Toda narrativa comercial, isto é, incorporada a um produto midiático cujo objetivo é a venda — onde também se aplicam os videogames — precisam de uma espécie de chamariz que atraia o consumidor. Um desses chamarizes é justamente a manipulação da história e dos personagens, visto que o jogo digital como mídia é uma narrativa onde o próprio jogador pode se inserir. Assim, interessa aos estúdios que concebem os jogos utilizar arquétipos que gerem familiaridades com os jogadores.
Essa prática se dá desde os primórdios da indústria, onde os jogadores masculinos eram maioria e, portanto, os jogos são desenvolvidos visando tal público-alvo. O público feminino cresceu com a adequação e produção de jogos que teoricamente se adequam mais aos símbolos tradicionais femininos, como a delicadeza e a ternura. Números que comprovem tal familiaridade com tais temas foram levantados pela Pesquisa Game Brasil, que aponta que o público feminino tem preferência a jogos de estratégia, aventura, cartas, match-three (como Candy Crush) e trivia, em contrapartida ao masculino, que tem como preferência os jogos de ação, aventura, corrida e esportes.
Hoje o público feminino ainda representa 42% do mercado americano, segundo números da Electronic Software Association. No Brasil, esse número cresce para 52,6%, mais do que a metade. Mesmo que as jogadoras tenham passado a representar aproximadamente metade do público total, a prática de criar jogos que ainda se enquadrem nesse processo de produção visando o público masculino e utilizando arquétipos continua. No entanto, como isso se aplica na prática? Para levantarmos essa pauta, consideraremos três títulos cuja escolha se justifica pelo fato de se aplicarem nessa hipótese e analisaremos os papéis narrativos dos personagens envolvidos: No More Heroes, Bayonetta e The Legend of Zelda.
No More Heroes e Sylvia Christel
O jogo lançado originalmente para o Nintendo Wii é o caso mais exemplar e concreto na questão da identificação do jogador com o protagonista. Travis Touchdown é o nerd estereotipado e arquetípico de um herói distorcido que o cinema passou a popularizar nos anos 40 com a ascensão do cinema noir. No More Heroes, aliás, é um ode não declarado ao cinema noir, tal qual o resto da indústria do videogame hoje, que bebe da sétima arte como fonte. Não declarado porque, apesar de carregar uma infinidade de características de tal gênero, ele ainda se perde na sátira escrachada e humor nonsense que foge da ideia central de tais filmes. Há um clima de corrupção e máfia, mas o ambiente não é denso o suficiente, mesmo que o sombreamento forte e estético do noir seja emulado pelo visual cel shaded do jogo.
Segundo Areu e Kieling (2008), os filmes noir “traziam dramas inteligentes e austeros permeados por um ambiente de desconfiança, paranoia e cinismo, em cenários urbanos, frios e realistas”. Travis, por sua vez, é resultado de um ambiente recheado de “corrupção social, traição, assassinatos e roubos, quase sempre a partir de uma visão fatalista”. Ele é um assassino profissional que visa se tornar o número um da cidade após ser persuadido a tal por Sylvia Christel em uma noite de bebedeira.
Sylvia Christel é o chamariz para que Travis torne-se um assassino profissional. Isto é, ele já tinha como objetivo vingar-se de Jeane, sua meia-irmã que havia assassinado seus pais. Sylvia só foi o empurrão final para que ele caísse de cabeça no ofício.
“Com suas pernas longas, bustos volumosos, quadris contornados, e sorrisos encantadores”, como as Femme Fatales são descritas por Areu e Kieling, Sylvia Christel é dissimulada. Para que alcance seus objetivos, ela o seduz, oferecendo seu corpo caso ele se torne o assassino número um de sua cidade. É como uma barganha. Segundo Umberto Eco (1976), “As mulheres surgem, no contexto primitivo de troca, como objetos físicos, para serem usados mediante operações fisiológicas e ‘consumidos’ como sucede aos alimentos e outros bens”.
