A ladra da locadora

A desventura de um garoto em busca de sua carta de Yu-Gi-Oh! roubada.

em 12/08/2016
Antes de tudo preciso fazer uma revelação, eu sou fã do Ítalo Chianca, esse cara sensacional produz crônicas maravilhosas que já me deixaram encantado com sua vida sem mesmo ter feito parte dela, uma verdadeira inspiração que me motivou a escrever esta crônica. Por um longo momento eu vasculhei minha memória tentando puxar alguma história que valesse a pena contar aqui no GameBlast, nisso achei uma que simplesmente intitulo de “A ladra da locadora”. Na pacata cidade de Arapiraca (AL), aconteceu um crime imperdoável contra uma criança de nem 10 anos: ela teve um pertence seu roubado, sua dignidade e a felicidade que tinha dentro de si. Convido neste o momento o leitor a analisar este crime e acompanhar a história de um azarado garoto que se meteu em uma má situação justo por ter um pouco de sorte.

O cenário

Era numa simples locadora de videogame que o garoto Janderson (nosso personagem) se divertia em seus períodos de férias todos os anos. A locadora ficava na rua de casa, mas só era permitido a ele ir lá quando já não estivesse em aulas. Para compensar todo esse tempo, quando as férias chegavam, ele ficava na casa da avó, perto da locadora, e permanecia em frente ao relógio todo a manhã esperando dar 9 horas, o horário em que abria o estabelecimento (e assim ele aprendeu como ler as horas num relógio analógico).

Junto com seu irmão maior, Janderson andava cerca de cinco minutos até chegar ao local e, provavelmente, ainda o via fechado. Eles sempre eram os primeiros clientes e depois de mais alguns minutos finalmente chegava o único funcionário para abrir a locadora.

Lá dentro havia apenas três PlayStation One e um PlayStation 2, era o centro de diversão das próximas horas. Foi naquele lugar em que Janderson zerou seu primeiro jogo (Mega Man X4), tremeu com Resident Evil 2, teve seu único contato com Digimon (bem, o jogo pareceu mais atrativo que o desenho), sentiu-se radical em Driver, riu e se estressou com o estranho Pepsiman, pirou na companhia de Crash Bandicoot e travou vitoriosas batalhas multiplayer em diversos Dragon Ball (controlar personagens do seu anime predileto era realmente empolgante), além de várias e várias aventuras que pôde viver em outros mundos na pele de outras pessoas mais velhas, mais fortes e mais corajosas, apenas sentado numa cadeira de plástico.


Por ficar no bairro mais populoso da cidade, mesmo esta pequena locadora tinha um bom público, o que garantiu sua existência por anos e anos, mas Janderson não conhecia ninguém que frequentava o lugar porque, geralmente, os outros clientes não estavam acordados tão cedo e quando chegavam, já estava perto da hora que o garoto ia embora.

Foi nesse local em que o crime aconteceu.

O artefato

Era tempo de Yu-Gi-Oh!, todas as crianças tinham um deck. Me arrisco a dizer que foi uma febre maior que Pokémon GO, era mais acessível, qualquer um podia ir em uma vendinha de balas, pedir um pacote de cartas e já começar a montar seu baralho. Janderson chegava na escola e encontrava pessoas duelando por todo o lugar, até teve o perigo de um dia perder umas cartas de seu (único) irmão mais velho por ter sido desafiado. Os meninos com mais idade pareciam estar se aproveitando do caçula que estava com o baralho do irmão que faltou na escola, entretanto o verdadeiro Yugi não negaria uma batalha, não é mesmo? Por sorte, tocou para o início das aulas e ele não conseguiu ter tempo de vencer seu adversário, claro.

Aquele anime tomou conta de Janderson, ele sempre andava com seu baralho como se estivesse pronto para que alguém chegasse na rua e, de modo épico, o desafiasse para um duelo. Mais uma vez deixo evidente que ele ganharia. O menino estava sempre comprando mais cartas, seja no caminho para a escola, na volta para casa, fazendo feira no domingo com a avó, ou até mesmo na locadora de videogame que tanto amava frequentar.

