Segundo o estudioso do jornalismo e da cultura que o cerca, Nelson Traquina, em sua obra, Teorias do Jornalismo, “o furo é um elemento importante na cultura jornalística”. Ele se define pela divulgação de uma informação, muitas vezes exclusiva, da forma mais rápida possível. Antes da cultura da internet, era o furo que delimitava o jornalista como uma espécie de porteiro (gatekeeper, em inglês), visto que, além de meramente escrever os textos, também tinha a função selecionar e definir o que era notícia e o que não era.
Dessa forma, um furo relacionado ao jornalismo especializado em videogame, numa era anterior à consolidação da internet — não necessariamente anterior porque a editoria de games só conseguiu se firmar graças a ela, mas isso é conversa para outro dia — envolveria conseguir uma informação exclusiva diretamente com as produtoras ou com os estúdios de desenvolvimento, visto a relação de dependência dessa cultura jornalística específica em relação à indústria; afinal, o videogame só se tornou objeto de cobertura porque há quem os produza.
Com o advento da digitalização, as empresas passaram a ter uma voz ativa muito mais próxima do consumidor, estabelecendo uma relação mais direta na comunicação. Os Nintendo Direct são um exemplo prático dessa transição. Anteriormente, a Nintendo repassaria a informação a veículos especializados, fossem eles próprios, como a Nintendo Power, ou não, como a IGN ou Gamespot, que são mais abrangentes. Com a introdução dos Direct em 2011, a empresa passou a transmitir o conteúdo diretamente ao consumidor, eliminando a eventual barreira, ou melhor, o portão presente entre o público e a marca.
Esse processo transitório acaba colocando o jornalismo e a cultura do gatekeeper — e aqui não apenas ao especializado em videogame, mas da prática como um todo — em xeque. Henry Jenkins, estudioso de mídia e comunicações, considera que essa cultura do porteiro está decadente, visto que o fluxo da informação é muito grande e a informação privilegiada, que antes era direcionada à imprensa para que pudesse ser divulgada, acaba caindo nas redes e, consequentemente, chegando ao público de forma independente.
Esse tipo de prática abala as estruturas jornalísticas e tem consequências catastróficas para tal cultura, visto que a informação deixou de ser exclusiva da imprensa, que agora vai se resumir apenas a reproduzir um fato já divulgado antes pelas próprias empresas. Uma alternativa a isso, se houver ousadia, é a capacidade da imprensa de também noticiar boatos ou eventuais lançamentos, mas isso colocaria em xeque sua credibilidade, descendo do patamar de fonte confiável para se equiparar a um leaker comum nas redes, cuja informação é sempre questionável.
Cultura participativa
Um dos diferenciais da cultura que cerca os games é a existência de uma participação muito grande por parte de seu público. Isto é, o jogador gosta de ter voz ativa na produção do conteúdo tanto quanto as empresas. Ele gosta de participar das discussões. Isso é intimamente relacionado com a própria mídia videogame, que dá o poder do controle ao jogador, algo que se repete nas relações interpessoais: ele quer participar.
Essa prática leva a imprensa a competir não só internamente, na concorrência entre os veículos, mas também, de uma forma curiosa, contra os jogadores, o próprio público. A problemática é que, enquanto um veículo tem uma reputação a zelar, não devendo repassar uma informação de origem duvidosa, de caráter não averiguado ou, de forma direta, falsa, o usuário comum de uma rede social não terá tais correntes o prendendo, principalmente porque muitas vezes um eventual vazamento se dá de forma anônima. Em Redes Sociais na Internet, Raquel Recuero descreve que a reputação é o fator que determina em quem é possível confiar. Sem esse capital de confiança, um dos últimos critérios determinantes que definem o valor da imprensa acaba se esvaindo.
Paralelamente a isso, há também o valor da autoridade, que teoricamente seria a principal arma da imprensa para, enfim, dar alguma credibilidade aos rumores ou, em outros casos confirmar algum eventual vazamento e cravá-lo como certo. No entanto, essa autoridade é, ou ao menos deveria ser, exercida cautelosamente, visto que caso seja utilizada de forma errônea, acaba afetando a integridade do veículo, ou é o que se espera.
Artigos publicados a respeito do abaixo-assinado contra o Far Cry 5 — todos em apenas seis horas (fonte: Twitter). |
Um exemplo de erro jornalístico interessante foi a respeito de um suposto abaixo-assinado pedindo o cancelamento do Far Cry 5. O fato foi noticiado por uma infinidade de portais, mas foram poucos os que se deram ao trabalho de encará-lo como a piada que é e, consequentemente, não o considerar uma notícia de fato. Os que o fizeram não tiveram como pauta principal a petição, mas a comoção e a discussão gerada dela, como é o exemplo de um texto da Forbes a respeito.
É possível ainda que tais veículos estejam divulgando a notícia apenas no intuito de gerar novas visitas ou espalhar tal abaixo-assinado com viés de piada. Tendo isso em vista, o que diferencia a imprensa de games profissionalizada de um simples youtuber que faz vídeos aleatórios do próprio quarto, já que a pauta é a mesma? Observa-se uma dificuldade, bem como uma necessidade, de encontrar material que o jornalismo possa utilizar e que se diferencie do trabalho dos youtubers e da comunidade participativa.