Desta forma, a trama de No More Heroes é principalmente conduzida pela figura sexualizada de Sylvia que faz questão de sempre lembrar Travis de seu prêmio ao final. Travis é também constantemente objetificado por Sylvia, que não o vê além de um brinquedo. O personagem é a representação da figura masculina de Alberoni, aquela que coloca a relação sexual como objetivo principal do homem.
No More Heroes coloca constantemente a mulher como criadora de problemas. Além de Sylvia, existe também a sombra da figura de Jeane, que sofria abuso sexual do pai de Travis e também seu próprio pai, sendo assim a meia-irmã do protagonista. Ela assassinou os pais de Travis, o que levou o protagonista a se envolver com Sylvia e finalmente, fazer o enredo se desenrolar.
A Identificação com o personagem induzida por No More Heroes trabalha com a proximidade do jogador público-alvo, o chamado hoje em dia de nerd. Sylvia Christel tem a figura da mulher sedutora manipuladora, que é uma figura “modernizada, a atração da personagem advém da imprevisibilidade de seus atos, uma mulher com liberdade de ação, instigante e sensual” nas palavras de Areu e Kieling. Os dois arquétipos em conjunto, por fim, desenvolvem a trama que chama a atenção do público-alvo e prende a atenção do jogador.
Bayonetta
Para passarmos a compreender a imagem da personagem Bayonetta, é importante que sejam esclarecidos detalhes acerca do erotismo feminino e do masculino, ambos com qualidades diferentes. O erotismo masculino é descrito por Francesco Alberoni, sociólogo italiano, em sua obra O Erotismo (1986) como uma força expressa através de imagens de impacto como uma necessidade de satisfação dos desejos sexuais. É também descrito como uma forma egoísta de obtenção de prazer em detrimento do corpo feminino a partir da dominação, deixando de lado o contexto que exija conflitos ou conquistas, características delimitativas de uma narrativa.
Dessa forma, é possível encarar a personagem Bayonetta como uma espécie de convite ao jogador masculino, que sentiria prazer em controlá-la. Dessa forma, Umberto Eco, em sua obra Tratado Geral da Semiótica (1976), afirma que a figura da mulher é um convite para estampar marcas que visem o público masculino (algo corriqueiro na indústria cervejeira) e é associada à violência de uma forma contraditória, justamente para que a cobertura de interesses desse mesmo público seja ampla.
Bayonetta, no primeiro jogo, é a personificação dessa ideia de uma forma exagerada que beira a sátira, como a sua roupa formada pelos seus cabelos e suas poses extravagantes. Bayonetta é a aplicação do arquétipo da sedução fatal feminina, a vamp, que carrega negativamente a representação feminina e coloca a mulher numa posição de arauto da desgraça e do que é ruim. O historiador francês especialista em mitos da idade média Claude Lecoteux (1999) afirma que tal arquétipo é incorporado pela mitologia das vampiras e das bruxas que sentem prazer na desgraça alheia, tal como Bayonetta se diverte combatendo seus inimigos.
Por outro lado, Bayonetta não se resume apenas à sua imagem, mas também é inserida numa narrativa e interage com outros personagens, onde o apelo para com o público feminino passa a despontar, mesmo que de forma tímida. A personagem foge da ideia costumeira de personagem impotente que precisa ser salva, recorrente dos papéis femininos, para assumir um papel de protagonista forte e que não depende de Luka, a figura masculina principal do jogo (se não contarmos o vilão) para resolver seus problemas, da mesma forma que ela não precisa dar satisfação a ninguém. Essa construção de personalidade atinge o público feminino com maior força do que o masculino que está jogando, num primeiro momento, com viés sexual, como Freud explicaria.
