Uma das discussões mais acaloradas dos últimos anos, surgida em decorrência de narrativas cada vez mais complexas e elaboradas, é se o videogame é ou não é uma manifestação artística. No entanto, isso pouco facilita que os games sejam, na prática, encarados como uma forma de entretenimento a ser levada cada vez mais a sério. A justificativa é que a arte, como definida por Walter Benjamin, é aquele artefato único que detém uma aura decorrente justamente dessa unicidade. Por exemplo, a única Mona Lisa que pode ser encarada como obra de arte é aquela pintura presente no Museu do Louvre. Qualquer outra reprodução massificada da mesma, como a que estampa capas de caderno, canecas ou pôsteres, fará com que ela perca esse atributo da “aura”, como descrito pelo pensador em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, de 1936.
Sob esse ponto de vista, a arte é um objeto impassível de discussão. Ela está sobre um pedestal e lá se torna intocável. No atual momento, para uma mídia que, apesar de já ter avançado muito nesse quesito, ainda tenta se consolidar ao lado de outras mais tradicionais como o cinema, a música ou até mesmo o teatro, essa sacralidade é prejudicial, pois é a partir de uma análise discursiva que irão surgir novas ideias que ajudem a solidificar o papel do videogame na cultura humana do século XXI.
Seria muito mais benéfico, no entanto, deixarmos um pouco de lado essa discussão quase que shakespeariana sobre “ser ou não ser” arte para considerarmos a mídia videogame como cultura de massa. Segundo Edgar Morin, cultura de massa é aquilo produzido a partir de técnicas de fabricação industrial e propagadas de forma maciça, atingindo um o público em grande escala de forma homogênea.
Essa definição cunhada em 1962 na obra “Cultura de Massa no Século XX” se aplica na maneira como o jogo de videogame em si é produzido como produto mercadológico e tem como destino final um consumidor. Apesar de cada jogador nutrir uma experiência diferenciada pelo fato de que o videogame como meio de comunicação permite formas únicas e personalizadas de jogo — a proposta de No Man’s Sky, apesar de falhar na entrega final, é justamente um exemplo disso —, o produto em si a ser vendido, aquele cartucho ou disco que está na caixa lacrada, ainda é o mesmo.
Cultura, por si só, é definida por um corpo de imagens que penetram o senso comum e afetam diretamente aspectos sociais que vão além dela própria. A influência em questão ultrapassa os limites do nicho referente apenas ao videogame propriamente dito.
É esse tipo de impacto social que o videogame precisa causar para estabelecer de vez sua hegemonia na modernidade. Nota-se, no entanto, que é necessário também que haja um olhar sobre si próprio que reconheça a própria posição como um item que começou a atingir uma esfera popular após o crash da década de 1980 como um produto cujo público-alvo principal era infantil. Não deveria ser vergonha alguma admitir algo assim. O próprio cinema, hoje consolidada como a sétima arte, começou com os nickelodeons, máquinas capazes de reproduzir filmes curtos e que tinha como audiência a massa proletária.
O videogame e como ele é cultuado
Pense em uma fazenda que tenha um pomar, onde frutos são plantados e colhidos. É possível dizer que essa mesma fazenda é especializada na cultura de frutas, porque há um responsável por mantê-los saudáveis para uma colheita futura. Desses frutos colhidos, sementes são extraídas e novas árvores poderão ser plantadas, formando um ciclo.
Analogamente, isso acontece com o videogame como produto mercadológico. Há uma cultura acerca dos games e o fazendeiro responsável por mantê-la é o próprio jogador. Assim como o cinema ou a música atraem seus fanáticos que formam suas próprias tribos e têm características e práticas singulares que as definem, o mesmo acontece com o jogador de videogame.
A chamada cultura se define dessa forma. O videogame transmite símbolos específicos que são interpretados pelos jogadores e que transformam, entre si, esses mesmos símbolos em outros. A imagem tem um poder singular e é capaz de causar essa comoção em um grupo de indivíduos.
