O furo jornalístico na imprensa de games e como os jogadores lidam com isso

Observações a respeito de uma prática desacreditada pela comunidade e com um valor em constante questionamento a respeito da necessidade de sua existência.

em 09/07/2017

Segundo o estudioso do jornalismo e da cultura que o cerca, Nelson Traquina, em sua obra, Teorias do Jornalismo, “o furo é um elemento importante na cultura jornalística”. Ele se define pela divulgação de uma informação, muitas vezes exclusiva, da forma mais rápida possível. Antes da cultura da internet, era o furo que delimitava o jornalista como uma espécie de porteiro (gatekeeper, em inglês), visto que, além de meramente escrever os textos, também tinha a função selecionar e definir o que era notícia e o que não era.


Dessa forma, um furo relacionado ao jornalismo especializado em videogame, numa era anterior à consolidação da internet — não necessariamente anterior porque a editoria de games só conseguiu se firmar graças a ela, mas isso é conversa para outro dia — envolveria conseguir uma informação exclusiva diretamente com as produtoras ou com os estúdios de desenvolvimento, visto a relação de dependência dessa cultura jornalística específica em relação à indústria; afinal, o videogame só se tornou objeto de cobertura porque há quem os produza.

Com o advento da digitalização, as empresas passaram a ter uma voz ativa muito mais próxima do consumidor, estabelecendo uma relação mais direta na comunicação. Os Nintendo Direct são um exemplo prático dessa transição. Anteriormente, a Nintendo repassaria a informação a veículos especializados, fossem eles próprios, como a Nintendo Power, ou não, como a IGN ou Gamespot, que são mais abrangentes. Com a introdução dos Direct em 2011, a empresa passou a transmitir o conteúdo diretamente ao consumidor, eliminando a eventual barreira, ou melhor, o portão presente entre o público e a marca.


Esse processo transitório acaba colocando o jornalismo e a cultura do gatekeeper — e aqui não apenas ao especializado em videogame, mas da prática como um todo — em xeque. Henry Jenkins, estudioso de mídia e comunicações, considera que essa cultura do porteiro está decadente, visto que o fluxo da informação é muito grande e a informação privilegiada, que antes era direcionada à imprensa para que pudesse ser divulgada, acaba caindo nas redes e, consequentemente, chegando ao público de forma independente.

Esse tipo de prática abala as estruturas jornalísticas e tem consequências catastróficas para tal cultura, visto que a informação deixou de ser exclusiva da imprensa, que agora vai se resumir apenas a reproduzir um fato já divulgado antes pelas próprias empresas. Uma alternativa a isso, se houver ousadia, é a capacidade da imprensa de também noticiar boatos ou eventuais lançamentos, mas isso colocaria em xeque sua credibilidade, descendo do patamar de fonte confiável para se equiparar a um leaker comum nas redes, cuja informação é sempre questionável.

Cultura participativa


Um dos diferenciais da cultura que cerca os games é a existência de uma participação muito grande por parte de seu público. Isto é, o jogador gosta de ter voz ativa na produção do conteúdo tanto quanto as empresas. Ele gosta de participar das discussões. Isso é intimamente relacionado com a própria mídia videogame, que dá o poder do controle ao jogador, algo que se repete nas relações interpessoais: ele quer participar.

Essa prática leva a imprensa a competir não só internamente, na concorrência entre os veículos, mas também, de uma forma curiosa, contra os jogadores, o próprio público. A problemática é que, enquanto um veículo tem uma reputação a zelar, não devendo repassar uma informação de origem duvidosa, de caráter não averiguado ou, de forma direta, falsa, o usuário comum de uma rede social não terá tais correntes o prendendo, principalmente porque muitas vezes um eventual vazamento se dá de forma anônima. Em Redes Sociais na Internet, Raquel Recuero descreve que a reputação é o fator que determina em quem é possível confiar. Sem esse capital de confiança, um dos últimos critérios determinantes que definem o valor da imprensa acaba se esvaindo.

