2 não conseguia processar muitos elementos na tela para o efeito de inimigos e balas, a concepção de Metal Gear veio do filme Fugindo do Inferno (The Great Escape), de 1963, que contava a história de soldados aliados que fugiram de um presídio alemão de segurança máxima durante a 2ª Guerra Mundial.
Unindo esse contexto, mais os elementos de James Bond e um enredo repleto de referências à Guerra Fria e ao uso de armas nucleares, nascia o jogo que redefiniria o gênero de ação e aventura com elementos de furtividade. Outros ícones que representam a série até hoje também surgiram no primeiro Metal Gear, como o ponto de exclamação na cabeça dos inimigos, exibido quando o jogador adentrava seu campo de visão, e as famosas cardboard boxes (caixas de papelão), que permitem camuflar-se pelo cenário.
O sucesso da caixa de papelão fez o item ser mantido até nas versões mais recentes de Metal Gear |
Ultrapassando os limites
Nestes 30 anos de Metal Gear, a série dedicou-se a aproveitar ao máximo as capacidades de hardware de cada geração. Tanto que Kojima não aprovou o desenvolvimento da versão para NES do título original, feita mesmo assim e de forma independente pela Konami –– com alterações no enredo que modificaram até mesmo o final do jogo ––, bem como sua sequência, Metal Gear: Snake’s Revenge, que não trouxe inovações significativas e foi lançada apenas na Europa e EUA.Snake's Revenge (NES) foi considerado a ovelha negra da série por não ter sido produzido por Kojima e não trazer inovações na jogabilidade |
A movimentação do protagonista também recebeu melhorias significativas, com capacidade para rastejar pelo chão e acessar passagens estreitas. O mapa da área agora ficava visível na tela para orientar o jogador sobre a rota de patrulha dos inimigos. Ferramentas e dispositivos receberam melhorias, assim como a adição de novos aparatos, a exemplo de um rato robótico usado para distrair os soldados. E ainda estamos falando de um hardware de 8-bits!
Mapa na tela, melhoria na movimentação e truques para chamar a atenção dos inimigos. Sim, era possível oferecer mais com Metal Gear 2: Solid Snake |
Consagração
Muitos jogadores podem não ter tido a experiência de jogar os primeiros títulos que fundamentaram o conceito da série, mas certamente devem se recordar ou guardar até hoje em seus sentimentos nostálgicos a sensação que foi chegar ao final de Metal Gear Solid, que chegou ao PS em 1998. O terceiro título da franquia foi considerado por diversos veículos especializados um dos maiores e mais importantes jogos da história dos games.A evolução gráfica, apesar de manter a jogabilidade consagrada com visão superior, permitia inserir momentos de alternância das câmeras, o que possibilitava novas perspectivas em 3D para as mecânicas de furtividade envolvendo interações com objetos e com o meio ambiente. A maior contribuição, sem dúvidas, foi a melhoria no desenvolvimento dos personagens e suas motivações.
Ao introduzir elementos em 3D, Metal Gear Solid renovou a série e tornou-se um marco para os jogadores de PS da época |
Em entrevista concedida ao serviço Playstation Access em 2013, o criador de Metal Gear afirmou que “o segredo para criar um bom personagem principal é ter um protagonista com capacidade para suportar pancadas e muita dor. Não é o quanto ele pode reparti-la, mas o quanto ele pode sofrer e continuar em frente. Ao invés de ter um personagem forte e praticamente invencível, é mais interessante ter um personagem que leve golpes e consiga superá-los”.
Personagens que pudessem compartilhar momentos de força, fraqueza e superação: essa foi a ideia por trás da construção dos protagonistas da franquia |
Após Metal Gear Solid, a experiência proporcionada pelos videogames atingiu outro nível e a série se ramificou para diversas outras plataformas, abordando enredos que continuavam a história, apresentavam acontecimentos passados ou os já conhecidos spin-offs. Outro elemento que virou ícone na série foi a representação dos personagens nas mãos do artista Yoji Shinkawa. Em 2001, o PS2 recebeu Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty.
Sons of Liberty trouxe ainda mais elementos de jogabilidade furtiva e apresentou um novo protagonista |
O título ainda aprofundou o enredo da série, trazendo novos confrontos ideológicos trabalhados em diversas cutscenes, bem como a apresentação de Raiden, o novo protagonista que atuaria ao lado de Solid Snake no game.
Tríade
Algo muito bem estabelecido hoje na série é a participação de três protagonistas e as motivações que os levaram a fazer o que fizeram ao longo dos acontecimentos de Metal Gear. Se já é difícil criar um personagem que conquiste a aceitação do público, Kojima fez com que nos importássemos de forma profunda com Solid Snake, Raiden e Big Boss, muitas vezes fazendo-nos levar a reflexão para fora dos videogames.As motivações de cada personagem principal nos fazem pensar além da experiência dentro dos videogames |
Colocado como o primeiro título na cronologia da série, Snake Eater retrata os acontecimentos vividos por Naked Snake, posteriormente chamado de Big Boss, o chefe da organização Foxhound e comandante de Solid Snake, que aos poucos revelou suas verdadeiras intenções. Em títulos como Snake Eater, Metal Gear Solid: Peace Walker (Multi, 2010), Metal Gear Solid V: Ground Zeroes (Multi, 2014) e The Phantom Pain (Multi, 2015) –– títulos que também contribuíram para o aumento da liberdade do jogador, trazendo conceitos de mundo aberto –– vemos a transformação do personagem até atingir a posição de um dos maiores vilões da série, bem como os confrontos ideológicos com Solid Snake.
The Phantom Pain, o último da série, trouxe a jogabilidade em mundo aberto, permitindo ao jogador escolher sua própria forma de alcançar e realizar missões |
O personagem também apareceu em Metal Gear Solid 4: Guns of the Patriots (PS3, 2008) e em Metal Gear Rising: Revengeance (Multi, 2013). Talvez a grande lição de Kojima nesses 30 anos da franquia tenha sido retratar diferentes facetas da humanidade, mostrando que ninguém é perfeito, porém que os erros cometidos podem servir de aprendizado para que nos tornemos pessoas melhores.
Guns of the Patriots trouxe um Solid Snake bem mais velho que o de costume, bem como a visão over shoulder (por cima dos ombros) |
O futuro
Os conflitos e quedas de braço ideológicos infelizmente também atingiram a produção da série dentro da Konami. Desentendimentos entre a produtora e Kojima levaram ao afastamento do criador de Metal Gear. A Kojima Productions, fundada em 2005 como subsidiária da Konami, hoje atua de forma independente, porém sem os direitos sobre a série que consagrou seu produtor.O que a parceria entre Kojima e a Sony pode nos proporcionar a longo prazo? |
Desenvolvido pela Konami, Survive foca na ação frenética contra zumbis, fugindo muito dos conceitos que consagraram Metal Gear |
No entanto, o caminho traçado por Metal Gear nessas três décadas de história deverá ser sempre lembrado como um dos pilares que redefiniram os jogos de espionagem tática e inseriram enredos capazes mexer com nossos pontos de vista. Uma contribuição que marcou a história dos videogames e que certamente será reconhecida por muito tempo.
E você, leitor? Tem alguma lembrança especial de algum título da série? Não deixe de comentar e compartilhar suas experiências com uma das franquias mais aclamadas do universo gamer.
Revisão: Vitor Tibério