Janderson tinha um bom deck, mas enquanto o seu irmão tinha o Supremo Dragão Branco de Olhos Azuis, ele tinha nenhum tão forte. Entretanto, em um dia qualquer de férias na locadora, Janderson decidiu comprar um pacote de cartas e neste pacote de 3 cartas veio uma em especial que fez o garoto ter uma alegria imensa: era simplesmente o Dragão Alado de Rá, uma carta de atributo divino destruidora e que seria a próxima chave para o pequeno menino destruir seu irmão e qualquer inimigo que o desafiasse.


Porém a sensação de poder não durou muito tempo.

O crime

No mesmo dia em que Janderson desembalou seu Dragão Alado de Rá, depois de uma comemoração, da surpresa do seu irmão e do funcionário da locadora, ele decidiu deixar seu baralho de lado e jogar Gran Turismo. Enquanto o menino estava imerso no jogo, uma garota, aparentemente da idade de Janderson, surgiu sentada no banco detrás só olhando os irmãos jogarem, ao que pareceu, não estava com dinheiro. A garota viu o baralho de Janderson e pediu para dar uma olhada, o irmão mais velho desse disse que não iria dar, mas o próprio dono do deck deixou a menina ver suas cartas, inclusive seu novo motivo de orgulho, o Dragão Alado de Rá.

Depois de umas corridas, uns minutos, e umas olhadas, a garota põe o baralho de volta onde estava, ao lado da TV em que Janderson jogava, e simplesmente vai embora. Após uns segundos, o menino se cansa de Gran Turismo e pede para testar Tomb Raider I, durante o tempo em que o funcionário troca de CD, Janderson vai olhar seu deck, como fazia tantas vezes no dia, só que dessa vez ele sentiu a falta de uma carta, uma que nem tinha visto tanto, uma que acabou de obter: o Dragão Alado de Rá havia sumido!

A perseguição

Enquanto a cena de introdução de Tomb Raider I tocava como plano de fundo, Janderson estava em choque. Era impossível que tinha realmente sido roubado, não naquele ambiente, a locadora de videogame que sempre frequentou e nunca teve problemas (exceto quando queria exceder o tempo que tinha pago). Seu irmão maior logo começou a falar que tinha razão, que Janderson deveria ter escutado e não ter passado o deck para a menina desconhecida. O irmão, então, pegou o menor pelo braço e disse “vamos atrás dela”.

Assim que saíram da locadora puderam ver a suspeita cruzando a esquina, o irmão puxa Janderson e eles começam a correr. Sim, uma perseguição foi iniciada. Janderson podia ser menor, mas era mais leve e ágil que seu irmão. Logo alcançou a esquina, a menina percebeu e virou em outra rua rapidamente. Passando por mercados, casas, atravessando ruas com grande movimento, o garoto pôs sua vida em risco para recuperar sua carta e até que se deu bem, no final das coisas Pepsiman serviu para algo, pena que tantos obstáculos tirou a atenção do verdadeiro alvo, a menina.

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“Ela foi por ali”, avisou o irmão maior, “eu sei para onde está indo”. Depois de dois minutos, desta vez andando, não mais correndo, chegaram perto de uma outra locadora de videogame, essa maior, com um público mais velho e de pessoas também desconhecidas. A garota estava exatamente lá, mas parecia segura, não tentou fugir, ficou sentada em um banco, nos encarando. “Ela tá com o irmão, não podemos entrar”, disse o irmão maior que de um momento para o outro passou de ser aquele que impulsionou a perseguição para o que acabaria com ela, mas Janderson decidiu que não iria parar por aí.

A acusação

Janderson entrou na locadora, cheia de pessoas que ele não fazia a menor ideia de quem eram juntamente da desconhecida garota. Passo após passo, ele foi até a suspeita, ignorando o enorme irmão dela ou qualquer outra segurança que fosse acobertá-la por seu possível crime.