A utilização do termo tribo como citado anteriormente não foi por acaso. Marshall McLuhan, em "A Galáxia de Gutenberg”, de 1962, cunha o termo aldeia global, que se refere à forma como a tecnologia permite que barreiras nacionais sejam quebradas e o mundo todo passe a interagir entre si como uma aldeia. Nesse caso em específico, pode se referir à tribo de jogadores, pois o videogame é capaz de promover isso com sistemas multiplayer globais que fomentam a interação entre os atores.
Esses mesmos players, além de simplesmente jogarem, produzem conteúdo referente ao videogame e que sustentam essa cultura cada vez mais viva. Fanfics surgem para expandir o universo de personagens que são idolatrados da mesma forma que um ator no cinema ou um cantor no ramo da música. Esse culto é o que fortalece o videogame como mídia. O próprio McLuhan considera isso um importante fator de mudança social:
“Cinema, rádio e televisão situam certas personalidades num novo plano de existência. Elas existem não tanto em si mesmas, mas como tipos da vida coletiva sentidos e percebidos através de um meio de massa. L'il Abner, Bob Hope, o Pato Donald e Marilyn Monroe tornam-se pontos de consciência coletiva e comunicação para uma sociedade inteira”
Videogame não pode ser apenas arte. Videogame é divertido!
O problema principal a respeito do videogame é que os jogos digitais estão seguindo por um caminho pouco interessante para algo cujo objetivo do consumidor ao experimentá-lo é o entretenimento, tal qual como o cinema ainda em suas formas mais precárias. A classificação como uma forma de arte contraria esse conceito-chave no qual o próprio mercado é calcado. É por isso que há certo desdém em determinados títulos produzidos anualmente num ritmo industrial, como FIFA ou Call of Duty, que podem ser encarados como a materialização dessa ideia.
O próximo passo da suposta dominação mundial da cultura dos games deveria ser o de aceitar que esse tipo de título é necessário para a consolidação de uma mídia. Essa suposição de que o videogame ainda luta para se estabilizar como uma mídia hegemônica na sociedade pode parecer exagerada ou apocalíptica, mas os números comprovam que o mundo já consome menos videogame do que estava consumindo há dez anos. Analisando de forma superficial, é possível perceber a decrescente nos gráficos em relação à aparelhagem vendida ao longo dos anos. Não importa se já tem algum tempo que o rendimento da indústria de jogos é maior do que a do cinema. A do cinema, ao menos, segue em crescimento, apesar de ter enfrentado sucessivas crises.
Em verde, o crescimento (em milhões) da bilheteria dos cinemas somado a outras formas de distribuição, como streaming e home video. Estatísticas além de 2011 para o rendimento das bilheterias podem ser encontradas no mais recente relatório da Motion Picture Association from America, que já em 2012 mostra um salto de 32,6 para 34,7 bilhões de dólares. (Fonte: Mediamorphis: Network Media Industries and the Forces of Change and Conservation) |
McLuhan, já na década de sessenta, previa que as novas formas de comunicação passariam por esse problema, de terem que se aceitar como cultura de massa. De acordo com ele, “será precisamente devido ao fato de estabelecermos a mais ampla separação entre cultura e os nossos novos meios que nos tornamos incapazes de encarar os novos meios como cultura”? É algo a se questionar.
Essa definição de arte acaba por ser uma faca de dois gumes. O motivo é porque, segundo Morin, “Os cultos vivem numa concepção valorizante, diferenciada, aristocrática, da cultura. É por isso que o termo ‘cultura do século XX’ lhes evoca imediatamente não o mundo da televisão, do rádio, do cinema, dos comics, da imprensa, das canções, do turismo, das férias, dos lazeres, mas Mondrian, Picasso, Stravinsky, Alban, Berg, Musil, Proust, Joyce”. Considerando esses dois grupos, fica aberto o questionamento: com qual deles o jogador médio, comum, vai acabar se entretendo mais?
Revisão: Vitor Tibério
Errata (atualização em 25/07): Uma versão anterior do texto constatava que Dragon Quest foi responsável por instituir uma lei no Japão que impedia que jogos de sucesso fossem lançados durante o dia de semana para impedir que os cidadãos faltassem à escola e ao trabalho. Após uma pesquisa a respeito do fato, descobrimos que tal informação não passava de um mito urbano que perdurou por vários anos até ser desmentido no final da década passada, mas não antes de ser repassada por alguns veículos de reputação consolidada.