Aqueles Dez Segundos

Como uma experiência com Metal Gear Solid V: The Phantom Pain mudou minha perspectiva em relação a meu trabalho.

em 05/12/2016
Minha avó, a quem todos no bairro se referiam como Dona Emília, sempre foi uma pessoa ativa. Lembro-me bem que, mesmo do alto de sua idade avançada, costumava andar de cima a baixo nas vizinhanças mais comerciais de Santo Amaro — constantemente conseguindo bons preços na feira livre ou no negociante de tecidos. No jardim de casa, assim como na cozinha, ninguém colocava o dedo. Dona Emília gostava das coisas como elas deviam ser, ou seja, à sua maneira.




Essa vivacidade de vovó sempre impressionou a todos que a conheciam e, pessoalmente, era-me um motivo de orgulho e admiração. Um exemplo concreto de sua força refere-se a um acidente que ela sofreu aos 78, quando tropeçou e caiu sobre uma afiada estaca de roseira, trespassando-a. O bairro inteiro entrou em polvorosa. Todos queriam se aproximar do jardim de Dona Emília para ver seu infortúnio. Acionado, o resgate pousou em um descampado próximo à nossa casa. Quando os bombeiros chegaram para serrar a estaca fincada ao chão, vovó, com a maior calma do mundo, disse-lhes:

— Pode deixar que eu vou a pé até o helicóptero!



Como se isso não bastasse, ao chegar à aeronave (de maca, a contragosto), aquela pobre velhinha, desgraçada por um trágico acidente, vira-se para o piloto e diz-lhe que estaria em boas mãos se sua habilidade ao manche fosse proporcional a sua beleza. Uma galanteadora.

Apesar de todas as peripécias pouco usuais para sua faixa etária, a idade, certamente, haveria de bater-lhe à porta. Com o passar dos anos, minha avó, outrora ativa, perdera aos poucos o movimento de suas pernas, que deu lugar às dores nos joelhos. Suas perambulações ficaram limitadas aos cômodos da casa. Para completar, a artrose a acometia, tirando-lhe a coordenação motora fina, tão necessária aos trabalhos manuais.

Dona Emília esmoreceu, parte de sua alegria de viver residia na atividade. Ainda assim, vovó mantinha um certo brilho altivo. Dir-se-ia que tinha um quê de santificada quando abria seu sorriso de uma primavera distante. E o mais belo destes floresceu em um incidente que carregarei comigo até que meu ciclo por aqui se finde. 



No fim de sua vida, eu e vovó dividíamos muito o espaço da sala: para ela, o contar das horas. Para mim, um ambiente de trabalho. Graças a isso, ela costumava assistir às minhas jogatinas.

Testava eu o último Metal Gear Solid — cuja análise eu nunca consegui escrever, um motivo de chacota até hoje na equipe de redação. Em partes, isso se deve ao fato de vovó ter sido a pessoa que mais se animava com o game.

— Olha que bonitinho o cavalinho do moço! Elza! Venha ver que graça o Luiz Fernando andando a cavalo no joguinho. — Um maravilhamento típico de quem não apenas viveu, mas apreendeu o século XX e suas mudanças torrenciais.

Pouco se importava com as partes violentas da coisa, até achava graça. Afinal, das vantagens da idade que mais aprecio, encontram-se o despudor e o riso perante a tragédia.

Assim seguimos por um bom tempo. Eu, atento a robôs gigantes, contêineres amarrados a balões e um sem-fim de constantes inusitadas, pertinentes à mente de Hideo Kojima. Vovó assistia e gostava do cavalo. Gostava de como o moço se jogava no chão. Gostava do movimento.

Cinestesia. O sentido relacionado à sensação e percepção dos movimentos. Palavra que, volta e meia, uso em minhas críticas. Aprecio tanto o verbete, talvez, por sempre me lembrar de minha avó quando o leio.

De fato, essa conexão se solidifica quando, comovido pelo deleite de vovó, dei-lhe o controle do videogame nas mãos. “Coloca o dedão aqui e mexe, vó”. O estranhamento inicial se dissipa e, tal qual a marchinha de Chiquinha Gonzaga, o êxtase abre alas.


Dez segundos. Foi o tempo que aquele controle ficou em suas mãos. “Meus dedos não se mexem mais, Luiz Fernando. Não posso”. Um misto de impossibilidade física e visível embaraçamento. Contanto, nunca me esquecerei daqueles dez segundos em que vovó recuperou suas pernas e trespassou a savana africana com uma velocidade sem igual. Não havia dor, tampouco cansaço.


Como qualquer profissão ligada intimamente à criatividade, costumo viver crises constantes com meu trabalho. Seja como redator, pesquisador, musicista ou desenvolvedor de jogos, a insegurança bate à porta, desestabiliza e desestimula. Os ombros fraquejam e a mente distingue os detalhes com uma vela bruxuleante em mãos. Se algo de bom retiro desses momentos, é que resta-me humanidade no peito.

Chego a pensar que o que faço não vale a pena, meu charme sempre foi autodepreciativo e pessimista. Todavia, no momento em que sinto o limo das pedras úmidas acomodar-se nas reentrâncias de minhas mãos, lembro-me da primavera de vovó e revivo aqueles dez segundos. E não há nada neste mundo, nada! que me convença de que não estou no caminho do meio. Assim, espero que meu legado aqui devolva o sorriso a tantas outras Emílias que, mesmo longe, habitam um lugar especial que guardo dentro de mim.

A Maria Emília Carvalho Valente (1922-2016), de “seu santo”.

Texto originalmente publicado no Pulo Duplo.

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