Paralelamente a isso, há também o valor da autoridade, que teoricamente seria a principal arma da imprensa para, enfim, dar alguma credibilidade aos rumores ou, em outros casos confirmar algum eventual vazamento e cravá-lo como certo. No entanto, essa autoridade é, ou ao menos deveria ser, exercida cautelosamente, visto que caso seja utilizada de forma errônea, acaba afetando a integridade do veículo, ou é o que se espera.

Artigos publicados a respeito do abaixo-assinado contra o Far Cry 5 —  todos em apenas seis horas (fonte: Twitter).

Um exemplo de erro jornalístico interessante foi a respeito de um suposto abaixo-assinado pedindo o cancelamento do Far Cry 5. O fato foi noticiado por uma infinidade de portais, mas foram poucos os que se deram ao trabalho de encará-lo como a piada que é e, consequentemente, não o considerar uma notícia de fato. Os que o fizeram não tiveram como pauta principal a petição, mas a comoção e a discussão gerada dela, como é o exemplo de um texto da Forbes a respeito.

É possível ainda que tais veículos estejam divulgando a notícia apenas no intuito de gerar novas visitas ou espalhar tal abaixo-assinado com viés de piada. Tendo isso em vista, o que diferencia a imprensa de games profissionalizada de um simples youtuber que faz vídeos aleatórios do próprio quarto, já que a pauta é a mesma? Observa-se uma dificuldade, bem como uma necessidade, de encontrar material que o jornalismo possa utilizar e que se diferencie do trabalho dos youtubers e da comunidade participativa.

Análise de Caso: O “Escândalo” de Wottergate


O Escândalo de Watergate é um case conhecido no meio jornalístico a respeito de uma pauta conduzida pelos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein para o Washington Post a fim de verificar eventuais ilegalidades no governo Nixon, na década de 70. O processo da investigação teve como base informações vazadas por uma figura oculta chamada Garganta Profunda (Deep Throat, no original) e resultou no impeachment do presidente eleito. O caso se tornou um exemplo na comunidade jornalística de que o processo jornalístico não se resume a obter dados diretos de uma fonte, mas ir atrás de provas que solidifiquem os depoimentos recebidos.

Wottergate, por sua vez, aconteceu em 2010, à luz do lançamento de Pokémon Black & White. Ele teve início quando um site de pequeno porte na época chamado Pokéxperto divulgou as evoluções dos iniciais, desconhecidas até então. A internet, por sua vez, tem uma reação natural a esse tipo de fenômeno: o de questionar e debater a respeito. Jenkins (que já citamos anteriormente), descreve esse processo como antagônico, quase que um tribunal onde se tenta encontrar a verdade.

O impacto que o vazamento das últimas evoluções dos iniciais é um exemplo concreto de como a atividade jornalística e a dos fãs é cada vez mais interligada no ambiente virtual. 
Dessa forma, como em tantos outros casos anteriores e posteriores ao Wottergate, a comunidade estabeleceu mecanismos de defesa que irão contrariar tal informação de origem questionável, formando um grupo comumente chamado de deniers (do inglês, negadores) que irão bater de frente com aqueles que acreditam ou querem acreditar nessa nova informação. Desse conflito, são fomentadas discussões que, teoricamente, deveriam caminhar em direção a uma verdade.

A questão chega ao olho do furacão quando outro portal especializado em Pokémon, o Serebii, confirmou a imagem vazada dos iniciais. A discussão se intensificou devido ao fato de tal veículo ser considerado tradicional no nicho, o que confere autoridade para validar eventuais vazamentos. Dentre os novos questionamentos, há em relação à fonte, se o Pokéxperto e o Serebii tiraram informações de um terceiro indivíduo ou se tiraram um do outro, e em relação à própria suposta autoridade do Serebii, visto que trouxeram à tona um caso específico quando publicaram uma notícia errônea que alega que o Gastrodon seria uma pré-evolução do Lapras.