Análise de Caso: O “Escândalo” de Wottergate
O Escândalo de Watergate é um case conhecido no meio jornalístico a respeito de uma pauta conduzida pelos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein para o Washington Post a fim de verificar eventuais ilegalidades no governo Nixon, na década de 70. O processo da investigação teve como base informações vazadas por uma figura oculta chamada Garganta Profunda (Deep Throat, no original) e resultou no impeachment do presidente eleito. O caso se tornou um exemplo na comunidade jornalística de que o processo jornalístico não se resume a obter dados diretos de uma fonte, mas ir atrás de provas que solidifiquem os depoimentos recebidos.
Wottergate, por sua vez, aconteceu em 2010, à luz do lançamento de Pokémon Black & White. Ele teve início quando um site de pequeno porte na época chamado Pokéxperto divulgou as evoluções dos iniciais, desconhecidas até então. A internet, por sua vez, tem uma reação natural a esse tipo de fenômeno: o de questionar e debater a respeito. Jenkins (que já citamos anteriormente), descreve esse processo como antagônico, quase que um tribunal onde se tenta encontrar a verdade.
O impacto que o vazamento das últimas evoluções dos iniciais é um exemplo concreto de como a atividade jornalística e a dos fãs é cada vez mais interligada no ambiente virtual. |
A questão chega ao olho do furacão quando outro portal especializado em Pokémon, o Serebii, confirmou a imagem vazada dos iniciais. A discussão se intensificou devido ao fato de tal veículo ser considerado tradicional no nicho, o que confere autoridade para validar eventuais vazamentos. Dentre os novos questionamentos, há em relação à fonte, se o Pokéxperto e o Serebii tiraram informações de um terceiro indivíduo ou se tiraram um do outro, e em relação à própria suposta autoridade do Serebii, visto que trouxeram à tona um caso específico quando publicaram uma notícia errônea que alega que o Gastrodon seria uma pré-evolução do Lapras.
A ideia, então, era que a fonte oculta responsável pelos vazamentos estava atrás justamente de incitar o caos. O paralelo principal entre o Wottergate e o Watergate real está na existência desse suposto indivíduo transmitindo a informação de forma oculta. Uma das hipóteses é justamente a de um vazamento interno — tal qual o Garganta Profunda, cuja identidade anos depois foi revelada como Mark Felt, vice-presidente do FBI.
Essa discussão que, no fundo, não deixava de ter como centro os jogos Pokémon Black & White, serve para incitar maior ruído a respeito do mesmo, como uma espécie de publicidade velada. Independente de como estão falando, o que importa era deixar o jogo ser a pauta central da comunidade gamer.
Tal estratégia é costumeiramente usada de uma forma escancarada pela indústria na construção de um sentimento chamado hype, pois percebeu-se que era a forma mais eficaz incitar vendas. O remake de Final Fantasy VII, que ainda aparenta estar longe de ver a luz do dia é um exemplo claro disso. Por outro lado, há o caso de No Man’s Sky, cuja expectativa fomentada não correspondeu ao produto final.
Historicamente, talvez, o ocorrido que mais se aproxima do Wottergate diz respeito à franquia Assassin’s Creed, considerando que artes de divulgação do terceiro jogo foram parar na internet antes do anúncio oficial, e isso foi suficiente para criar novas expectativas e discussões. No entanto, como títulos da franquia já tinham sido vazados anteriormente (mesmo que apenas o título ou o registro), algo que também aconteceu nos títulos subsequentes, esse leak em específico não teve a mesma magnitude do Wottergate.
O trunfo da imprensa de games
Diante de tais acontecimentos, observa-se que esse conflito incitado em relação à informação e às suas velocidade e veracidade cria precedentes no jornalismo como um todo. O jornalismo de games acaba sendo especial. Enquanto a sociedade como um todo adentra apenas agora na era das Fake News — digo isso de uma forma intensiva a ponto de decidir uma eleição a nível nacional, visto que é algo que sempre existiu —, que são constantemente discutidas em redes sociais, a imprensa de jogos digitais já enfrenta esse problema há décadas, considerando sua comunidade fortemente participativa.
A solução, por sua vez, está no clássico valor-notícia do ineditismo, aquele que dita que “vence quem primeiro dá a notícia”, já que, com uma informação privilegiada (que se mostra correta, é bom ressaltar), os veículos conseguem justificar a sua existência a meio de empresas que hoje, em vez de utilizarem o jornalismo como um intermediário, divulgam as novidades em seu novo canal.
O conceito de trazer novidades, fatos inéditos, é a espinha dorsal da prática jornalística. Conseguindo estabelecer novamente essa ideia e apostando no potencial de um furo jornalístico (desde que com responsabilidade) na modernidade da imprensa de games, é possível chamar novamente a atenção dos jogadores desacreditados nesse jornalismo de nicho, que a partir daí passarão a consumir não apenas as notícias, mas também reportagens de caráter menos imediato, mas mais analíticas e trabalhadas, visto que o portal passa a se tornar referência e adquirir autoridade suficiente para justificar sua existência em meio ao seu público.
Revisão: Bruno Alves