“Me dê a carta”, pediu Janderson. “Qual?”, a garota fingiu não saber. “Dragão Alado de Rá”. “Não sei”. “Aquela que você roubou de mim”, a frase saiu em um tom mais alto que o esperado e logo a locadora toda estava de olhos naquelas duas crianças discutindo. “Você está dizendo que minha irmã te roubou?”, perguntou o irmão dela. “Não, não está dizendo isso”, disse o irmão de Janderson que já estava atrás dele tentando evitar o pior. “Sim, estou”, Janderson continuou firme. “Devolva”, o irmão da garota disse. “Não, é minha”, protestou a menina. O garoto vendo que não teria sua carta de volta tão cedo tomou uma ação precipitada, mas muito sensata para o verdadeiro Yugi: “Vamos duelar!”

Finalmente levar o baralho sempre consigo serviu de algo, Janderson pegou o seu e analisou uma tática. Ele já não tinha sua carta mais poderosa, que agora estava com a garota. “Se minha irmã vai apostar uma carta de 10 estrelas, você deveria fazer o mesmo, é o preço”, o irmão da menina disse. Sem uma carta forte o bastante, o garoto percebeu que talvez não teria novamente sua carta, até que o seu irmão surgiu. “Ele vai apostar uma de 12”. Era o Supremo Dragão Branco de Olhos Azuis, a fusão de três Dragões Branco de Olhos Azuis o formava, era carta que seu irmão mais velho mais prezava e agora estava nas mãos do pequeno Janderson. “É hora do duelo”, sussurrou.

O julgamento

Não, não estamos em Game of Thrones em que Tyrion sempre apela para o julgamento por combate, aqui é real, não vale uma vida, mas algo muito importante, uma carta e mais uma vez eu retorno a comparar o fenômeno Yu-Gi-Oh! com Pokémon GO, por mais que o jogo tenha chegado a mobilizar massas para pegar criaturinhas, não dá para imaginar algo tão real como uma batalha de TCG de Yu-Gi-Oh!. Janderson suava, estava nervoso e bastante pressionado. Todos os controles foram largados, Resident Evil, Need for Speed, Final Fantasy, até o popular PES foi deixado de lado, todos os jogadores estavam atentos aos dois; por um momento a locadora deixou de ser “de videogame”.

Olhos nos olhos, cada um pegou suas sete cartas e a partida deu início. Diante de tantas batalhas, fusões, ressureições e surpresas, a partida foi se desenrolando de modo acirrado. Janderson sentia todos os olhares em si, parecia que todos os julgavam, esperavam dele o pior, parecia que vinham até do próprio irmão que emprestou sua carta predileta. A característica insegura do pequeno garoto se mostrou fortemente presente. “Você não vai conseguir, entrega logo o jogo”, dizia uma voz interior, “falhou com seu irmão”, continuava, “não merece nem essa atenção toda, perdedor”. Dessa vez não teria play again, como nos jogos, era somente uma oportunidade, o que mais aterrorizava o menino. A garota parecia surpreendentemente confortável e confiante, o perfeito oposto de Janderson.

Aquela era a primeira menina que Janderson enfrentava, na verdade era a primeira que ele conhecia que jogava Yu-Gi-Oh! e ela não era uma adversária fácil, muito pelo contrário, o garoto realmente sentiu-se desafiado a vencer, porém ela era mais ágil, mais esperta, mais experiente, foi uma das primeiras vezes que Janderson percebeu como meninas não são tão diferentes de meninos, na verdade conseguem superá-los em muita coisa, o que aconteceu nessa ocasião, mesmo sem usar o Dragão Alado de Rá, a garota desconhecida ganhou.

