Distortions: uma jornada musical 100% brasileira sobre autoconhecimento

Conheça o game da Among Giants, que ficou oito anos em desenvolvimento e acumulou 3 mil votos no Steam Greenlight, em entrevista com os responsáveis pelo projeto.

em 10/06/2017

"O jogo é sobre o redescobrimento da sua identidade junto do quanto você quer descobrir sobre suas memórias. Conforme você vai descobrindo sua identidade, também descobre cada vez mais memórias, e essas memórias vão incomodando a personagem até certo ponto, quando tem que tomar algumas decisões: se vai continuar buscando essas memórias ou assumir quem é para uma vida nova sem essas memórias que está redescobrindo", explica o roteirista do título, Ricardo Dias, ao lado de Carlos Eduardo Cipolla, responsável pelo level design, e Thiago Girello, diretor criativo, em entrevista exclusiva para o Gameblast.


Os três estão por trás da concepção de Distortions, um jogo 100% brasileiro em desenvolvimento pelo estúdio Among Giants e que acumulou quase 3 mil votos em apenas dez dias de campanha no Steam Greenlight, ficando em 58º lugar dentre outras 3.400 inscrições.

O enredo se baseia na história de uma menina que acorda num mundo sem a percepção do tempo e que parece estar colapso. A garota, com as memórias a respeito de seu passado enevoadas, distorcidas (daí o nome do jogo), passa a ser auxiliada por um homem de máscara, embarcando numa jornada de autodescobrimento em que precisa escolher se prefere se apegar ao passado ou seguir em frente, de olho no futuro. Para isso, é necessário transitar entre dois mundos, o distorcido e o branco, e, da relação que estabelece entre eles, ela conseguirá alcançar suas respostas.






O gameplay prático se baseia na relação que a personagem tem com a música. O violino dela é essencial, pois, com ele, é possível moldar o mundo à sua volta, vencer os desafios que enfrenta e sobreviver nesse mundo tão estranho. “É complicado dizer sem dar spoilers, mas ela tem muita dificuldade com palavras, para se expressar, então se usa da música para isso”, explica Girello, que ainda complementa: “Ela não gosta de tocar partituras, ela gosta de improvisar. Você vê muito disso no jogo. Ele expressa muito a personagem, as evoluções que em qualquer história normal ou filme seria através de palavras ou textual e no nosso jogo é através da música."

Segundo Girello, a ideia de transformar a música no fio condutor da história vem de suas experiências pessoais, de seu próprio processo criativo. O desenvolvimento das fases do jogo em si é pautado primeiramente no ritmo e depois têm sua ambientação desenvolvida. Em Distortions, “a linguagem do jogo é a de videoclipe”, na qual a música é quem dita a sequência imagética, que aqui se utiliza do surrealismo como norte para a direção artística, dando vida a cavernas, florestas e oceanos.

Devido a uma atmosfera minimalista, contemplativa e reflexiva, o jogo foi frequentemente tratado como um objeto artístico. No entanto, quando indagado sobre essa questão, o trio logo se explica: “a gente nunca teve a intenção de fazer um jogo artístico.”

Girello, por sua vez, pondera a questão e justifica a suposta confusão: “A gente aborda um tema que não é tão convencional [...] É um gênero que não costuma se ver muito por aí, como o de tiro, que é mais comum. A linha de arte que tem uma diferença, porque a gente quis optar por paletas que não são tão convencionais, já que as cores [predominantes] do jogo são o roxo e amarelo, o que dá esse ar que é mais artístico.”



"Não é artístico em si a palavra, a gente quis fazer algo simples, mas praticamente interessante", explicou Dias, sobre como a ideia é se utilizar de atributos diferenciados para atrair eventuais jogadores, mas que se somam a elementos conhecidos dos games para trazer maior familiaridade a quem já é gamer. A série The Legend of Zelda, por exemplo, foi citada como uma das principais influências por trás da concepção do título e tem similaridades que vão desde à interface do violino, que teve Ocarina of Time como inspiração, até o sentimento de mundo aberto sem orientação onde a garota se encontra, semelhante à iteração mais recente da série, Breath of the Wild.

Tal jogo, aliás, foi usado como exemplo para ilustrar a ideia minimalista de que o jogo é aberto para o jogador fazer suas próprias escolhas a respeito de seu desenvolvimento, uma vez que tal linha se aplica “não só em narrativa, mas em linha de design, aquele design de subtração”, onde menos é mais, de acordo com Girello, e que se mantém não apenas na narrativa ou na parte estética, mas no próprio gameplay e no desenvolvimento dos níveis, tal qual Shadow of the Colossus.