Os iniciais da sétima geração também foram vazados. No entanto, por terem uma fonte obscura em imageboards cujo grau de confiabilidade é questionado, nenhum veículo se atreveu a cravar a informação como verídica. 
Outro posicionamento interessante foi feito na comunidade Bulbagarden (do Bulbapedia), que colocava que a discussão sobre a legitimidade da informação se deu pelo fato de ter sido o Pokéxperto a divulgá-la, visto que ele estava numa posição interessante por angariar visitas suficientes para chamar atenção, mas não se colocava no mesmo patamar histórico de tradicionalismo e confiança do Serebii, que, se fosse o responsável pelo leak, dificilmente teria provocado discussões como as que tiveram lugar.

A ideia, então, era que a fonte oculta responsável pelos vazamentos estava atrás justamente de incitar o caos. O paralelo principal entre o Wottergate e o Watergate real está na existência desse suposto indivíduo transmitindo a informação de forma oculta. Uma das hipóteses é justamente a de um vazamento interno —  tal qual o Garganta Profunda, cuja identidade anos depois foi revelada como Mark Felt, vice-presidente do FBI.

Essa discussão que, no fundo, não deixava de ter como centro os jogos Pokémon Black & White, serve para incitar maior ruído a respeito do mesmo, como uma espécie de publicidade velada. Independente de como estão falando, o que importa era deixar o jogo ser a pauta central da comunidade gamer.

Tal estratégia é costumeiramente usada de uma forma escancarada pela indústria na construção de um sentimento chamado hype, pois percebeu-se que era a forma mais eficaz incitar vendas. O remake de Final Fantasy VII, que ainda aparenta estar longe de ver a luz do dia é um exemplo claro disso. Por outro lado, há o caso de No Man’s Sky, cuja expectativa fomentada não correspondeu ao produto final.

Historicamente, talvez, o ocorrido que mais se aproxima do Wottergate diz respeito à franquia Assassin’s Creed, considerando que artes de divulgação do terceiro jogo foram parar na internet antes do anúncio oficial, e isso foi suficiente para criar novas expectativas e discussões. No entanto, como títulos da franquia já tinham sido vazados anteriormente (mesmo que apenas o título ou o registro), algo que também aconteceu nos títulos subsequentes, esse leak em específico não teve a mesma magnitude do Wottergate.

O trunfo da imprensa de games

Checagem dos dados é importante. Imagine se Frank West tivesse só dado uma voltinha de helicóptero pela região sem descer dele. A situação poderia ter ficado bem pior porque muitas verdades jamais teriam visto a luz do dia. 
Diante de tais acontecimentos, observa-se que esse conflito incitado em relação à informação e às suas velocidade e veracidade cria precedentes no jornalismo como um todo. O jornalismo de games acaba sendo especial. Enquanto a sociedade como um todo adentra apenas agora na era das Fake News — digo isso de uma forma intensiva a ponto de decidir uma eleição a nível nacional, visto que é algo que sempre existiu —, que são constantemente discutidas em redes sociais, a imprensa de jogos digitais já enfrenta esse problema há décadas, considerando sua comunidade fortemente participativa.

A solução, por sua vez, está no clássico valor-notícia do ineditismo, aquele que dita que “vence quem primeiro dá a notícia”, já que, com uma informação privilegiada (que se mostra correta, é bom ressaltar), os veículos conseguem justificar a sua existência a meio de empresas que hoje, em vez de utilizarem o jornalismo como um intermediário, divulgam as novidades em seu novo canal.

O conceito de trazer novidades, fatos inéditos, é a espinha dorsal da prática jornalística. Conseguindo estabelecer novamente essa ideia e apostando no potencial de um furo jornalístico (desde que com responsabilidade) na modernidade da imprensa de games, é possível chamar novamente a atenção dos jogadores desacreditados nesse jornalismo de nicho, que a partir daí passarão a consumir não apenas as notícias, mas também reportagens de caráter menos imediato, mas mais analíticas e trabalhadas, visto que o portal passa a se tornar referência e adquirir autoridade suficiente para justificar sua existência em meio ao seu público.

Revisão: Bruno Alves


É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.