No caso Bayonetta, os meninos querem controlá-la de uma forma que expressa dominância, mesmo que inconscientemente. As meninas, por sua vez, querem ser como ela. O principal problema aqui é que a Bayonetta, como uma construção negativa que visa agradar ao público masculino, acaba sendo um modelo não muito bom, visto que, assim como a bruxa, as meninas passam a seguir esse mesmo caminho e contribuem para perpetuar tal ideia na sociedade em si.
Bayonetta 2, por sua vez, já mostra uma personagem menos erotizada nesse aspecto, seja como uma espécie de driblar as críticas do público feminino que cresceu e passou a ter voz ativa na hora de questionar a representação da sua imagem nos games, seja por conta da Nintendo, que é avessa a erotização e temas adultos em seus jogos e pode ter cortado as asinhas dos desenvolvedores nesse aspecto. A personagem aqui é muito mais decidida do que é em seu jogo anterior, visto que as dúvidas a respeito de suas origens foram praticamente esclarecidas. Dessa forma, ela caminha para uma personagem de tom muito mais balanceado em seu apelo tanto para o público masculino quanto feminino.
The Legend of Zelda e a princesa do título
A franquia como um todo é um caso interessante de se analisar porque, a partir dela, é possível traçar o caminho da indústria de videogame em relação à representação feminina desde a década de 80 até os dias de hoje. A estrutura de Zelda — a franquia no caso, pois se eu me referir à personagem, utilizarei “Princesa Zelda” — se assemelha com a narrativa dos contos de fada, visto que tal estrutura é conhecida do grande público e já permeia o inconsciente coletivo. Dessa forma, é um tipo de enredo de fácil manipulação para a equipe de produção e de fácil consumo e entendimento para o público geral.
Os contos de fada, por sua vez, são definidos pela presença de um herói cujo objetivo é resgatar as donzelas em perigo, em papéis dicotômicos. Segundo Pearson em sua obra O Herói Interior (1986):
Na nossa cultura, o ideal heroico do guerreiro tem sido reservado para os homens – normalmente só homens brancos. Mulheres nesse enredo são escaladas como donzelas em perigo, bruxas para serem mortas ou princesas que, com metade do reino, servem como a recompensa do herói.Assim, observamos os papéis de Link e da Princesa Zelda e como eles se relacionam no primeiro título da franquia, numa forma de facilitar a compreensão contextual do jogo por parte do público masculino. A Princesa Zelda, mesmo que num papel de destaque e dando o título à franquia em si, aqui pouco tem papel ativo na narrativa. Link é uma figura imbatível e imparável, num processo quase adverso. A Princesa não se rebela, muito menos questiona o seu papel como protetora da Triforce, apenas o aceita, tal qual em exemplos históricos reais e fictícios de mulheres no papel de mártir como Santa Blandina.
Nota-se que tal formato que delimita Link como protetor da Princesa Zelda se repete pela franquia. A Princesa, por sua vez, começa a adquirir uma função narrativa maior, em oposição à donzela indefesa do primeiro título. Em Ocarina of Time, por exemplo, começa a assumir um papel mais ambíguo quando assume seu alter-ego Sheik. Ao contrário da princesa inapta, Sheik, com características masculinas, se mostra capaz de lutar e defender por conta própria, além de assumir um papel de guia.
O principal problema é o momento em que Sheik se revela como a Princesa Zelda. No instante em que ela assume sua posição feminina, Ganondorf aparece e a sequestra. Sob um papel masculino, nada acontecia a ela. Como mulher, é incapaz de evitar o próprio sequestro.
No entanto, a questão “Sheik” é importante na identificação do público feminino ao jogar Zelda em função da Anima da própria princesa. Explico: Anima, segundo Edna Levy (o conceito, no entanto, em sua origem é de Carl Jung) em Os arquétipos e os jogos de videogame, é a característica contrassexual do indivíduo, ou seja, é o lado complementar da personalidade em relação ao seu gênero. É a capacidade do masculino se complementar com o feminino e a capacidade do feminino se complementar com o masculino, ambos no intuito de se tornar uma entidade completa. Assim, a Princesa Zelda como mulher que complementa a psique do jogador masculino também complementa a jogadora pelas características masculinas de Sheik.