No entanto, engana-se quem pensa que Distortions é uma experiência tranquila e uníssona. Tentou-se balancear o jogo, analisando se em momentos que, na prática, acabavam ficando muito monótonos, não era possível introduzir elementos induzam a adrenalina e vice-versa. Isso também se aplica ao gameplay, que se alterna entre terceira e primeira pessoa, dependendo da situação. Em momentos de ação, o jogo se encarna como um sidescrolling de plataforma, em que é possível ver os monstros perseguindo a personagem. Em outros momentos, mais contemplativos ou tensos, o jogo passa para a primeira pessoa no intuito de fomentar maior imersão ao jogador.

"A gente tem essas brincadeiras, que vão mudando o gameplay. [Em] alguns momentos em que a história vai mais para frente, dá mais respostas para o jogador, o jogo é bem mais linear por umas duas, três horas. Depois a gente quer que o jogador se sinta perdidão, ele fica num mundão aberto", explica Girello sobre o ritmo do jogo.

Cipolla, por sua vez, complementa:  "Tudo o que a gente pensou e desenvolveu é para manter o melhor do jogo, do gameplay. Você vai ter de tudo um pouco. Não vai ser chato, parado, mas não vai ser aquela coisa repetitiva de só ação, ação e ação."

O trio da Among Giants também faz questão de ressaltar que todas essas experiências ficam por conta do jogador. Eles assumem o compromisso de que é o jogador o responsável por contar a história e não o contrário, onde o jogo apresenta a história ao jogador. "A gente não tira o controle da mão do jogador em nenhuma hora", Girello esclarece. "Muitas coisas que qualquer pessoa resolveria em cutscene, a gente tenta resolver em gameplay", completou.

Sobre suas as principais influências, Distortions é inspirado, além de Zelda e Shadow of the Colossus, por Silent Hill 2 e como os monstros do título da Konami servem como metáfora para os conflitos do personagem, tal qual aparenta acontecer em Distortions.

A literatura também ajudou a conceber os Mascarados, como é o caso do conto A Máscara da Morte Rubra, sobre um baile de máscaras medieval onde um dos convidados é a própria morte. “Quando a gente criou as sombras, a ideia de colocar a máscaras em todos os personagens veio daí, do conceito de não saber mais quem é quem e de que você não pode confiar em ninguém, de que você sabe que alguém lá vai poder te ajudar e você não sabe quem é”, explica Dias.



Citando também Kubrick, Wes Anderson e Darren Aronofsky, Girello comenta a forma que tais referências foram utilizadas: “faz uma torta disso tudo e você vê claramente o Distortions. Você consegue ver pontualmente todas essas referências e onde elas estão”. Ao ser questionado sobre a arte japonesa, Dias afirma que há porções de “Miyazaki, com certeza. O Monstro tem muito de [A Viagem de] Chihiro”. Girello já é mais sucinto ao especificar que, “plasticamente, a referência vem muito do Hayao Miyazaki, de Chihiro, e eu acho que a parte japonesa termina aí”.

Considerando o mercado de jogos brasileiros, o título Toren, lançado em 2015, foi trazido à tona em um panorama de comparação. Apesar de respeitarem todo o processo notável pelo qual o jogo passou até ser finalmente publicado e divulgado, o trio da Among Giants ressalta que Distortion tem um viés completamente diferente. "O pessoal vai comparar com o Toren pelo fato de ser um game em 3D há muito tempo em desenvolvimento com uma protagonista mulher e feito no Brasil", explicou Girello.

Dias, por sua vez, consegue estabelecer alguma relação entre os títulos: "A gente viu como o Toren fez algumas coisas, e assim, não que a gente tenha usado o jogo para se basear, mas uma coisa do Toren que influenciou a gente é que não queríamos fazer um jogo parecido com o Toren. Não porque a gente acha ruim, mas porque o nosso tem uma pegada diferente". Girello ainda complementa: "O Toren é um projeto surrealista que não tem muita pretensão em ser comercial na parte de narrativa e tudo mais. A gente também é surrealista, mas uma coisa que a gente se preocupa bastante é que o nosso mundo é muito lógico. Ele tem sistemas e ferramentas que funcionam e temos a preocupação de não quebrar isso em nenhum momento, de perder a lógica disso."



Por fim, questionou-se a respeito da otimização técnica para que o jogo rode no PC. "Ele está bem otimizado e trabalhamos bastante nisso", explicou Girello. "A performance dele está boa. Com as configurações no máximo, você roda bem com uma Nvidia 750. A pior máquina que tentou rodar o jogo foi num notebook de 2011, e ele rodou. Lógico, a performance estava horrível e com um fps baixíssimo, mas funcionou bem. Para quem não liga para isso, conseguiria jogar numa máquina que não era nem notebook gamer”, esclarece.

A partir daqui, só resta esperar que o título consiga a aprovação final para ser lançado na plataforma Steam e seja um sucesso. Seria um grande passo para o mercado brasileiro de games que um jogo faça sucesso, ainda mais considerando que Distortions foi claramente o resultado de muito empenho por parte da Among Giants nesses oito anos de desenvolvimento.
Revisão: Bruno Alves


É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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