A delação

Janderson olhou para seu irmão com uma mistura de arrependimento, desespero e desculpa. “Dê a carta”, o irmão simplesmente disse, “junte o baralho e vamos para a casa da vó”. Enquanto Janderson juntava as cartas e procurava o Supremo Dragão Branco de Olhos Azuis, a garota e o irmão dela conversavam a sós, quando o menino achou o que procurava e foi entregar o preço de sua derrota descobriu que aquele não era o fim. “Conte para ele o que me disse”, o irmão ordenou, “vamos, ele precisa saber”. A menina continuava de cabeça erguida, como em toda a história, olhou para o menino e disse que ela não roubou por conta própria, foi mandada e pelo funcionário da locadora que Janderson frequentava. “Agora já sabe, não precisa mais vir atrás da minha irmã, com certeza ele vai procurar outro para ajudar nisso, porque essa mocinha já está fora dessa”.

O negócio passou a ser com o funcionário da locadora, era impossível imaginar que tinha sido justo ele, que atendeu bem aqueles dois irmãos por anos e anos, que estava por trás disso. Janderson, como uma típica criança birrenta, foi logo em seguida à locadora falar sobre tudo. Tomb Raider I ainda estava na tela, dessa vez na tela de demonstração do game. O funcionário ouviu incrédulo toda a acusação e negou tudo. Até que o irmão maior de Janderson dissesse que não era certo acusar o outro de algo, o menino não queria saber, havia tido uma confissão e para ele isso já era o bastante, e é verdade, tinha mais: a dona da locadora entrou no estabelecimento para conferir o que estava acontecendo e depois de ouvir toda a história deu seu veredicto.

A pena

No dia seguinte, quem abriu a porta da locadora foi a própria dona, quando o irmão maior perguntou o que aconteceu com o conhecido funcionário, ela simplesmente disse que ele foi demitido depois de achar em sua bolsa cartas e mais cartas raras de Yu-Gi-Oh!. Sem ter como explicar a exagerada coleção, o achado deu certeza para ela que a acusação era real. Com a (falsa) condição de manter ele no emprego, a dona pediu uma confissão geral de como era esse esquema de roubo de cartas.

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Quando o funcionário via que alguém conseguiu uma carta rara, dava um toque de celular para a menina que não precisava atender e já sabia que era serviço. Ela vinha e dava um jeito de ter acesso ao deck, a carta misteriosamente sumia, a vítima, então, poderia descobrir quando chegasse em casa ou mesmo na própria locadora, nesses casos o funcionário mandava a menina devolver a carta. Quando conseguia roubar com sucesso, ganhava horas grátis nos aparelhos, algumas guloseimas por conta do funcionário e assim ia. O funcionário vendia as cartas com um preço quatro vezes maior que o pacote com três cartas aleatórias. Como Janderson e seu irmão só iam na parte da manhã e conheciam ninguém, porque o movimento era maior pela parte da tarde, jamais souberem desses casos de roubo, que de certa forma manchou a fama da pequena locadora a partir da conversa das vítimas e amigos delas.

O veredicto final

Janderson nunca teve a sorte de pegar novamente um Dragão Alado de Rá, seu irmão mostrou que não precisava do Supremo Dragão Branco de Olhos Azuis para vencer, mas o pequeno garoto foi evoluindo mais e mais. Depois da primeira sensação de uma grande partida com público, não quis perder a adrenalina daquele momento, logo estava participando até de pequenos campeonatos. Pena que meses depois a mãe desses dois declarou que as cartas eram demoníacas e decidiu joga-las todas no lixo, centenas de cartas despejadas como um nada.

Vale destacar que Janderson só foi jogar Tomb Raider I anos depois, em 2015.
Tanta demora foi originada de um possível trauma do jogo? Talvez seja assunto para uma outra crônica.


Mais uma vez gostaria de ressaltar que me inspirei nas crônicas de Ítalo Chianca para escrever esta. Não ficou tão ligada aos games e acredito que muito menos tão envolvente e encantadora quanto as dele, mas quis contar a coisa mais louca que já me aconteceu numa locadora de videogame. Espero muito que tenham se divertido às custas de minha infelicidade, ah, e sim, eu sou o garoto Janderson, prazer em conhecer.

Revisão: Ana Krishna Peixoto

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