Skyward Sword já conta com um avanço considerável, visto que a Princesa Zelda não é de fato uma princesa em termos de realeza. As suas roupas também refletem isso, com um vestido muito mais simples do que suas encarnações anteriores. Além disso, a interação da personagem com Link acaba se tornando mais humana, visto que não são mais divididos pelas classes sociais. O papel da (não) princesa Zelda aqui deixa de ser apenas o da donzela indefesa, o da princesa sequestrada. Aqui, ela conduz a narrativa e Link apenas a segue como uma peça em seu tabuleiro. É quando a personagem como mulher quebra o paradigma e conduz a narrativa por conta própria. Quando o jogador pensa estar atrás de salvá-la, é na verdade ela quem está no controle. São desafios que ela deixou para que ele resolva. Ela não foi vítima, ela foi a causa, quem orquestrou a narrativa.
No entanto, mais uma vez, assim que o papel de “Princesa” Zelda vem à tona, ela se torna o objeto final que depende de salvação ao se retrair em um cristal, tal como The Wind Waker e Ocarina of Time.
Spirit Tracks é outro título que merece ser lembrado. Apesar de parecer, à primeira vista, reducionista, visto que a Princesa é praticamente morta em vez de ser sequestrada, tal questão narrativa justificou a mecânica que permitiu que a Princesa, até então apenas um NPC, fosse controlada pelo jogador ou jogadora para que resolvesse os enigmas do jogo. Link e a Princesa Zelda têm um peso equilibrado, visto que o jogo não avança sem a interação conjunta de ambos. Spirit Tracks serve para mostrar que a questão da imagem da mulher não se resume apenas à parte narrativa, mas envolve também ideias de gameplay.
Super Smash Bros. e Hyrule Warriors também merecem uma menção honrosa por serem os primeiros a utilizarem a princesa Zelda, de fato, como uma personagem jogável e capaz por conta própria. No entanto, pelo fato de não constarem no cânone oficial da franquia, acabam sendo ofuscados e a princesa ainda não teve um momento similar na linha principal.
Considerações Finais
Apesar de o público-alvo feminino integrar quase metade do público jogador de videogame, os jogos ainda se baseiam em arquétipos fáceis para conquistar o público masculino. Com isso, a indústria se tornou retroalimentável no sentido de que o público feminino se afasta de tais títulos e apenas o masculino os joga. Com isso, o lucro referente à produção dos games tem origem nos homens e a própria indústria passa a perseguir esse público certo, que se encaixa nesse padrão arquetípico já consolidado no intuito de atendê-lo.
Não é uma generalização, obviamente. Há casos exemplares de protagonismo feminino, como o da Samus. A culpa também não é dos jogadores, mas da própria indústria que não percebeu que o público masculino também pode se interessar por personagens femininos fortes se eles forem bem construídos. O problema é a dificuldade de colocar isso em prática. A própria Samus, por exemplo, enfrentou o backlashing dos fãs por conta da forma que foi retratada em Other M. Há uma zona de conforto que a indústria se instalou e produz tais jogos de forma natural e inconsciente.
A ideia seria criar símbolos que não se restrinjam a essa zona de conforto. É difícil? Sim. Se não fosse, não haveria uma discussão contínua a respeito dessa questão. Deve-se caminhar aos poucos no intuito de equilibrar a balança para que não haja discriminação de públicos. Em 1998, nós tivemos o infame comercial que perguntava se o jogador iria salvar a garota ou jogar como uma. Hoje, temos a filha do Robin Williams, também chamada Zelda, ou seja, uma mulher, como garota-propaganda da franquia.
Colaboração: Mariana Leijoto
Revisão: Arthur Maia